Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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segunda-feira, 4 de abril de 2011

Pontos sobre a Previdência Social (II)

Paulo Kliass 
Fonte: Carta Maior 

Já que estamos falando em equilíbrio, nunca é demais lembrar que as despesas realizadas pela União com a Previdência Social apresentam um efeito positivo imediato sobre a própria capacidade 
arrecadadora do governo nas esferas federal, estadual e municipal.

Como vimos no artigo anterior, a situação da Previdência Social em nosso País não é tão problemática como pretendem nos convencer os alarmistas de plantão. O modelo está equilibrado e o déficit é fruto de uma série de decisões adotadas pelo governo em relação ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Assim, ao atender a tais recomendações superiores, a contabilidade do sistema previdenciário acaba sendo prejudicada e exibe um déficit que pouco tem a ver com o equilíbrio ou desequilíbrio da essência própria do regime previdenciário.
A idéia de um sistema equilibrado deveria estar associada a um quadro em que fossem apontadas, basicamente, dois tipos de informação. De um lado, os recursos das receitas que alimentam os créditos do regime de previdência e suas fontes de arrecadação. Por outro lado, a estrutura das despesas do modelo, com o pagamento dos diversos tipos de benefícios previdenciários e também alguns de natureza não-previdenciária. Além disso, é importante o acompanhamento do déficit ou superávit no curtíssimo e no curto prazos, bem como as projeções e as tendências de sua evolução no médio e no longo prazos.

No curto prazo, como vimos, o sistema está equilibrado, chegando mesmo a apresentar um ligeiro superávit. Peraí! Mas como “equilíbrio”, se os jornais falam em déficit de R$ 44 bilhões em 2010 e até comenta-se que a Presidenta Dilma estaria convocando as Centrais Sindicais para negociar pontos de uma eventual reforma da Previdência? Pois é, a aparente contradição dos números reside justamente nessa forma equivocada e enviesada de apresentar os resultados do RGPS. Na semana passada, procurei mostrar que o sistema relativo aos trabalhadores urbanos está equilibrado, as receitas maiores que as despesas. Ou seja, o total das receitas associadas às contribuições do lado dos empregadores e dos empregadores é maior que o total das despesas com o pagamento de benefícios.
O resultado negativo fica por conta da inclusão dos trabalhadores rurais no sistema e ao fato da União não ter recolhido ao INSS os valores históricos das hipotéticas contribuições dos trabalhadores do campo, que alias não contribuíram justamente porque eram excluídos do sistema. Resultado desse “imbróglio”: há um conjunto de despesas previdenciárias que se realizam a cada mês sem as correspondentes contribuições. Esse é o chamado “passivo da previdência rural”, pois os ingressantes mais recentes no sistema já contribuem, como ocorre com os trabalhadores urbanos.

Outro elemento importante diz respeito ao montante não recolhido sob a forma de contribuição previdenciária, em razão de dispositivos legais e/ou administrativos que permitem a isenção ou a renúncia de tal tributo. É o caso das instituições filantrópicas, dos clubes esportivos, das instituições religiosas e de vários outros. Da mesma forma que no caso dos rurais, a União deveria recolher às contas do RGPS os valores de tais receitas não realizadas, uma vez que eventual desarranjo provocado por essa situação nada tem a ver com o modelo previdenciário em si, mas com decisões políticas externas ao RGPS. Como no caso dos rurais, essa simples decisão administrativa aportaria maior transparência e realismo atuarial à análise das contas previdenciárias.

