Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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terça-feira, 5 de junho de 2012

Vandana Shiva: "financeirização da economia está na raiz da crise"


Em entrevista à Carta Maior, a ativista indiana Vandana Shiva fala sobre suas expectativas em relação a Rio+20. Ela não acredita que a conferência da ONU consiga firmar compromissos de mudanças mais significativas em função da influência das grandes corporações. Neste cenário, defende, o papel da Cúpula dos Povos adquire maior importância. Para Vandana Shiva, a crise atual não poderá ser resolvida com mais financeirização e mais mercantilização.

     Vandana Shiva, que participará da Rio+20 e da Cúpula dos Povos, é a autora do livro ‘The Violence of Green Revolution’ de 1991 (A Violência da Revolução Verde), uma leitura obrigatória para o debate sobre a produção agrícola alterada pela ‘Revolução Verde’; ‘revolução’ que trouxe para o plano agrícola a lógica que impôs o uso de pesticidas e sementes transgênicas, dentre muitas outras modificações, que Vandana explora profundamente em seu livro, infelizmente ainda sem tradução para o português.
     Ela é defensora dos direitos humanos e do meio ambiente, os quais infelizmente muitas vezes são defendidos como causas separadas, mas que possuem intrínseca conexão pois os dois são explorados, cada um a sua forma, pela lógica econômica capitalista. 
     Vandana trabalha por uma economia verde sem dogmas e não foge ao debate sobre questões necessárias para barrar o avanço da situação que se encontram tanto trabalhadores, como natureza. A ativista também levanta a bandeira da situação das mulheres indianas, da segurança alimentar e da preservação dos povos e culturas locais. É fundadora da ONG indiana Navdanya, que, entre outras agendas, estimula a agricultura orgânica local. 
Infelizmente seu livro "The Violence of Green Revolution" não foi traduzido para o português até hoje. Você poderia trazer ao nosso leitor uma exposição dá época em que ele foi escrito juntamente de uma análise dos desdobramentos que se deram dos anos 80 prá cá em relação as perdas da agricultura, não só na Índia como nos outros países. 
Comecei a fazer a pesquisa sobre a violência da Revolução Verde em 1984, ano da violência no Punjab, onde a Revolução Verde foi implementada pela primeira vez em 1965. A Revolução Verde teve um Prêmio Nobel da Paz, mas em 1984, Punjab era uma terra de guerra. 30.000 pessoas foram mortas pela violência em Punjab, que é um número 6 vezes maior do que os mortos na tragédia do 11/9. O ano de 1984 foi também o ano do desastre de Bhopal, onde uma fábrica de pesticidas, da ‘Union Carbide’ (hoje Dow), vazou e matou 3.000 pessoas. Desde então, 30.000 pessoas morreram.. Hoje a Índia é a capital da fome e dos suicídios de agricultores. Desde 1997, 250.000 agricultores foram presos por dívidas e tiraram suas vidas. 
A senhora traçaria um paralelo entre o modo de produção voltado ao abastecimento e especulação do mercado, as reservas naturais e as condições que se encontram a mão de obra trabalhadora no seu país? Outras regiões do mundo trariam condições semelhantes?
O modelo econômico dominante desperdiça recursos e pessoas. Apesar destes resíduos serem chamados de "eficiente" e "produtivo". Ele substituiu a produção com a especulação do capital financeiro, e do consumismo para as pessoas. Este modelo é: destruir a natureza e a sociedade em si. 
Reformas ou Revolução? O que e o porque a senhora acredita ser necessário para impedir o avanço da situação de degradação das condições tanto humanas quanto naturais contemporâneas?
Duas coisas são necessárias para acabar com essa deterioração. Em primeiro lugar, uma mudança de paradigma e visão de mundo. Em segundo lugar, as pessoas levantarem-se coletivamente e dizer "Basta". Chega. 
A senhora terá a oportunidade de participar da Rio+20 e da Cúpula dos Povos. Quais seriam na sua opinião, as limitações e as contribuições que cada uma delas poderão nos trazer?
A Rio+20 será limitada em firmar compromissos em função da influência das grandes corporações. Essas contribuições podem ser significativas, se reconhecerem a necessidade de restabelecer a harmonia com a natureza - objeto de uma sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas no ano passado - e se reconhecerem que a agricultura ecológica é o caminho para a proteção do planeta e da Segurança Alimentar. A Cúpula dos Povos, os Direitos da Mãe Terra, e o compromisso para uma transformação serão vitais. 
Não haveria uma lógica comum entre os mecanismos financeiros criados em torno da questão ambiental e ativos financeiros comuns? Esta mesma lógica é capaz de lidar com problemas ambientais, criados muitas vezes por ela própria? O que a senhora poderia falar sobre este assunto?
Há um provérbio africano que diz: "Você não pode colocar um bezerro dentro de uma vaca bezuntando-o com lama". A financeirização da economia e a consequente redução da economia a um casino, e os recursos do planeta e processos em mercadorias privatizadas, são a a raiz das crises ecológicas e econômicas. Estas crises não podem ser resolvidas por mais financeirização e mercantilização.
Nossa fonte: Carta Maior

