Tolstoi por José Reinaldo Carvalho e Urariano Mota
(Fonte: O Berro)
Tolstoi: O gênio maior da literatura russa No dia 20 de novembro, transcorreu o centenário da morte de Leon Tolstoi, uma das mais destacadas figuras da literatura russa cuja obra ocupa os lugares mais importantes na literatura mundial.
Por José Reinaldo Carvalho e Urariano Mota*
A obra de Tolstoi pertence a um período histórico marcado pelo desenvolvimento de uma intelectualidade fecunda formada por democratas revolucionários
Nessa obra encontram-se os mais marcantes traços da literatura russa da segunda metade do século 19. O reflexo multilateral da realidade, a crítica impiedosa à ordem social, a maestria na descoberta do mundo interior das pessoas e um elevado padrão estético. A mais perfeita fusão entre fundo e forma. A beleza artística em sua mais elevada expressão.
Sobre ele disse Máximo Gorki que ao longo de 60 anos fez ouvir sua voz severa e justa, mostrando com maestria a amplidão da vida na Rússia. E Lênin: "Leon Tolstoi apresentou tantas questões fundamentais em seus escritos, alcançou em sua arte tão grande força, que suas obras figuram entre as melhores da literatura mundial". Também Tchernichevski escreveu sobre as duas características essenciais de seu talento: o conhecimento da dialética do espírito e a pureza cristalina dos sentimentos morais.
Na época em que viveu, a Rússia concentrava as contradições do imperialismo e se tornou seu elo débil. O império russo era também, por esta razão, o centro do movimento revolucionário mundial. Ao escrever, enquanto narrava a miséria moral das classes dominantes, Tolstoi fez crescer a grandeza do camponês explorado, refletindo seus sofrimentos, dores e cólera.
A obra de Tolstoi pertence a um período histórico marcado pelo desenvolvimento de uma intelectualidade fecunda formada por democratas revolucionários, destacadamente Tchernichevski e Dobroliubov, época em que a questão política central era a luta contra o czarismo e no plano econômico-social, a luta pela libertação do campesinato do regime de servidão. Os democratas revolucionários compreendiam que a terra pertencia inteiramente aos camponeses e faziam chamamentos pela liquidação da autocracia e da propriedade latifundiária. Sem ter pertencido ao movimento dos democratas revolucionários, pacifista e avesso à violência revolucionária, Tolstoi, contudo, refletiu em muitas das suas obras, o drama dos camponeses russos. Homem de fé cristã, cuja ética, não tanto o dogma do cristianismo, está presente em sua criação artística, não deixou de ver e apreender a realidade pela ótica do realismo, capacidade com a qual pôde desvendar as mazelas sociais e as misérias e grandezas da alma humana.
Isto se observa com a evolução da mundivisão do gênio maior da literatura russa. Pela origem e educação que recebeu, Tolstoi pertencia à nobreza proprietária de terras, mas a vida mesma lhe fez compreender o parasitismo de sua classe de origem e as injustiças da ordem social em que se assentava seu domínio, até chegar à conclusão de que se tornava necessário mudar as relações entre a nobreza e o campesinato.
Tolstoi nasceu em 9 de setembro de 1828 em Iasnaia Poliana, nos arredores de Moscou, onde viveu quase toda a sua vida. Estudou na Faculdade de Kazan línguas orientais e direito, sem atribuir grande importância a essa atividade. Em 1851 serviu como oficial do exército czarista no Cáucaso. O contato com os montanheses, gente simples, forte e orgulhosa, aumentou em Tolstoi o sentimento de respeito para com o povo e a fé na sua força, conhecimento e sentimentos que lhe deram a matéria-prima para o romance Os Cossacos, que escreveria mais tarde.
Sua primeira obra foi Infância, parte de uma trilogia autobiográfica que escreveu entre 1852 e 1857, ano em que viajou à Europa Ocidental e conheceu de perto a civilização burguesa. Em Paris presenciou uma execução pública de sentença de morte, ao passo que em Lucerna, na Suíça, testemunhou uma repugnante cena: toda noite um cantor pobre se apresentava para uma malta de burgueses, sem nada receber em troca. Em três dias, o gênio russo escreveu o conto Lucerna, no qual desmascara a falsa moral burguesa, a indiferença dos ricos para com as pessoas simples, sua ignorância e seu desprezo pela arte.