Além disso, há outras questões que merecem ser esclarecidas. O Brasil é um dos poucos países que manteve em seu aparato de políticas públicas um importante conceito incorporado à nossa Constituição Federal (CF) em 1988. Talvez nem todas as pessoas se dêem conta quando falam a respeito, mas o nosso conceito mais amplo é o de “seguridade social”. E a questão não é meramente formal. Os arts. 165 e 167 da CF exigem que a Lei do Orçamento Anual (LOA), peça legal o Executivo elabora e encaminha para apreciação e votação pelo Congresso Nacional a cada exercício, contenha três orçamentos independentes: um orçamento de fiscal, um orçamento específico para a seguridade social e um orçamento detalhando os investimentos das empresas estatais.
Mas, então, o que vem a ser esse conceito mais amplo? A CF busca responder a tal indagação. O Título VIII trata da chamada “Ordem Social”. Em seu interior, o Capítulo II trata da “Seguridade Social”. O art. 194 define a seguridade social, compreendendo o conjunto dos setores e serviços envolvendo três áreas: i) saúde; ii) previdência; e iii) assistência social. O art. 195 chega ao detalhe de estabelecer as fontes de financiamento da própria seguridade social. No entanto, apesar de toda essa vontade política - mais do que explícita por parte do constituinte, a realidade dos governos que se seguiram e a sua complexa relação com as diversas legislaturas que foram eleitas para o Congresso Nacional, fizeram com que o Orçamento da Seguridade Social se transformasse em uma espécie de peça de ficção. Cria-se um “jogo de faz de conta” para cumprir formalmente uma exigência constitucional, mas não se atenta à essência mesma de tal mandamento.
Para 2011, por exemplo, a proposta para o Orçamento Fiscal apresenta um valor de gastos próximo a R$ 1,5 trilhão. Já o Orçamento da Seguridade Social prevê um total de despesas de R$ 506 bilhões. E lá estão somados todos os gastos dos três setores: previdência, saúde e assistência social. As fontes das receitas para fazer face a tais gastos estão concentradas em três itens tributários. Mais de 78% das receitas (R$ 395 bi) provêm das contribuições previdenciárias “stricto sensu” (R$ 231 bi), que se somam aos R$ 122 bi da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e aos R$ 42 bi da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Em meio a esses valores que temos dificuldade de dimensionar, aparece uma rubrica a respeito de um suposto “déficit” da Seguridade Social, no valor de R$ 43 bi. Na verdade, trata-se do valor aproximado da extinta Contribuição Provisória da Movimentação Financeira (CPMF), que deixou um buraco a ser coberto diretamente pelos recursos do Tesouro.

O mesmo quadro demonstrativo da LOA (1) , por outro lado, escancara - para quem quiser ver - o absurdo de uma previsão inicial de despesas de R$ 170 bi com “juros e encargos da dívida pública”. Como não recursos específicos vinculados para tal despesa, os gastos são cobertos diretamente pelo Tesouro. Mas eles não são classificados como “deficitários”, como se esse tipo de sub-orçamento fosse equilibrado. Parece brincadeira, mas infelizmente é assim que os números são tratados e manipulados!

O interessante é que os órgãos de imprensa e a turminha das finanças tampouco apresentam o mesmo rigor e a mesma exigência para tratar de todos os (des)equilíbrios inerentes às contas do setor público. Por exemplo, sempre estiveram na trincheira de luta pela extinção da CPMF, um tributo fundamental, que foi instituído para o financiamento do essencial e modelar Sistema Único de Saúde (SUS), referência em todo o mundo para o atendimento universal de saúde à nossa população, tal como determina a parte da CF que trata da Seguridade Social. Com um discurso ideologizado ao extremo, berravam contra a incidência de uma alíquota sobre as transações financeiras. Mais do que o valor irrisório do tributo, incomodava o fato de que isso permitia um controle por parte dos órgãos encarregados do controle e fiscalização, reduzindo possibilidades de fraudes e sonegação. Problemas com a queda na arrecadação do sistema nacional de saúde? Isso pouco importava, provocar esse desequilíbrio de forma tão irresponsável não merecia as manchetes escandalosas, ao contrário do que sempre ocorre no caso da previdência. Afinal, sempre havia até mesmo a oportunidade de aproveitar a crise para fortalecer os grupos privados, operando na área da saúde cada vez mais mercantilizada.
Da mesma forma, quase não aparecem artigos e depoimentos de especialistas em finanças públicas condenando os desequilíbrios nas contas orçamentárias quando, a cada ano, a bancada ruralista e as suas entidades classistas (como a Confederação Nacional da Agricultura - CNA) obtêm uma renegociação – generosa ao extremo – do pagamento das dívidas do setor agrário junto ao governo, ao Banco do Brasil e demais órgãos públicos do setor. Nessa contabilidade, tal renúncia fiscal não é apresentada como fator de desequilíbrio ou irresponsabilidade no manejo do gasto público. E o que dizer dos empréstimos concedidos pelo BNDES para os grandes grupos empresariais, cobrando uma taxa de juros altamente subsidiada – a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP)? Em um procedimento adequado, o Tesouro Nacional compensa o caixa do Banco pela diferença entre a SELIC (11,75% ao ano) e a TJLP (6% ao ano), para evitar que a instituição financeira federal registre prejuízo operacional provocado por decisões tomadas fora de sua alçada. A exemplo, aliás, do que deveria fazer o mesmo Tesouro para com o INSS nos casos já mencionados acima!