Para as novas gerações, a recuperação de uma página importante

UNE: Uma página Perdida da História


 Augusto C. Buonicore**

A Honestino, Helenira, Umberto, Gildo e Mata Machado, mártires da juventude e do povo brasileiro.
       A bibliografia sobre o movimento estudantil na década de 1960 tende a considerar que ele teria terminado com a queda do 30º Congresso da UNE, em outubro de 1968, ou, no máximo, com a decretação do Ato Institucional número 5, ocorrida em dezembro daquele mesmo ano. Esses autores, em geral, partem de uma concepção mais restrita do que seja o movimento estudantil, vinculando-o apenas às grandes manifestações de massas. Passeatas dos 100 mil, no entanto, são acontecimentos relativamente raros em nossa história.
      Após o AI-5 as lutas estudantis entraram numa fase de refluxo, mas não deixaram de existir. Ainda em abril de 1969 realizou-se uma plenária nacional - considerada por todos como legítima continuadora do 30º Congresso da UNE. Nela, se elegeu uma nova direção na qual Jean Marc Von Der Weid (da AP, Ação Popular) era o presidente. Ao contrário da gestão anterior - composta pelas principais correntes de esquerda, excluindo o PCdoB -, essa era uma composição que envolvia apenas a AP e o PCdoB.
     Na chapa vitoriosa representavam o PCdoB os estudantes João de Paula (CE), Helenira Resende (SP), Ronald Rocha (RJ) e Aurélio Miguel (BA). Pela AP, além de Jean Marc (SP), havia Honestino Guimarães (DF), Valdo Silva, Umberto Câmara, José Carlos da Mata Machado, Dora Rodrigues de Carvalho (MG).
     Um segundo Conselho Nacional se realizou em julho numa fazenda na Baixada Fluminense. Ali se fizeram as primeiras alterações na composição da diretoria da UNE, com substituições de diretores que haviam sido presos. Na ocasião, saiu João de Paula, preso no Paraná, e ingressou José Genoino Neto também do PCdoB. Pela AP ingressaria Gildo Macedo Lacerda.
     Segundo alguns participantes, neste Conselho se reuniram cerca de setenta delegados, representando a maioria dos estados brasileiros. Era um número expressivo tendo em vista o clima de repressão reinante depois do AI-5. O encontro não chegou ao fim porque na região ocorreu uma operação antiguerrilha do Exército, e os delegados, por segurança, tiveram de fugir. Por sorte, desta vez, ninguém foi preso.
     Ser dirigente de uma entidade estudantil naquela época implicava graves riscos, inclusive de vida. Em 1º de setembro Jean Marc foi preso e muito torturado. Ele só seria libertado em janeiro de 1971, por ter sido um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço. Dos diretores desta gestão apenas Dora escapou de ser presa, torturada ou morta. Contudo, amargou um longo período de clandestinidade e exílio interno.
          Depois de um breve impasse sobre como se daria a substituição de Jean Marc - inclusive, se deveria ser substituído ou mantido simbolicamente na presidência -, foi decidido que Honestino Guimarães assumiria o cargo vago. Ele era, na época, uma das principais lideranças da Ação Popular, e muito querido entre os estudantes.
     Logo em fevereiro de 1969, antes mesmo da plenária nacional, a ditadura aprovou o famigerado Decreto-lei 477, pelo qual os líderes estudantis, considerados perigosos à ordem ditatorial, ficavam proibidos de se matricular em qualquer estabelecimento de ensino durante três anos. Nova onda de cassações também atingiu o corpo docente. Os centros acadêmicos livres foram fechados e substituídos por entidades atreladas à direção das escolas. Esse decreto, para muitos, foi o AI-5 da educação.
     A diretoria da UNE assumiu a luta contra esse decreto fascista, organizando várias manifestações. Após a prisão de Jean Marc - e a divulgação de sua contundente carta-denúncia -, recrudesceu a campanha nacional de denúncias dos crimes da ditadura militar, pela libertação dos presos políticos e contra a tortura.
     Um dos atos mais ousados - e temerários - desta gestão foi a greve com ocupação da Faculdade de Filosofia da UFRJ, onde o PCdoB tinha muita força. Era uma resposta à tentativa da ditadura de fechar a instituição. Ocorreram choques violentos com a polícia política e, no final, centenas de estudantes foram presos. Por isso, alguns participantes afirmaram que a forma de luta encontrada não se adequava ao momento de refluxo vivido pelo movimento estudantil e popular.