Entre os anos de 1863 e 1869, Tolstoi escreveu a grande epopeia popular da nação russa, Guerra e Paz, obra que se refere a um grande período histórico, de 1805, quando ocorreu a primeira guerra entre a Rússia czarista e a França bonapartista, a 1820, quando começavam a tornar-se perceptíveis os sinais da insurreição dos dezembristas. São 15 anos da história da Rússia, repletos de acontecimentos decisivos. O ambiente histórico impetuoso é o cenário em que vivem os personagens do romance. Tolstoi conduz o leitor através de cenários variados, da vida pacífica às batalhas militares, numa teia de acontecimentos multifacéticos incidindo sobre a vida do povo, herói coletivo da epopeia, e dos personagens individuais da vida privada e familiar.
Guerra e Paz é uma obra-prima da literatura russa e da literatura mundial de todos os tempos. "É como a Ilíada", diria o escritor, com a consciência do que havia realizado. A extraordinária criatividade de Tolstoi, seu conhecimento da psicologia humana, sua percepção da história e da vida social se manifestam com genialidade tanto na descrição de grandes acontecimentos como na criação de personagens, entre os quais avultam Pedro Bezukhov e um ser tão elevado, nobre e belo como Natasha.
A outra grande obra que levou Leon Tolstoi ao panteão da literatura universal foi Ana Karenina. O que o burguês hipócrita de hoje, tal como o aristocrata da época, considera a "história de uma mulher infiel", de uma mulher "bem casada" dos círculos sociais elevados que "se perde", é verdadeiramente a história de uma bela e forte mulher que luta pelo mais elementar direito do ser humano: a felicidade.
Por amor e em busca desse direito, ainda que enganada em sua busca, Ana decide romper com o estado de solidão espiritual em que se encontrava, mercê de um matrimônio infeliz contraído segundo cânones reacionários de uma época reacionária em uma sociedade reacionária.
Em Ana Karenina, o autor agiganta-se como um artista que conhece profundamente a alma humana, atingindo um nível raro de interpretação psicológica e de perfeição artística. Tolstoi retrata, através do amor e da tragédia de Ana Karenina, a decadência moral da aristocracia e a falsidade das suas concepções.
Também ocupa lugar especial na obra de Tolstoi A Morte de Ivan Ilitch. Segundo Paulo Rónai, tradutor da Comédia Humana, de Balzac, muitos críticos consideram-na como "a novela mais perfeita da literatura mundial; a agonia de um burocrata insignificante serve de pretexto ao autor para nos contar uma história que diz respeito ao destino de cada um de nós e que é impossível ler sem um frêmito de angústia e de purificação".
Boris Schnaiderman diz sobre A morte de Ivan Ilitch: "É justamente no período mais intenso destas suas preocupações, na maturidade e na velhice, que atinge o máximo de perfeição num gênero que vinha praticando desde moço - a novela -, e que escreve alguns dos seus contos mais extraordinários. É como se o passar dos anos lhe desse maior capacidade de síntese, como se a reflexão se cristalizasse mais e se decantasse. A Morte de Ivan Ilitch (1884-86), celebrada geralmente como o ápice do gênero novela em toda a literatura mundial, é na realidade o inicio de uma série de trabalhos neste sentido, alguns dos quais podem ser colocados praticamente no mesmo nível".
Ao homenagear o grande gênio da literatura russa, Prosa, Poesia e Arte não pode deixar sem referência outra das suas grandes obras: Ressurreição. Escrito no apagar das luzes do século 19, último dos seus grandes romances, é a expressão mais clara da cólera tolstoiana contra as bases sobre as quais se soerguia o regime czarista, contra a moral e a cultura da sociedade aristocrática.
* José Reinaldo Carvalho é editor do Vermelho. Urariano Mota é jornalista e escritor pernambucano e colunista do Vermelho ==================================================================================================
Urariano Mota: Tolstoi, 100 anos de permanência Ao receber a sugestão de escrever sobre os 100 anos da morte de Leon Tolstoi, a primeira reação foi a de me esconder atrás de uma larga árvore, um baobá imenso. Ali, bem oculto, tentaria responder com palavras que brotassem na terra como plantinhas rasteiras, miúdas: "Não sou digno dessa honra".
