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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cardápio modernista: Sopa de mecenas e sapos de sobremesa


Público atraído por Villa-Lobos é traído pelos sapos. Este pode ser um modo sucinto de descrever a nonagenária Semana de Arte Moderna, inaugurada dia 13 de fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo. O auditório estava lotado de amantes da música clássica quando Ronald de Carvalho invadiu a festa e declamou “Os sapos”, de Manuel Bandeira, crítica implacável ao parnasianismo, escola poética igualmente implacável nas regras de concepção.


Por Christiane Marcondes


Mulata, de Alfredo Volpi, 1927
Mulata, de Alfredo Volpi, 1927
As vaias demolidoras não impediram “Os sapos” de darem um salto definitivo ao futuro, não só da produção artística, mas da sociedade e da política dos anos 1920: “O modernismo, comunismo e industrialização são movimentos que se consolidaram na mesma época, frutos do mesmo momento histórico. Os imigrantes trouxeram novas ideias sociais, os artistas que iam à Europa voltavam com novos paradigmas, tudo foi se articulando ao mesmo tempo e mudando o pensamento de uma época”, diz Mazé Leite, artista plástica, cronista e crítica de arte, em entrevista exclusiva ao Vermelho. 

Mazé explica que a Semana, um ataque frontal à elite “conservadora e brega paulistana”, é pioneira, mas não um fato isolado. Antes e depois, o modernismo já estava se construindo ao sabor de ventos ao norte do Equador: “Desde a Revolução Russa de 1917, o Brasil vivia um período pródigo de ´ismos`, com novidades a cada semana na arte e na política. A cultura refletia essa agitação, já que ela espelha a sociedade ”.

A Escola Nacional de Artes, no Rio de Janeiro, conduzia com rédeas curtas a produção artística na capital da República, seus alunos tinham compromissos com a estética formal endossada pelos cânones clássicos, por isso São Paulo foi palco do novo: “A cidade era uma província”, conta Mazé. 
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Antropofagia: jantando o mecenas
Bem verdade que já existia nas paragens de Piratininga um reduto fundamental de produção e discussão artística -- a Villa Kyrial -- inaugurado em 1904 pelo senador e mecenas José de Freitas Valle. Por vocação, Valle era admirador e guardião dos ideais da "Belle Époque", mas entrou para a história como o grande cúmplice da irreverência modernista, afinal, bancou os estudos de Anita Malfatti na Alemanha e ela voltou “expresionista”, montando em 1917 a exposição que horrorizou Monteiro Lobato. Foi o primeiro suspiro da Semana que viria.

Sinal de que o modernismo tinha premissas estrangeiras? Mazé responde: “Ainda antes da Anita, temos o Almeida Junior, que eu considero um pré-modernista com seu conjunto de obras, da qual destaco “Caipira”. Formado na Escola Nacional de Belas Artes, ele precisou ir a Paris para redescobrir o Brasil e sofreu as mesmas influências de Anita: romantismo, realismo, expressionismo e impressionismo”.

Ou seja, depois de devorar um caldeirão de tendências internacionais, o modernismo enfim incorporou o espírito nacionalista, não exatamente em 1922. Carlos Drummond de Andrade publicou o poema “Uma pedra no meio do caminho”, ícone do movimento, em 1927. Em 1928, Mário de Andrade publicou “Macunaíma” e Oswald de Andrade, “O manifesto antropofágico”. Nas artes plásticas, imigrantes italianos da mesma época estavam lançando em São Paulo uma arte figurativa que reproduzia a labuta e agruras dos operários. Mazé Leite os descreve: “Um bom exemplo desse grupo de imigrantes italianos é o Alfredo Volpi, que era operário e da mesma geração dos modernistas, mas produziu longe da movimentação da casa do Freitas Valle, por isso só vai aparecer por volta de 1927”.

Carlos Callioli, Pedro Corona e Aldo Bonadei eram do mesmo grupo de Volpi, cita Mazé, que, olhando em retrospectiva, afirma ainda que a Semana de Arte Moderna foi mais importante pelo barulho que fez do que pela arte que apresentou: “Essa produção foi só um recorte, era um movimento da burguesia”.
Artistas e a simpatia pela esquerda
A crise de 1929, que levou a grande depressão aos Estados Unidos e ao mundo, acabou de vez com o ranço elitista do modernismo em São Paulo. O socialismo e a obra com crítica social, ligada ao povo, assumiram a frente das artes. Assim, pode-se dizer que a crise econômica teve um saldo civilizatório positivo no Brasil e o modernismo se espalhou como pólvora, junto com a industrialização. 

Vieram Graciliano Ramos, Di Cavalcanti, Portinari e Jorge Amado, além dos pensados, como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda. Desses, a maioria esmagadora era simpática ao socialismo, mesmo os que se filiaram e depois se desfiliaram do Partido Comunista, como o Drummond. “Nos anos 1930, os intelectuais em todo o mundo simpatizavam com os movimentos da esquerda, porque tinham em comum o sonho de uma sociedade justa. Por isso a maior preocupação da CIA, até os anos 1950, era rastrear artistas envolvidos com esse tipo de idéia. Foram três décadas de forte engajamento... artistas, intelectuais e o povo estavam todos do mesmo lado”, exalta Mazé.
Alimento cultural e o sonho de justiça 
Ao ressaltar o fato, a artista plástica lamenta que, com o passar do tempo, o comunismo tenha se afastado da arte: “Sempre me preocupa a pouca atenção que o partido dá à cultura, porque não é possível mudar uma sociedade sem mudar sua cultura”.
Mazé deixa como mensagem final: “90 anos depois da Semana, é tempo de a arte e o movimento político se darem, novamente, as mãos. Nós temos que reconhecer a importância que esse segmento tem porque o artista está envolvido até a medula no social e pode mobilizar multidões. A Virada Cultural de 2011, em São Paulo, reuniu quatro milhões de pessoas. O público gosta de consumir produtos culturais, ir a exposições, shows, cinema, teatro é parte do ser humano e esses eventos representam um alimento tão importante quanto a comida. Despertam a consciência social e crítica", conclui Mazé.

Fonte: Vermelho