     De fato, a maioria das correntes de esquerda - incluindo o PCdoB - não havia avaliado adequadamente a nova correlação de forças que se abria no final de 1968. Via o AI-5 apenas como um sinal de fraqueza e isolamento do regime militar. Acreditava que existiam todas as condições de retomar o movimento de massas no mesmo patamar do período anterior. Um grave erro que seria responsável por algumas derrotas. Embora ainda houvesse certa margem de manobra dentro de algumas poucas escolas. Isso, no entanto, acabaria nos meses seguintes.
     Outro marco importante do movimento estudantil foi a realização de expressivas manifestações contra a visita do secretário de Estado estadunidense Nelson Rockfeller. Não conseguiram reunir o mesmo número de pessoas das grandes manifestações do ano anterior, quando as lutas estudantis estavam no seu auge. Contudo, não fizeram feio. Jean Marc afirmou que cerca de 30% das faculdades chegaram a paralisar durante dois dias. Estes atos representaram uma derrota à ditadura militar, que se gabava de ter acabado com as entidades nacionais estudantis.
     Os conselhos da UNE continuaram se realizando clandestinamente - sob uma ditadura cada vez mais violenta. Houve um encontro logo no início de 1970 e outro no mês de julho na cidade de Salvador. Neste ano sombrio ocorreram atos internacionalistas contra os bombardeios criminosos realizados pelo imperialismo estadunidense contra o povo do Vietnã e do Camboja. A UNE, também, participou da campanha pelo voto nulo e contra a farsa eleitoral da ditadura. E o resultado desse clima político foi o alto índice de votos anulados e em branco naquela eleição.
     A diretoria da UNE continuou se reunindo. Entretanto, não podia mais fazer atividades públicas. Os diretores da entidade - cercados por um aparato de segurança - apareciam de surpresa em assembleias e reuniões relâmpagos nas escolas. Mantinham contatos esporádicos e rápidos com os dirigentes dos Diretórios Acadêmicos. Uma de suas principais atividades consistia em distribuir o jornal Movimento, órgão oficial da entidade. Esta era a forma encontrada de dizer à ditadura: estamos vivos!
     Esta gestão da UNE (1969-1971), presidida por Jean Marc e Honestino Guimarães, travou uma luta heroica para manter minimamente organizado o movimento estudantil num período muito difícil da história brasileira. Como afirmou Gaspari, tínhamos saído de uma "ditadura envergonhada" para ingressarmos numa "ditadura escancarada". A quase totalidade de seus dirigentes nacionais foi presa e barbaramente torturada. Vários deles foram assassinados pela repressão. Este foi o preço pago para manter tremulando a bandeira da UNE e da resistência democrática e popular no Brasil.
     Antes mesmo de terminar aquela gestão, Helenira Resende e José Genoino foram deslocados para a região do Araguaia, onde se preparava o desencadeamento de uma guerrilha rural. Helenira morreria em combate, Genoíno seria preso e torturado. João de Paula, depois de uma passagem por uma base rural do PCdoB no Vale do Ribeira, rumou para o exílio.
     Muitos autores acreditam que esses deslocamentos para o campo teriam representado um abandono dos movimentos sociais urbanos pela direção do PCdoB, como se a grande maioria de seus quadros tivesse sido deslocada para o trabalho de preparação da guerrilha rural. Esta ideia, no fundamental, é falsa. O Partido, na medida do possível, procurava atuar no que existia de movimentos sociais organizados, especialmente o estudantil. Lembremos apenas que a repressão e as dificuldades organizativas impostas por ela haviam aumentado em escala geométrica após o AI-5.
     Contudo, mesmo nos períodos mais duros, houve certa renovação de quadros partidários, destacadamente jovens. A União da Juventude Patriótica (UJP) no Rio de Janeiro e o Movimento de Resistência Popular (MRP) em São Paulo - ambos organizados pelo PCdoB entre 1971 e 1973 - são provas disso.
O Congresso e a diretoria que desapareceram
