Ação espetacular contra maus tratos a cães, em São Roque(SP), reacende debate sobre direitos de outras espécies
Antonio Martins (1)
Um protesto contra sofrimentos impostos a animais, que
começou sábado passado (12/10) em frente aos portões do laboratório Instituto
Royal, em São Roque (Grande São Paulo), tomou proporções inusitadas nessa
sexta-feira (18/10). Dezenas de ativistas invadiram, pela madrugada, o
laboratório e libertaram cerca de duzentos cães da raça beagle. A gota d’água
que desencadeou a atitude foi a suspeita de que a empresa preparava a retirada
e o sacrifício dos animais. A notícia espalhou-se rapidamente pelas mídias sociais.
A palavra-chave #institutoroyal tornou-se a mais popular no Twitter. Uma página
temática, no Facebook, reuniu mais de 140 mil apoiadores. Os fatos convidam: é
preciso intensificar o debate sobre os direitos dos animais. Ele é
indispensável, inclusive, para que o ser humano se livre das brutalidades que
comete contra si mesmo (Vinícius Gomes).
O tema é debatido no texto a seguir, publicado no ”Diplô
Brasil” em setembro de 2006, e que “Outras Palavras” reproduz pela atualidade. (V.G.)
Por Antonio Martins
Um meio-sorriso irônico – parte condescendência, parte
desdém – ainda predomina, em alguns ambientes, diante do discurso em favor dos
direitos dos animais. Ele soa frívolo, a certos ouvidos: é como se sustentá-lo
fosse sinal de futilidade ou escapismo, num mundo em que milhões de crianças
passam fome ou padecem nas guerras.
Professor de Direito na Universidade de Rutgers (Nova
Jersey), o norte-americano Gary Francione tem uma resposta para esta postura de
descaso. Produzido pela redação do Le Monde diplomatique, o texto Manifesto pela Libertação dos Animais
(cujo título original é “Pour l’abolition de l’animal-esclave”), que integra a
edição de setembro do Le Monde Diplomatique-Brasil, é uma síntese das teorias
de Garry Francione sobre a abolição da exploração animal, segundo expostas no
colóquio “Théories sur les droits des animaux et le bien-être animal”, na
Universidade de Valência (Espanha) em maio de 2006. O texto sugere que o massacre
dos animais é também um ato do ser humano contra si próprio. Nós o praticamos
porque estamos mergulhados em relações sociais que nos cegam. Enxergar nas
outras espécies seres que sentem e sofrem é um enorme passo para nos livrarmos
das brutalidades que cometemos entre nós mesmos.
O argumento de Francione é original porque, num aparente
paradoxo, associa defesa dos animais a humanismo. Ele não nega o direito da
espécie humana a lutar, como todas as outras, por seus “interesses vitais”. Mas
demonstra que, na etapa atual de nosso desenvolvimento, continuar confinando,
torturando e massacrando outros seres não tem nenhum laço com nossa
sobrevivência ou bem-estar – mas com nossa submissão à lógica da propriedade e
da mercantilização.
Sim, sustenta o Manifesto: assim como ocorria com os
escravos, há três séculos, os animais são considerados mercadorias. E uma
sociedade em que a regra essencial de sucesso é a posse de bens materiais
torna-se indiferente tanto à crueldade quanto à irracionalidade do massacre. Mais
de 8 bilhões de animais são mortos todos os anos (16 mil por minuto), só nos
Estados Unidos – o maior consumidor. Na condição de coisas, eles devem ser tão
rentáveis quanto possível. Por isso, são confinados, do nascimento ao
sacrifício, em celas exíguas, onde muitas vezes os únicos movimentos possíveis
são respirar, comer e digerir. Sua execução ocorre quase sempre “em dor e aos
gritos, em ambientes fétidos”. Quando destinados a experimentos industriais (em
testes de cosméticos, por exemplo), sofrem, vivos, amputações e queimaduras
químicas em série. Nas universidades, são freqüentemente utilizados sem
necessidade, para “experimentos” repetidos e de resultado óbvio, que poderiam
perfeitamente ser substituídos por recursos audiovisuais.
Não precisamos deles para nosso sustento. Ao contrário,
mostra o texto: sua criação industrial consome recursos que fazem falta a
outros seres humanos e é uma ameaça ao ambiente. “Para cada quilo de proteína
fornecida, o animal deve consumir cerca de 6 quilos de proteínas vegetais e
forragem; e produzir um quilo de carne exige mais de 100 mil litros de água –
enquanto a produção de um quilo de trigo não chega a exigir 900 litros”.
Uma causa que se difunde e obtém vitórias
A indústria da carne animal apóia-se, é claro, num hábito
atávico da humanidade. Mas, como tantos outros, ele poderia ser alterado aos
poucos, por meio de recursos como a sensibilização e a pesquisa científica
voltada para produzir alimentos que imitassem o sabor da carne. No entanto, a
mercantilização é um enorme obstáculo, como mostra o Manifesto: “O ’sofrimento’
dos proprietários, por não poder usufruir da ’propriedade’ a seu bel-prazer
conta mais do que a dor do animal. (…) Os industriais da carne avaliam que as
práticas de mutilar animais, sejam quais forem a dor e o sofrimento suportados
por eles, são normais e necessárias. Os tribunais presumem que os proprietários
não infligirão intencionalmente atos de crueldade inútil, que diminuiriam o
valor monetário do animal”.
Felizmente, as últimas décadas têm sido marcadas pela
difusão dos movimentos e organizações que combatem a mercantilização do mundo
dedicando-se aos direitos dos animais. Atuam em múltiplas frentes: a defesa das
espécies silvestres, a luta contra a caça, a denúncia da experimentação “científica”
desnecessária, o combate contra maus-tratos impostos aos bichos domesticados, o
resgate dos que são abandonados por seus “donos”. Le Monde Diplomatique tem
acompanhado algumas destas ações. Em agosto de 2004, uma reportagem focalizou a Grã-Bretanha
– onde tem havido vitórias importantes e onde certos grupos, em nome dos
bichos, desafiam leis e agem na clandestinidade. Em agosto de 2002, destacamos o esforço para proteger
os elefantes, ameaçados pelo comércio clandestino de marfim. Junto com o
ativismo, têm se multiplicado, especialmente na internet, as fontes
alternativas de informação sobre o tema. Algumas delas estão relacionadas ao
final deste texto.
Nenhuma grande causa merece ser transformada num
fundamentalismo. Se você ainda é carnívoro (como o autor destas linhas),
deleite-se com seu churrasco, neste fim de semana. Considere a hipótese de
substituí-lo por prazeres, digamos, mais humanos… Acompanhe e participe das
ações que combatem todos os tipos de maus-tratos. E repare: você tem agora mais
um motivo para continuar construindo relações sociais que, livres da ditadura
da mercadoria, nos permitam enxergar e enfrentar a crueldade.