Finalmente, já que estamos falando ainda em equilíbrio, nunca é demais lembrar que as despesas realizadas pela União com a Previdência Social apresentam um efeito positivo imediato sobre a própria capacidade arrecadadora do governo nas esferas federal, estadual e municipal. Isso ocorre em função da característica marcadamente regressiva de nosso sistema tributário. Isso significa que as camadas de renda mais baixa pagam, proporcionalmente, mais impostos do que a população de renda mais elevada. Uma parte significativa de nossos tributos são os chamados “impostos diretos”, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI - federal), o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS - estadual) e o Imposto sobre Serviços (ISS - municipal), entre outros. E a estrutura de consumo das famílias de renda mais baixa se concentra em bens e serviços que absorvem mais de 30% de seu valor com tais tributos. É o caso de alimentos, bebidas, vestuários, eletrodomésticos, transporte, combustíveis, fatura de eletricidade, fatura de telefone, fatura de água, etc.

Dessa forma, quando ocorre reajuste nos valores do salário mínimo, das aposentadorias e pensões da Previdência, nos benefícios como o Bolsa Família e o dos idosos, por exemplo, verifica-se um efeito de retorno de recursos para os cofres da União, dos Estados e dos Municípios. Isso, é claro, sem falar nos efeitos positivos sobre a geração de renda, criação de emprego, melhoria nos índices sociais e outros. Assim, quando alguns analistas de plantão, os conhecidos “especialistas” de sempre ouvidos pelos grandes órgãos de comunicação, começam a encher a boca para exigir do governo “responsabilidade e austeridade na política fiscal” eu fico aqui pensando com meus botões a respeito da incoerência dos argumentos. Repassar R$ 170 bilhões para o setor financeiro na forma de pagamento de juros da dívida pública é uma despesa séria e responsável. Realmente, deve ser mesmo uma alocação de recursos equilibrada, sem nenhuma conotação de desperdício de gasto público. Já reajustar o salário mínimo e os benefícios da Previdência Social, isso sim, se caracteriza por “armar bombas de difícil desativação”, ações perigosas que podem comprometer o equilíbrio fiscal de maneira estrutural em nosso País. Então, tá certo... Como diz uma grande amiga, “me poupe” !

(1) Ver: http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/orcamentouniao/loa/loa2011/ciclos/volume1.html

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


Pontos sobre a Previdência Social (I)

Fonte: Carta Maior
Paulo Kliass

Até o início da crise de 2008, as propostas que emanavam do então sólido e inquestionável Consenso de Washington sugeriam, pelo mundo afora, a privatização dos regimes previdenciários públicos. Alguns países levaram tal sandice a sério e depois se arrependeram amargamente da aventura.

Todo início de governo é a mesma coisa. Certos temas que enfrentaram alguma dificuldade de aprovação na legislatura anterior voltam à agenda política e os “lobbies” começam a se movimentar em torno de uma estratégia para fazer com que voltem a ser apreciados.
O discurso começa de forma ampla e genérica, na linha do “nosso País necessita reformas estruturais urgentes que estrangulam a capacidade de desenvolvimento” e por aí vai. Na pauta, dois pontos estão sempre presentes: a reforma tributária e a reforma previdenciária. De acordo. Em tese, por exemplo, ninguém se coloca contra uma reforma tributária. A questão se torna mais complicada, porém, quando começam os debates a respeito de qual o tipo de alteração que se pretende implementar. Adotar um sistema tributário menos desigual, com maior progressividade, de maneira a fazer com que o capital e os setores que obtêm mais renda e patrimônio paguem o que deveriam? Não, não! Os interesses que vão por aqui se orientam pelo discurso pretensamente liberal da nossa suposta carga tributária excessiva e coisa e tal. As propostas se resumem à redução de impostos. Se faltarem recursos orçamentários para cumprir as obrigações previstas na Constituição e as urgentes necessidades da maioria da população, paciência. Reduza-se o tamanho do Estado e a solução está dada.