Por Urariano Mota*
Para corrigir, mais adiante: "Ele está muito acima do que podem sonhar minhas forças". Mas depois, como um condenado pela natureza, que vence ao fim e derruba a sensatez, concedi: sim, posso tentar alguma coisa.
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Horas mais tarde, preocupado pelo desastre que viria, e contente pela oportunidade desse desastre, eu me dizia, como um preso que suaviza a própria e futura execução: vivi 60 anos, e não é possível que, em pleno vigor abalado dessa idade, não consiga fazer uma apreciação, qualquer uma, sobre um gênio essencial de nossas vidas. Bom, concluí, se assim é, assim vou. E por isso começo.
Deveria dizer, se me permitem usar uma palavra fresca, mais conhecida por circunlóquio, deveria antes dizer:
Assim como é preciso perder a vista, recuperá-la, para saber o sentido insubstituível das coisas, assim como é preciso estar à beira da última hora, do último instante, e pular por sorte ou misericórdia ou azar esse instante, e abrir os olhos para o mundo que todos os nossos sentidos não viam, e só então percebemos e saudamos e salvamos o sol, o azul, o cheiro do mar, do sexo, das algas, do sal, o sabor adormecido como se morto estivesse, assim também às vezes precisamos ler outros livros, conhecer a pequena ou média literatura, e, maldição, até mesmo a ruim literatura, para voltar à revelação, ao bem antigo e renovado, fundamental, para redescobrir : como é bom ler Tolstoi! Ele é um autor que nos enche as medidas, que nos alimenta e nutre numa carência insatisfeita satisfeita contínua. Ler esse gênio da humanidade é como aprender o mundo num salto de conhecimento, e por alcançar esse ponto mais alto querermos outros saltos. Tolstoi, para o artista que está dentro de todo homem, em todos os tempos, é um autor imprescindível, sem o qual seremos todos menores, menos homens humanos.
Não quero, pelo menos como projeto, falar sobre Ana Karenina, Guerra e Paz, A morte de Ivan Ilitch, A sonata a Kreutzer, e de contos de Tolstoi, relatos magníficos, perturbadores, que marcam o espírito do leitor como uma experiência de choque e estremecimento, inesquecíveis. "Magníficos, perturbadores, inesquecíveis" tudo não passa de adjetivos, que nada dizem para quem não conhece Tolstoi, e muito menos dizem para quem o conhece, se não se colam como carne e músculo no esqueleto da citação do escritor. Tentarei chegar a esse ponto. Adjetivos ou são apropriados ou nada são.
Esclareço agora mais precisamente o ponto. De todas as leituras que fiz sobre Tolstoi para entendê-lo, para ter respostas a "quem é esse louco? de que natureza é feita essa percepção?", de tudo com que pretendi pegá-lo, naquela vã vontade de tomá-lo como se pega em bola de sabão, nada mais concreto e complexo se compara ao que sobre ele escreveu Máximo Gorki no livro Três Russos. Atenção, escritores de todas as tendências, atenção, leitores ávidos de conhecimento, atenção, amantes de todas as literaturas, vocês não verão nenhum livrinho, de análise viva e aguda, tão precioso quanto esse livro. De Thomas Mann a André Maurois, das vanguardas russas às europeias, das modas de todo mundo universitário às escolas mais rebeldes, todos reconhecem o valor de Três Russos, de Máximo Gorki. Os três russos do livro são, apenas: Tolstoi, Tchékhov e Andreiev. Entendam a razão. Cito com prazer, digito com paciência frases referentes a Tolstoi:
"Uma tarde, ao crepúsculo, ele lia, piscando os olhos e remexendo as sobrancelhas, uma variante da cena do Padre Sérgio, em que uma mulher se dirige à casa do eremita para seduzi-lo. Quando acabou de ler, levantou a cabeça e, fechando os olhos, pronunciou distintamente:
- Escreve bem isto, o velho! Muito bem!