   Quando José Serra discursou na abertura do congresso de reconstrução da UNE em 1979, referiu-se a ele como 31º Congresso. A partir de então a grande maioria dos autores passou a fazer o mesmo. Esqueceram, no entanto, que já havia ocorrido um outro congresso com a mesma numeração. Para sermos justos devemos dizer que uma das poucas exceções à regra foi o livro História da UNE, organizado por Nilton Santos e publicado em 1979. Nele consta a realização daquele congresso e, inclusive, é publicada uma entrevista com um dos diretores eleitos: Neuton Miranda.
     O 31º Congresso original realizou-se entre setembro e outubro de 1971. Nele, Honestino Guimarães se reelegeu para a presidência da entidade. Aquela foi uma reunião realizada na mais dura clandestinidade e com a participação de poucos delegados, eleitos em encontros estaduais e regionais. Neuton Miranda afirmou: "Impossibilitados de realizarmos grandes reuniões, com ampla participação, a realização desse congresso envolveu várias fases que iam desde a retirada dos delegados por escola, à realização de reuniões por estado, às regionais e por último uma reunião nacional. Esse processo durou vários meses, tendo começado ainda em 1970".
     O processo se iniciava nos cursos em reuniões convocadas pelos Diretórios Acadêmicos, segundo as condições de segurança de cada universidade. Atualmente não existem dados exatos sobre a quantidade de estudantes que participaram dessas reuniões. Acredita-se que tenha sido 200 o número dos eleitos. Esses, por sua vez, se reuniram em conselhos estaduais ou regionais: um na região Norte (realizado no Pará), três no Nordeste (em sedes na Bahia, em Pernambuco e Ceará), no sul (com sede no Rio Grande do Sul), Minas Gerais, Rio de Janeiro (possivelmente abarcando o Espírito Santo), São Paulo e Brasília (possivelmente abarcando o Centro-Oeste). Ronald, que nos forneceu estas informações, falou que apenas em Minas Gerais foram eleitos 40 delegados e no Rio de Janeiro 20. Delegados eleitos para os encontros regionais e não o nacional.
     Foram estes fóruns que indicaram os representantes para participar do 31º Congresso da UNE, numa proporção de um por estado. O indicado já trazia a posição da maioria do encontro regional e, possivelmente, os votos para composição da nova diretoria. A plenária final se reuniu no Rio de Janeiro e teve a participação de algumas dezenas de estudantes. Foi, de fato, um congresso da vanguarda estudantil e não um encontro de massas, como o de Ibiúna. Um congresso realizado nas condições que a conjuntura repressiva permitia.
    Este, portanto, foi o processo mais amplo - e mais democrático - que se poderia realizar naquele momento. Por isso, foi reconhecido pelos que ainda atuavam no movimento estudantil. O jornal A Classe Operária, órgão oficial do PCdoB, assim anunciou o evento: "A realização vitoriosa do 31º Congresso da UNE significa novo estímulo à luta das forças patrióticas e populares. Comprova que é possível e indispensável mesmo sob o tacão dos militares fascistas, realizar a luta pelos interesses das massas e que a juventude estudiosa poderá cumprir com sucesso sua missão de impulsionadora da revolução popular". O Congresso, além da nova diretoria, aprovou uma carta aos estudantes.
     A AP e o PCdoB, que ainda mantinham atuação nas entidades de base, obtiveram uma grande maioria. Há de se destacar que, naqueles anos, a correlação de forças entre o PCdoB e a AP se equilibrou, chegando mesmo o primeiro a ter uma pequena vantagem nos fóruns estaduais e na plenária final do Congresso. Um acordo firmado anteriormente garantiu que AP se mantivesse na presidência da entidade e o nome escolhido por consenso foi o de Honestino Guimarães. Este já era o presidente, pois havia substituído Jean Marc após a sua prisão em 1969.
    O PCdoB, por sua vez, ficou com a maioria dos cargos na diretoria. O Partido elegeu Ronald Rocha (RJ), Marco Aurélio (MG), Rufino (CE), Maria Emília (BA), Jorge Paiva (SP) e Luís Oscar (RS). A AP indicou Honestino Guimarães (DF), Umberto Câmara (PE), Neuton Miranda (MG), Alírio Guerra (RN) e Pedro Calmon (RS). Neuton e Alírio ingressariam no PCdoB entre 1972 e 1973. Como podemos notar ocorreu uma grande renovação de dirigentes, especialmente entre os comunistas. Uma renovação que só pode ter sido fruto de um trabalho político no interior das escolas.