Com a questão previdenciária ocorre algo semelhante. Vira e mexe os meios de comunicação começam a ser municiados com números e análises catastrofistas a respeito da situação das nossas contas previdenciárias. E assim vieram as reformas previdenciárias de Fernando Henrique Cardoso em 1998 e de Lula em 2003, por meio de emendas à Constituição Federal.
Isso sem contar a outra maldade do famigerado fator previdenciário, criado por FHC em 1999 e cuja lei foi considerada “imexível” desde então, inclusive pelos governos do PT. O discurso mentiroso e alarmista joga com números que assustam, buscando criar o falso consenso de que o modelo do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) estaria falido e seria insustentável para o País.
Até o início da crise de 2008, as propostas que emanavam do então sólido e inquestionável Consenso de Washington sugeriam, pelo mundo afora, a privatização dos regimes previdenciários públicos. Alguns países levaram tal sandice a sério e depois se arrependeram amargamente da aventura, como a Inglaterra, o Chile e a Argentina. Naqueles tristes tempos da violência ideológica do neoliberalismo, até que o Brasil conseguiu preservar um pouco seu sistema previdenciário. O regime gerido pelo INSS continua sendo de natureza pública, mantido pela União.

A experiência internacional nos apresenta, basicamente, dois modelos previdência. Um deles é o chamado “sistema de repartição”. O outro é o “sistema de capitalização”. No Brasil, o modelo criado por Getúlio Vargas, e que completou 88 anos em janeiro passado, é baseado no princípio da repartição. Isso significa que, a cada momento, o sistema se equilibra com base no princípio da solidariedade inter-generacional. Ou seja, os trabalhadores que estão ainda na ativa contribuem para a formação de um fundo que se transforma imediatamente nos benefícios que são conferidos aos que já estão aposentados. Já os modelos da capitalização (tanto individuais como coletivos) partem do princípio de que cada indivíduo ou cada geração contribui para um fundo, que se capitaliza ao longo de um período e depois se converte em prestações mensais para quando seus participantes estiverem na fase de inatividade.

O olho gordo da turminha das finanças é justamente para o enorme volume de recursos oferecido por qualquer modelo de previdência social. Como o nosso ficou intocável, eles cresceram pelo lado das previdências complementares abertas (essas que todo gerente de banco nos oferece e que o governo estimula por meio da redução de Imposto de Renda a pagar) e dos fundos de pensão. Outro detalhe que amplia ainda as opções de negócios desse ramo é a contenção do teto-limite dos benefícios do INSS – que deveria ser de 10 salários mínimos – R$ 5.100, mas na prática não passa de pouco mais de R$ 3.700. Ou seja, isso obriga boa parte da classe média a buscar a esperança da complementação da aposentadoria nos fundos privados
. Aceitar o modelo de privatização do INSS, como chegou a ser sugerido no passado, seria colocar adicionalmente um fluxo anual de recursos equivalente a 9% do PIB para rodar na ciranda financeira!

Ao que tudo indica, a movimentação atual vem se dando novamente na linha da desconstrução do nosso modelo. Como ainda estão bastante isolados e desacreditados em suas propostas mais radicais, os defensores do neoliberalismo tupiniquim estabeleceram uma postura de ataque defensivo, digamos assim. Quase uma guerra de guerrilha. Vai lá, corre, ataca, tenta fazer um belo estrago e volta correndinho prá trincheira. Se não há espaço político para defender abertamente a privatização do modelo, imaginam, ao menos tentemos reduzir sua credibilidade e vamos continuar comendo pelas beiradinhas.
As manchetes dos grandes jornais não tardarão a apresentar os números. O interessante é que esse ano eles ainda estão um pouco atrasados na divulgação das informações da Previdência Social. Pois, então, vamos lá, ajudá-los na tarefa. “INSS apresenta déficit astronômico em 2010: R$ 44 bilhões!”. E dá-lhe entrevistas com os chamados “especialistas” das consultorias econômicas a deitarem falação a respeito do que não conhecem muito bem. Mas então como foi mesmo o resultado da previdência para o ano passado? As informações estão todas lá na página do Ministério da Previdência (1) . Qualquer um pode acessar os dados. O segredo de tudo está justamente em melhor analisar os números e retirar deles a sua verdadeira dimensão.