Tolstoi descreveu o drama dos camponeses russos Isso nele foi de tão admirável simplicidade, sua admiração pela beleza era tão sincera, que não esquecerei jamais a alegria que senti nesse momento, uma alegria que eu não podia nem sabia exprimir, mas que tive também grande pesar em reprimir. Por um instante meu coração cessou de bater, mas depois tudo, em volta de mim, se tinha tornado novo e de um vivificante frescor".
No Padre Sérgio, o relato a que Gorki se refere, há uma intensa e tantalizante cena de sedução do padre, um eremita, que no vigor dos 49 anos quer se entregar de corpo e alma a seu Deus, recolhido em retiro. No entanto, uma bela e rica mulher, por diversão, aposta e leviandade quer testar em um só golpe a própria beleza e a dedicação do eremita. Traduzo um breve trecho de El Padre Sergio, que está online em http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/rus/tolstoi/padre.htm, site de língua espanhola:
"- Você não entrará aqui? - perguntou a mulher, rindo-se. - Vou tirar a roupa pra secar.
O padre Sérgio não respondeu e continuou rezando suas orações do outro lado do tabique, com a mesma voz tranquila.
'Este, sim, é um verdadeiro homem', pensou ela tirando com dificuldade a bota molhada. Mas por mais que tentasse, não podia tirá-la bem, e isso lhe pareceu engraçado. Riu baixinho, mas sabia que ele ouvia o seu riso, e que esse riso influía nele do modo que ela desejava. Então riu mais alto, e aquele riso alegre, natural e bondoso influiu realmente sobre o padre Sérgio tal como ela queria.
'A um homem como este se pode amar. Que olhos ele tem! E que rosto mais aberto, mais nobre e mais apaixonado, mesmo que reze muitas orações - pensou ela. As mulheres não nos enganamos. Tão logo ele aproximou o rosto no vidro da janela e me viu, eu o entendi e soube. Eu li no brilho dos seus olhos. Ele me amou, me desejou. Sim, ele me desejou', dizia, tirando por fim a bota e depois as meias. Mas para tirar aquelas compridas meias, presas em ligas, tinha que levantar a saia...".
E mais não falo do Padre e do castigo violento que ele se impôs, como uma confissão de derrota ante a força do sexo. O ato do padre, na violência que se faz, é de aparente desobediência ao impulso irreprimível da carne, como uma lava de vulcão contra a própria incapacidade de abafar o sexo como ele queria. Isso chama a atenção para o criador complexo em Tolstoi. Ele realiza uma narração impiedosa e captadora do movimento do real, ao mesmo tempo que narra ao lado, ou nas entranhas, por sugestão ou arte do diabo, suas convicções moralistas, aqui e ali se confundindo com um pregador de uma nova igreja. Notem como ele critica uma personagem de Gorki, num primeiro e franco contato:
"Tolstoi me fez sentar à sua frente e se pôs a falar de Varenka Olessova e de Vinte e seis e uma. Fiquei atordoado pela voz dele, de tal modo falava crua e brutalmente demonstrando que o pudor não era próprio da natureza de uma jovem sadia:
- Uma moça que passou dos quinze anos, que tem um bom físico, deseja que a beijem, que mexam com ela. A razão dela teme ainda o desconhecido, o que ela não compreende, e é o que se chama de castidade, pudor. Mas a carne já sabe que o incompreensível é inevitável, legítimo, e exige que a lei se cumpra, a despeito da razão. No entanto, em casa essa Varenka, que você descreve como boa e forte, tem sensações de anêmica. Isso é falso! "
Dir-se-ia, nessa crítica forte, que ele era um realista sem freio, ou, pior, um naturalista, ou mesmo, numa miserável caricatura, um criador devasso. Mas o que dizer, para ficar no mais simples, do seu conto Os três Anciãos, que em algumas editoras chamam de Os três Eremitas? É um conto breve e cortante como quicé, a nos derrubar pela graça, ainda que pregue o valor de um milagre gerado pelo amor absoluto a Deus. Só lendo para sentir como a mão do mestre põe três velhinhos a caminhar sobre as águas na maior naturalidade. É comovente a ideia que a narração nos deixa, ao opor a ingenuidade de três velhinhos simples, ignorantes dos rituais e das exterioridades da Igreja, e que, por isso mesmo, conseguem maravilhas. Nesse conto, Tolstoi nos põe naquele reino do maravilhoso que é, apesar da maravilha, terreno e cruel, à semelhança do conto de A pequena vendedora de fósforos, de Andersen, onde uma criança, faminta, sobe e vira estrela na noite de Natal.