     A argumentação para o não reconhecimento daquele congresso apareceu no próprio livro organizado por Nilton Santos. Nele se afirmava que não foi reconhecido "devido à sua pouca representatividade e às condições em que foi realizado". Outros tentaram remediar a situação afirmando que o Congresso de Reconstrução (1979) foi uma continuação do congresso de 1971. Por isso teria o mesmo número. O problema é que - ao contrário do que aconteceu com o Congresso de Ibiúna - o 31º se reuniu, aprovou uma carta-programa e elegeu uma diretoria.
     Refutando os que negaram o reconhecimento do congresso de 1971, Ronald Rocha declarou: "o argumento é inaceitável uma vez que significaria imputar ao movimento estudantil e à sua entidade máxima a responsabilidade pelas situações e limites impostos pelo terrorismo de Estado (...). Seria deslocar o conceito de representatividade de suas condições histórico-sociais de existência". Posição com a qual estou de acordo. Não cabe a nós - passados quase 40 anos - questionarmos a representatividade e a decisão soberana daqueles jovens combativos que colocaram suas vidas em risco para manter a entidade de pé.
     Esta gestão viveu uma conjuntura ainda mais difícil que a anterior. O próprio Neuton Miranda descreve a situação: "Logo nos primeiros meses, quase a metade da diretoria foi presa e submetida às mais bárbaras torturas, o que dificultou em muito o nosso trabalho. O movimento de massas que havia nessa ocasião não era suficientemente forte para permitir que atuássemos abertamente, participando de reuniões, assembleias e outras manifestações estudantis, em nome da UNE, como ocorria até 1968". Eles tentaram e não conseguiram romper o cerco ditatorial.
     Em 1972 a UNE, ao lado das entidades de base, realizou atividades comemorativas do cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Era o que dava para fazer naquele momento. Em novembro 11 mil estudantes da USP, em plebiscito, disseram não ao ensino pago. O ministro-coronel Jarbas Passarinho chegou a falar em "conluio da esquerda radical e a classe rica". O nome da UNE ainda circulava de boca em boca nos corredores das universidades, embora não se pudesse conhecer mais a fisionomia de vários de seus dirigentes.
     A UNE continuou sua luta pelos direitos humanos, contra as prisões, as torturas e os assassinatos dos opositores ao regime. O ápice desse processo foram as manifestações públicas contra o assassinato do estudante da USP Alexandre Vannucchi Leme, ocorrido em março de 1973. Este, possivelmente, foi o último acontecimento de que a UNE clandestina, mortalmente ferida, participou. Não era mais possível sobreviver naquelas condições tão desfavoráveis.
     Esta gestão heroica resistiu até o final 1973, quando, finalmente, foi destroçada pela repressão. Honestino Guimarães e Umberto Câmara foram sequestrados e mortos em outubro. No mesmo mês caíram José Carlos Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda. Assim, em poucos dias, os principais dirigentes estudantis da AP-ML foram brutalmente assassinados.
     Ronald Rocha foi preso e torturado ainda em 1972. Neuton Miranda foi obrigado a entrar na clandestinidade ainda em 1971 e, no ano seguinte, acabou sendo condenado à revelia a dois anos de prisão. Continuou na direção da entidade até o fim.
     Numa entrevista dada ao Vermelho, Ronald Rocha afirmou: "Nunca, porém, tomamos a decisão de cerrar as portas da entidade ou renunciar aos mandatos. Estou convencido de que essa atitude de resistência, sem capitulação e sem derrota definitiva, facilitou a reorganização da entidade máxima dos estudantes brasileiros alguns anos depois, sem uma lacuna abissal que liquidasse a tradição e a memória coletivas". Mesmo depois do seu desmantelamento, nos muros das universidades mutiladas, ainda podia se ler: "A UNE SOMOS NÓS!".
"Não existem linotipos?
 Não existem rotativas?
 Que importa, meu companheiro?
 Há sempre uma mão altiva
 pegando um giz ou pincel.
 E há muros pela cidade
 se nos negarem papel".
"Isso é história, companheiro.
História que tu escreveste
à margem das linotipos,
à margem da rotativa
e das tiras de papel.
História que tu escreveste
tendo ideal, mão altiva,
toco de giz ou pincel".
(O povo escreve a história nas paredes, do comunista Mário Lago)