O primeiro passo é identificar como são construídos os Balanços Anuais da Previdência. Desse ponto de vista, o quadro para 2010 foi o seguinte:

BALANÇO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL - 2010

.....................................................Valores em R$ bi

Arrecadação de contribuições....... 212
Pagamento de benefícios............. 256
Saldo (Déficit).............................. - 44

Fonte: MPS


Para quem não tem muita familiaridade com o tema, parece que o sistema realmente está complicado. Afinal, um déficit de R$ 44 bilhões, correspondente a quase 20% do valor das arrecadações, seria algo expressivo para efeito do equilíbrio do nosso modelo previdenciário. Porém, a realidade é bastante mais complexa do que se pode imaginar. E há inúmeros fatores, exógenos ao modelo do INSS e à sua gestão, que contribuem para tal situação. Vamos aos poucos.

O primeiro aspecto a considerar é um mandamento constitucional a respeito do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores agrícolas ao modelo previdenciário. Até antes de 1988, de acordo com a antiga ordem constitucional, esse importante setor de nossa sociedade estava excluído do usufruto dos benefícios do INSS para quando entrassem em seu período de inatividade. Tratou-se de uma importante decisão de inclusão social, mas que teve, obviamente, os seus impactos sobre a estrutura de despesas do Orçamento Geral da União. Em outras palavras: a partir do momento do reconhecimento de tal direito, as aposentadorias e pensões (diga-se, de passagem, limitadas ao valor de um salário mínimo!!) passaram a ser concedidas sem que aqueles participantes houvessem contribuído para o RGPS ao longo de sua vida laboral. E muito consultor mal intencionado ainda tem a desfaçatez de qualificar esse pequeno passo em direção a um mínimo de cidadania como “descalabro escandaloso para com as contas públicas”!
Ora, em função de tal decisão - mais do que justa e adotada pela própria sociedade - o Estado nada mais fez do que começar a pagar mensalmente esses benefícios aos aposentados rurais. E o seu peso na estrutura administrativa e financeira do INSS é tal que a própria instituição começou a apresentar seus balanços de forma detalhada. E lá nós podemos perceber que a leitura dos números de déficit deve ser feita com mais cautela. Ora, mas por que? Simplesmente pelo fato de que dos R$ 256 bi acima mencionados, relativos total dos benefícios pagos em 2010, algo em torno de R$ 57 bi referem-se a benefícios devidos aos rurais.

E o pulo do gato é o seguinte: o Estado brasileiro simplesmente ordenou ao INSS que passasse a pagar os benefícios, mas não aportou ao órgão previdenciário os valores relativos ao histórico das contribuições de cada um desses milhões de beneficiários recentemente incluídos. Ora, aí na há mágica que resista! A contabilidade da previdência passou a incluir uma conta crescente de despesas sem a contrapartida da contribuição por parte do empregador e do trabalhador, como sempre acontece nos demais casos. E aí surge o déficit, óbvio! No caso específico dos rurais, em 2010 esse valor foi de R$ 52 bi negativos. Corresponde a uma despesa de R$ 57 bi contra apenas R$ 5 bi de arrecadação de contribuições. Um resultado, aliás, mais do que esperado, tendo em vista a decisão política soberana de promover o acesso dessa população do campo ao mundo previdenciário.

A solução mais adequada, que sugere a maioria dos analistas lúcidos e não comprometidos com as concepções estreitas do fiscalismo exacerbado, seria a União aportar o valor hipopético das contribuições dos beneficiários rurais ao INSS, para que então se tivesse uma radiografia mais precisa de seu equilíbrio atuarial, como se diz para esse tipo de “contabilidade previdenciária”. E aí poderíamos confirmar que o sistema, ao contrário do que é maldosamente alardeado, está sim, equilibrado! No caso dos trabalhadores urbanos, por exemplo, em 2010 houve um total de despesas com benefícios de R$ 204 bi, enquanto a arrecadação foi superior a R$ 212 bi. Ou seja, um resultado positivo de R$ 8 bilhões.