A lembrança da narrativa curta 'Os três Eremitas' nos faz chegar a um conto que é uma revelação. Fala-se tanto no imenso romancista, que até parece não existir um prosador magnífico em narrações breves. É natural que o Tolstoi romancista receba com frequência um merecido destaque. Afinal, Guerra e Paz, Ana Karenina são livros que estão em um dos pontos máximos do romance. Mas aqui, ao mesmo tempo em que se destaca, comete-se uma severa injustiça. A mesma daquela que realça o mais proeminente em um homem, para daí se esquecer o valioso que não tem a mesma presença, de império avassalador. Não só de tronco, pernas e cabeça se faz uma pessoa. Às vezes há uma infinita e complexa delicadeza no traço das mãos. Quero me referir ao conto Depois do baile. Penso que um escritor, depois de escrevê-lo, poderia dizer-se, "cumpri o meu dever, todos os meus pecados foram pagos". Para quem não o tem na estante, ele pode ser lido online, em espanhol, aqui http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/rus/tolstoi/despues.htm (É impressionante, observo de passagem, o quanto o mundo em língua espanhola é mais civilizado.)
Falo desse conto sem o ver, somente com a impressão que me ficou e me acompanha até hoje. Nele se ressalta uma imensa vergonha por um ato desonroso, que é mais sensível em pessoas que acabam de se acovardar, por egoísmo ou medo. O leitor acaba o conto e em vez de jogá-lo a um canto, pergunta-se a si mesmo, como eu me perguntei e me pergunto até hoje: "quantas vezes isso já não ocorreu a mim nos meus dias?" Então a imensa desonra do personagem passa a ser do leitor também, porque, afinal, todos cometemos pequenas ou grandes indignidades. E que disfarçamos com discursos enganadores. A segunda impressão, mas dessa vez feliz, que me deixou Depois do Baile foi a idade do autor quando o escreveu: 75 anos. Que coisa bonita e que esperança ele plantou em nossos corações, porque se um homem é capaz de um conto tão magnífico nessa idade, isso quer dizer que poderemos esperar uma criadora atividade por muitos e muitos anos.
Em "Tolstoi - antiarte e rebeldia", Boris Schnaiderman ressalta com muita propriedade:
"Realmente, é injusto falar em decréscimo da capacidade criativa de Tolstoi por causa da velhice, como se faz muitas vezes. Ele continuava um vulcão, sempre escrevendo, com mil planos fervilhando.
O conto 'Depois do Baile' data de 1903, quer dizer, escrito aos setenta e cinco anos, mas é certamente uma das obras mais perfeitas que produziu. Poucas vezes, em literatura, o fato da alienação, do alheamento do homem em relação aos seus semelhantes, que permite suportar com a maior tranqüilidade o sofrimento do próximo, vê-lo com indiferença e até participar de atos iníquos, foi descrito com esta mestria. E o indivíduo sensível, que se revolta interiormente contra a injustiça, torna-se um marginal, um ser inferior na sociedade (embora no início do relato se diga que ele era 'respeitado por todos')".
Haveria ainda que falar dos conflitos conjugais de Tolstoi, que trazia para dentro do seu casamento os imperativos e dilemas dos personagens de seus contos, ensaios e romances. Ainda que de passagem, não posso privar os leitores destas linhas, que copio de Boris Schnaiderman, o fecundo intelectual ucraniano que tanta alegria trouxe à civilização brasileira. São de Boris Schnaiderman:
"Evidentemente, isto (os diários de Tolstoi, onde ele expunha sem reservas o que via e sabia da própria mulher) atormentava Sofia Andrêievna. E esta mulher extraordinária vingou-se do marido do modo mais terrível: escreveu também os seus diários, onde contava os detalhes mais íntimos de sua vida com ele, inclusive pormenores de vida sexual, embora ao mesmo tempo tivesse pudores de colegial, chegando a referir-se ao cicio menstrual como 'as minhas circunstâncias femininas'. Eis uma anotação sua de 1863, portanto um ano após o casamento: 'Ele é velho e demasiadamente absorto. E eu sinto hoje tão forte a minha mocidade, tenho tanta necessidade de um pouco de loucura! Em vez de dormir, eu gostaria tanto de dar cambalhotas. Mas com quem?' E ainda no mesmo ano: 'Eu sou a satisfação, a criada, o móvel com o qual se está acostumado, a mulher.' Enfim, era uma digna companheira de Tolstoi, com extremos de lucidez e oscilação entre a paixão mais ardente e o moralismo mais violento.