Agradeço especialmente a Ronald Rocha e Neuton Miranda, ex-diretores da UNE, pelas entrevistas concedidas.
* Artigo publicado originalmente no Portal Vermelho em outubro de 2008.


** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e autor de Marxismo, história e revolução burguesa: Encontros e desencontros.
Bibliografia
COELHO, Maria Francisca Pinheiro. José Genoino: escolhas políticas, São Paulo: Centauro, 2007.
DEPOIMENTO DE Jean Marc ao projeto Memória do Movimento Estudantil da Fundação Roberto Marinho.
DIRCEU, J. & PALMEIRA, V. Abaixo a ditadura: o movimento estudantil contado por seus líderes, Garamond, 1998.
FREITAS, Mariano. Nós, os estudantes, Fortaleza (RE): Livro Técnico, 2002.
MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento Estudantil e Ditadura Militar (1964-1968), Papirus, 1987.
PARANÁ, Denise. Entre o sonho e o poder: a trajetória da esquerda brasileira através das memórias de José Genoino, São Paulo: Geração Editorial, 2006.
PETTA, Augusto. "Congresso da UNE 68: quando a defesa de teses acontece na cadeia", in Colunas Vermelho.
POERNER, Artur José. O Poder Jovem, Civilização Brasileira, 1979.
REIS FILHO, Daniel Aarão & MORAES, Pedro de. 68: a paixão de uma utopia, FGV, 1988.
ROMAGNOLI, L. H. & GONÇALVES, Tânia. História Imediata: A volta da UNE - De Ibiúna a Salvador, São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.
SANFELICE, José Luís. Movimento Estudantil: a UNE e a resistência ao golpe de 1964. Autores Associados, 1986.
SANTOS, Nilton. História da UNE, vol. 1. Depoimentos de ex-dirigentes, Livramento, 1979.