O que é mais impressionante é que esse tipo de informação não circula nos órgãos de comunicação. Ao que tudo indica, pelo simples fato de não interessar a busca de explicações mais realistas para os fenômenos econômicos e de políticas públicas, que saiam do discurso repetitivo do “rombo do INSS”. Mas a questão previdenciária é ainda muito complexa. E em respeito ao espaço da página e à paciência de vocês, do tema será ainda objeto de seqüência deste artigo na próxima semana.

(1) Ver em http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/3_110204-124527-274.pdf
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


Vejam o que os assentados mineiros estão aprontando


 Biodiversidade para garantir a saúde

 Raquel Júnia - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

 Experiências de agricultores no Norte de Minas Gerais mostram que garantia do direito à terra para produzir de forma diversificada e em sintonia com o bioma natural é uma receita eficaz para promover a saúde

A saúde de uma população não se mede apenas pela quantidade de doenças ou número de vezes que estas pessoas precisam consultar um médico. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde é um "estado de completo bem-estar físico, mental e social". A oitava Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, em 1986, avança ainda mais e define que a saúde é a resultante das condições de "alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde". Para camponeses da região norte de Minas Gerais, a saúde se conquista com o acesso à terra, a produção agrícola diversificada e a preservação do cerrado, que é o bioma típico da região e que eles garantem se tratar de uma "verdadeira farmácia".
Em visita ao assentamento Americana, no município de Grão Mogol, pesquisadores, estudantes e militantes de diversos movimentos sociais puderam ver na prática como as condições de alimentação, acesso à terra, trabalho, meio ambiente, entre outras condicionantes, de fato interferem na saúde.  A visita fez parte da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas Gerais, uma das etapas que antecedem o ‘Encontro Nacional Diálogos e Convergências: Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar e Economia Solidária'.
Em Americana, parte dos assentados desenvolve um tipo de agricultura baseada na agroecologia, sem utilização de agrotóxicos, e aliando a plantação de várias espécies de alimentos com o extrativismo no Cerrado, que resulta em frutos, óleos e outros tipos de produtos alimentícios e com funções medicinais.

Os assentados também estão construindo uma agroindústria com o objetivo de processar mais e melhor os frutos do Cerrado e, consequentemente, alcançar mais condições de comercialização. Planeja-se que da agroindústria saiam óleos, geléias, doces e também que o espaço abrigue um banco de sementes. Quando os moradores do assentamento foram perguntados se a saúde deles estava melhor com esse modelo de produção, eles responderam que sim, pois hoje têm uma vida digna, com alimentação adequada..  "Isso expressa um grande nível de consciência desses trabalhadores de que a saúde faz parte de uma discussão mais ampla sobre vida digna. E a vida digna também significa uma relação de não subordinação aos grandes interesses econômicos que destroem a natureza, exploram e expulsam trabalhadores rurais e populações tradicionais desses territórios. Além disso, significa ter uma relação de respeito e convivência com a natureza, com um aproveitamento dos recursos que ela oferecem, de forma harmônica entre a saúde dos ecossistemas e a saúde das pessoas", analisa o pesquisador da Fiocruz e da Rede Brasileira da Justiça Ambiental Marcelo Firpo, presente à oficina
Um médico visita o assentamento Americana uma vez por mês, mas os moradores se orgulham de não precisarem procurá-lo. Firpo ressalta, no entanto, que eles têm consciência de que para problemas mais graves será preciso recorrer aos hospitais ou postos de saúde e que esses serviços precisam ser melhorados. Marcelo ressalta como as experiências em Americana - tanto de consumo e produção de uma alimentação saudável, quanto de organização dos trabalhadores - resultam em uma boa condição de saúde. "O fato de não trabalharem com agrotóxicos, de se alimentarem com alimentos de grande qualidade e acima de tudo terem um sentido de vida que dá a essa comunidade uma completude do ponto de vista da ação política, da existência, do resgate da continuidade da cultura dessas populações, dá um sentido de vida que fortalece essas comunidades e permite que elas tenham uma compreensão de saúde ampliada", afirma.