A tragédia final teve como desencadeante os malfadados diários. Tolstoi anotaria que na noite de 27 para 28 de outubro despertou com a luz intensa que vinha de seu escritório: era Sofia Andrêievna que procurava algo e provavelmente lia (às escondidas os diários do escritor). Revoltado, decidiu abandonar tudo. E realmente, partiu por volta das cinco da manhã, deixando uma carta de despedida para a mulher, onde lamentava o desgosto que lhe estava causando, mas afirmando que não podia proceder de modo diferente".
Com esse rompimento, Tolstoi fugiu do casamento e de Sofia, mas rumou para a sua última caminhada, que terminou numa distante estação ferroviária. Ali expirou. Os seus pecados haviam sido perdoados, por força de sua angústia, criação e verdade.
Aqui também encerramos. Reconheço, ao fim, que escrevi muito aquém do que pretendia escrever. Tudo que rascunhei até este ponto era só pretexto para copiar uma lição fundamental de literatura, que Máximo Gorki gravou para todos nós. Pois lhe disse um dia Tolstoi, e Máximo Gorki assim nos transmitiu:
Guerra e Paz reflete a epopeia popular da nação russa: ilustração da retirada do exército de Napoleão da Rússia (1812)
"- Em Moscou, perto da Torre Sukharev, num beco, vi no outono uma mulher embriagada. Estava deitada, bem junto ao passeio. Do pátio de uma casa vinha se escoando um enxurro de água imunda, que escorria mesmo por sua nuca e suas costas. A mulher deitada nesse molho frio resmungava, agitava-se. Seu corpo recaía, agitando na imundície. Ela, porém, não conseguia se levantar.
Tolstoi estremeceu, fechou os olhos, balançou a cabeça e propôs afavelmente:
- Sentemo-nos aqui.... Uma mulher embriagada é a coisa mais horrível e ignóbil que há. Eu quis ajudá-la a se levantar, mas não pude me decidir a isso. Tive um excessivo desgosto: ela estava tão pegajosa, tão molhada; quem a tocasse não teria sido bastante um mês para limpar as mãos. Que horror! E durante esse tempo estava sentado no meio- fio da calçada um rapazinho louro, de olhos pardos, as lágrimas corriam ao longo de suas faces, fungava e repetia numa voz desesperada: "Ma-mãe... então, levante-se". Ela mexia os braços, dava um grunhido, erguia a cabeça e recaía de novo, flac! com a cabeça na lama.
Calou-se, depois olhando bem em volta de si, repetiu ansiosamente, quase num murmúrio:
- Sim, sim, é horrível! Você tem visto muitas mulheres embriagadas? Muitas, sim, ah, meu Deus! Não descreva isto, não é preciso!
- Por quê?
Olhou-me nos olhos e repetiu sorrindo:
- Por quê?
Depois disse lentamente com um ar pensativo:
- Não sei. Eu disse isso assim... tem-se vergonha de escrever porcarias. E, no entanto, por que não? É preciso escrever sobre tudo...
Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Enxugou-as e, sempre sorrindo, olhou o lenço, enquanto as lágrimas continuavam a correr ao longo de suas faces.
- Eu choro. Sou velho e me aperta o coração quando evoco uma lembrança horrorosa.
E me empurrando ligeiramente com o cotovelo:
"Você também quando tiver vivido sua vida, ao passo que tudo permanecerá como dantes, você chorará, e ainda mais do que eu, 'aos baldes', como dizem as mulheres do povo. Mas é preciso escrever tudo, sobre tudo. De outra forma o rapazinho louro nos quereria mal, nos censuraria. 'Não é a verdade, não é toda a verdade', dirá ele. E ele é severo no que se refere à verdade".