A gestão de esquerda e o socialismo


Pode ser que tenhamos alguns dos problemas de gestão assinalados por Tarso Genro, mas creio fortemente que, acima de qualquer coisa, temos um problema de comunicação e de convocação da juventude para participar das reformas que levem à construção de uma sociedade solidária. Precisamos mudar nosso discurso, mudar nossa convocatória aos jovens, não através de temas econômicos, mas sim de justiça social. Pobre linguagem a nossa. O artigo é de Luis Porto.

(*) Segundo artigo da série publicada pelo semanário Brecha que propôs um debate para lideranças políticas uruguaias a partir de um artigo do governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sobre os limites e desafios, para a esquerda, de governar e, ao mesmo tempo, não abandonar a reflexão teórica e as ideias da utopia socialista.

A Frente Ampla se guia pelo programa de governo e não é inútil recordar que, se alguém baixar o “Programa da FA 2010-2015”, do V Congresso de dezembro de 2008, e digitar “socialismo” no mecanismo de busca, aparecerá uma resposta automática: “Não foi encontrada nenhuma ocorrência”. Por tanto, “as coisas a resolver”, “as alianças” do governo e a “relação com os eleitores”, mencionadas por Tarso Genro em seu artigo, já estão pré-determinadas por um programa de governo que não fala em “socialismo”.

Segundo os estudiosos da ontologia da linguagem, somos o que dizemos, e não dizemos socialismo. O que não tem evitado que o governo faça esforços para reduzir as desigualdades geradas pela sociedade capitalista. 

O que nos guia, na gestão do governo, é o conceito de “equidade”, conceito que aparece no programa de governo em várias oportunidades e concepções: de gênero, étnico-racial, de oportunidades, de receitas, de direitos...

Portanto, não se pode dizer que o programa da Frente Ampla seja um programa de construção de uma sociedade socialista, mas tampouco se pode dizer que seja indiferente às desigualdades que uma sociedade capitalista gera. A discussão então deveria ser se este plano de ação ajuda ou não a construção de uma sociedade socialista.

Não concebo a sociedade socialista como um modelo pré-configurado, mas sim como uma construção social que transcende uma geração, como um processo dialético no qual os avanços ou retrocessos nas relações sociais de produção são legitimados pela sociedade.

São vários ao avanços feitos pelo governo da Frente Ampla neste caminho de construção: a reforma tributária, o imposto sobre a concentração dos imóveis rurais, a reforma da saúde, o Plano de Equidade, o Fondes, o Plano Juntos, o Plano Ceibal, o Programa Professores Comunitários...,são ações de governo que, ao mesmo tempo que reduzem desigualdades, geram mudanças institucionais que diminuem as inequidades, e fazem isso de tal forma que o processo seja dificilmente reversível.

É certo, porém, que nós não temos feito uma adequada promoção destes avanços e, portanto, do ponto de vista das ideias, do discurso, não temos feito uma publicidade das ideias de construção de uma sociedade mais justa.

Se somos o que dizemos, não só não dizemos socialismo, como dizemos bem estar material, salário digno (somo se a dignidade passasse pelo dinheiro), mais recursos, maior orçamento, distribuição de renda...dinheiro!

No discurso, na comunicação, validamos um sistema de incentivos, de prêmios e castigos que fazem o processo de seleção e reconhecimento social por meio das conquistas materiais. Isso não é independente da ordem de preferência na escala de valores da sociedade que promovemos, e estamos pagando as consequências: não mobilizamos os jovens.