"Vivemos numa farmácia natural"
O óleo de rufão, um fruta típica do Cerrado, é eficaz contra dores no estômago, gastrite e reumatismo; o chá de unha danta é um bom remédio para ajudar a digerir; e a carqueja é diurética, além de ajudar a combater problemas no fígado.  Quem conta as propriedades medicinais das plantas é João Altino, morador do assentamento Americana.  Não é difícil encontrar na região os chamados "raizeiros", pessoas com vasto conhecimento sobre as potencialidades medicinais da flora típica do Cerrado. "Muitos declararam que no Cerrado eles não passam fome, a cada estação surgem novos frutos, mas isso é parte de um conhecimento ancestral. Esse também é mais um lugar do conceito ampliado de saúde, pois a saúde também está determinada pelo grau de cultura e conhecimento que a pessoa tem do seu território", comenta o professor do departamento de saúde coletiva da Universidade de Brasília (Unb) e do GT Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), Fernando Carneiro.

Marcelo completa que a utilização de fármacos naturais pelos geraizeiros , combinada ao consumo de alimentos saudáveis, e à atuação política que dá sentido a essas comunidades, provoca vitalidade e promove a saúde das populações. Ele acredita que a prática agroecológica é central neste processo. "O projeto da agroecologia não somente se refere à não utilização dos agrotóxicos, à maximização dos recursos dos ecossistemas, às formas de combinar e maximizar a rotatividade de produtos adequados e naturais aos ecossistemas, ou que neles possam se reproduzir de forma mais harmônica, mas também está relacionada a essa ideia de autonomia, de organização social, que veja também a própria produção agrícola no processo de democratização e justiça da sociedade. Então, não é possível falar de agroecologia dissociada de um projeto de sociedade democrático", reforça.

Modelo de desenvolvimento
Na comunidade de Vereda Funda, próxima ao município de Rio Pardo de Minas, também visitada pelos participantes da oficina, os moradores conseguiram retomar a terra que o governo estadual havia cedido a empresas para plantação de eucalipto.  Os estragos da monocultura da espécie, plantada em quase todo o território, foram logo notados pelos agricultores que, após várias mobilizações, conseguiram reaver a terra que era deles há muitas gerações. Agora, os moradores de Verenda Funda estão em outra batalha - pela regeneração do Cerrado, o bioma nativo do local.
Para Fernando Carneiro, as duas experiências - a de Americana e de Vereda Funda - mostram a relação de saúde com o desenvolvimento. "Muitas vezes a agenda da saúde é muito voltada para questões muito setoriais, ligadas à questão direta da doença, e não priorizamos questões que são estruturais e determinantes para as populações. O que pudemos perceber nesses dias é que o modelo concentrador de terras e que nega a história dessas comunidades não só destruiu o ambiente, secou nascentes e afetou a dinâmica do ecossistema, como fez com que essas pessoas perdessem as perspectivas de pensar no próprio território, e um  exemplo disso é que muitas pessoas migraram", observa.
Marcelo lembra ainda que, no caso da comunidade Vereda Funda, houve também uma utilização intensa de agrotóxicos, cujos prejuízos para a saúde da população ainda não estão mensurados, até pelo fato de a monocultura do eucalipto ainda cercar a comunidade.  "A cinco quilômetros da comunidade é possível encontrar plantios de eucalipto da empresa Gerdau, e os impactos dos últimos 30 anos do uso de agrotóxicos nesses eucaliptais sobre os ecossistemas e a vida das pessoas, principalmente as que aplicaram[os agrotóxicos], permanece uma incógnita", alerta.

Conferência Nacional de Saúde
Para Fernando, o tema do modelo de desenvolvimento para o país, e, consequentemente para a agricultura, precisa ser discutido sempre que se pensar em saúde. Ele lembra que 2011 é ano de Conferência Nacional e que este debate precisa acontecer. "A saúde não pode se furtar a debater que projeto de país nós queremos. Não podemos ter a saúde apenas para atender e contar os mortos e lesionados pelo processo de desenvolvimento, como no PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e outros. A saúde tem que ser componente estratégico para pensarmos projetos que gerem vida e não morte. Então, a perspectiva é a de que não se pode ficar apenas no discurso da atenção, embora ele também seja fundamental.  Se não ficaremos enxugando gelo em vez de atuar nas verdadeiras causas do processo", alerta.