“(...) nem bem a eficácia de um ideal morre, a humanidade veste outra vez seus trajes nupciais para esperar a realidade do ideal sonhado com nova fé, com tenaz e comovedora loucura. Provocar essa renovação (...) é em todos os tempos a função e o trabalho da juventude”. Assim disse José Enrique Rodó, em “Ariel”.

Pode ser que tenhamos alguns dos problemas de gestão assinalados por Tarso, mas creio fortemente que, acima de qualquer coisa, temos um problema de comunicação e de convocação da juventude para participar das reformas que levem à construção de uma sociedade solidária.

O socialismo como ideia reguladora? Ante as limitações que a gestão nos impõe, Tarso nos convoca a retomar o debate e a utopia de um modelo de sociedade universal de uma democracia socialista. Confesso-me parcialmente contrário a tal pretensão, ao menos por dois motivos.

Em primeiro lugar, porque a democracia socialista promulgada não é um modelo universal que se possa impor, e isso pela própria definição da democracia e da liberdade de pensamento, e, portanto, de ideias que a concepção traz associadas (a pretensão de uma ideia reguladora universal não é diferente da do pensamento único).

Um modelo de sociedade é uma construção social e, portanto, com contradições que geram caminhos não lineares. A própria concepção de “máxima desigualdade aceitável” é uma concepção social e histórica, mutável no tempo e entre diferentes sociedades. Além disso, é multidimensional (oportunidades, receitas, ponto de partida, direitos, etc.) e plena de dilemas entre suas próprias dimensões: pode a igualdade de receitas gerar desigualdade de direitos e de obrigações, por exemplo?

São as contradições e conflitos que esses dilemas provocam que geram soluções, mais ou menos estáveis em cada sociedade e em cada tempo. Ante as múltiplas dimensões de igualdade e desigualdade e os eventuais dilemas entre elas, os conceitos de “máximo aceitável” e “mínimo exigível” perdem sentido como ideia reguladora universal e utópica. Serão em cada momento histórico e em cada sociedade o resultado da construção social e da forma pela qual se resolvem as contradições e conflitos.

Neste sentido, o socialismo não deveria ser uma ideia reguladora utópica e universal, mas sim uma construção social a la uruguaia. Mas, como assinalei anteriormente, sou parcialmente contrário à ideia. É que há algo na proposta de Tarso que resulta desafiador para quem está no governo e enfrenta diariamente interesses em conflitos e dilemas: a proposta de uma ideia reguladora.

Diante das contradições e dilemas que enfrentamos creio que uma potente ideia reguladora pode ser explicitar a escala de valores que está por trás da resolução de um conflito de interesses ou de um dilema, e publicizá-lo. Uma explicitação que evidencie as contradições geradas por uma sociedade que persegue o bem estar material através de falsas liberdades individuais.

Que a ideia do socialismo apareça não como uma ideia universal e utópica, mas sim como a resposta social à perda de liberdade provocada pela escravidão da perseguição do bem estar material. A democracia socialista não como ideia nem como modelo pré-configurado, mas sim como construção social alternativa a um modelo que marginaliza e aliena.

Em resumo. E então, falando desde a perspectiva do governo da Frente 
Ampla, “qual é o lugar da nossa geração na evolução das ideias?”

“Confesso que consumi”, parafraseando ironicamente a Neruda, parece ser o legado que estamos deixando para a próxima geração. Mas não é certo, nem seria justo. Participamos da reconstrução de uma democracia mil vezes mais justa que a ditadura que a precedeu, mas ainda injusta.

E nos vangloriamos das conquistas com uma linguagem que nos condenará a ser lembrados como os que participamos do crescimento econômico do país. Pobre linguagem a nossa.

Mudar nosso discurso, mudar nossa convocatória aos jovens, não através de temas econômicos, mas sim de justiça social, pode levar-nos a mudar nosso papel como geração nesta evolução e construção social da qual participaram várias gerações.

“Confesso que tentamos”, deveria ser nosso legado.

(*) Vice-ministro de Economia e Finanças do Uruguai.

Publicado originalmente no semanário Brecha


Tradução: Katarina Peixoto