" Um principal protagonista do enredo da
indústria da biotecnologia é a multinacional Monsanto, fundada há 112
anos em St. Louis, nos EUA. Sua atuação junto aos governos, universidades e
organismos internacionais é vigorosamente contestada, igualmente por
cientistas, agrônomos, políticos, técnicos e, principalmente, por
camponeses", explicam Juliana Dias e José Carlos de Oliveira,
editora do site “Malagueta – palavras boas de se comer” e
professor do Programa de Pós graduação do HCTE/UFRJ em “Ciencia, Tecnologia
e Segurança Alimentar”, respectivamente, em artigo publicado por CartaCapital, 10-06-2014.
Deputados agem para nos
empurrar transgênicos
A questão de que as novas
tecnologias poderão resolver os problemas humanos com que nos defrontamos é
controversa. As tecnologias fundadas em aplicação de estudos científicos
apresentam incertezas para o bem-estar humano. Apontam para aspectos
negativos de difícil solução, pois têm por objetivo questões distintas do
que é alardeado como grande vantagem — por exemplo, eficiência e lucro. O
detentores dessas novas tecnologias tentam provar a eficácia, defendendo
benefícios não inteiramente comprovados para lançar na sociedade seus
produtos inovadores. O caso da transgenia serve como exemplo para indicar
as implicações e compromissos entre ciência e democracia, no que diz
respeito aos direitos civis e sociais dos cidadãos, bem como sua
participação deliberativa.
A produção de alimentos
geneticamente modificados (GM) em larga escala teve início em
1996, nos Estados Unidos (EUA), com a introdução da soja resistente a
herbicidas. Entretanto, o debate a respeito desse modelo produtivo na
agricultura industrial é pautado por controvérsias. A área mundial ocupada
com cultivos GM atingiu 102 milhões de hectares em apenas 10 anos
(SILVEIRA e BUAINAIN, 2007, p.58). Já o diálogo, na sociedade, sobre a
positividade ou negatividade de seu uso, avança com dificuldades. Não há
consenso entre cientistas, governos, indústrias e associações civis, os
protagonistas desse enredo. Na perspectiva de Latour (2007, apud
ABRAMOVAY p. 135), descrever controvérsias trata-se da capacidade de
acompanhar e expor “um debate que tem por objeto, ao menos em parte,
conhecimentos científicos ou técnicos ainda não assegurados”.
A decisão sobre o que
colocar na lavoura, ou no prato, sofre pressões em favor da economia e da
eficiência do agronegócio. Os defensores da engenharia genética em plantas
comestíveis argumentam que, só por esta via, será possível alimentar os 9
bilhões de habitantes previstos para 2050 no planeta. No entanto, quando a
indústria assume o compromisso de promover a segurança alimentar, a lógica
que se sobrepõe é a do alimento como mercadoria, e não como direito.
As informações
disseminadas não parecem conduzir à construção de um diálogo que assegure
autonomia e engajamento no processo democrático. O cenário ainda é de
incerteza, para prosseguir com um sistema agrícola centrado na biotecnologia.
De um lado, as multinacionais prometem a melhoria na qualidade dos
alimentos e a garantia da Segurança Alimentar. De outro, os agricultores apontam
a perda de autonomia no exercício de plantar; a população sofre com
problemas de saúde em relação ao uso de agrotóxicos, produzindo, inclusive,
mortes; e o meio ambiente sofre com a deterioração do solo, entre outras
ameaças (ROBIN, 2008).
As discordâncias
Um principal protagonista
do enredo da indústria da biotecnologia é a multinacional Monsanto,
fundada há 112 anos em St. Louis, nos EUA. Sua atuação junto aos governos,
universidades e organismos internacionais é vigorosamente contestada,
igualmente por cientistas, agrônomos, políticos, técnicos e,
principalmente, por camponeses. A imagem da empresa representa,
metaforicamente, o quão controverso é o diálogo com a sociedade. Já existem
vários estudos publicados, questionando sua postura corporativa em mais de
um século de existência. Desde o suprimento do herbicida conhecido como Agente Laranja para a Guerra do Vietnã à
introdução de agrotóxicos para a Revolução Verde (ROBIN, 2008).
Para pontuar aspectos
dessa controvérsia, fizemos um recorte cronológico com alguns fatos da
trajetória da companhia em 2013, quando completou 50 anos no Brasil. No
mesmo ano em que o vice-presidente de Tecnologia e cientista-chefe da Monsanto, Robert
Fraley, recebe o World Food Prize ( Prêmio Mundial
de Alimentação, concedido por iniciativa de um empresário norte-americano)
devido ao pioneirismo na área de biotecnologia, a empresa desistiu do
desenvolver novas sementes GMs na União Europeia, pois há demora
na aprovação de novas variedades modificadas – ela é detentora do maior
número de pendências de aprovação no bloco europeu.
A demora na aprovação
espelha suspeitas ainda bastante difundidas sobre a segurança, já que
grupos da sociedade civil europeia temem seus impactos no ambiente e na
saúde1. Pelo menos dez países europeus – Polônia, Alemanha, Áustria,
Hungria, Luxemburgo, Romênia, França, Grécia, Suíça, Itália e Bulgária – já
proibiram o cultivo do milho transgênico da Monsanto, o MON 8102.
A decisão tem base em estudos, segundo os quais a toxina presente no
organismo modificado provoca danos à minhocas, borboletas e aranhas. Provas
de sua segurança para a saúde são inconclusivas. Os efeitos colaterais para
o homem e o meio ambiente ainda carecem de estudos conclusivos
independentes (ROBIN, 2008; ZANONI e FERMENT, 2011; VEIGA, 2007; ANDRIOLI E
FUCHS, 2012).
A empresa completou cinco
décadas no Brasil com o lançamento comercial das sementes da soja Intacta
RR2 Pro, primeira tecnologia desenvolvida em solo e para solo brasileiro.
No mesmo 2013, mais de 50 países aderiram à “Marcha contra Monsanto” em
protesto contra a manipulação genética e o monopólio da multinacional na
agricultura e biotecnologia. A campanha teve como estopim o suicídio de agricultores
indianos. Essa prática tem se tornado frequente devido ao endividamento
para competir na agricultura industrial.
O direito às sementes do
agricultor e o direito à informação do cidadão passam por um modelo
controverso, dúbio e confuso de controle e regulação, de algum modo
referenciados nas leis federais em diversos países da América do Sul, da
África e nos Estados Unidos. A indústria da biotecnologia vem avançando por
meio da formação de um oligopólio no mercado das sementes, baseado também em
um direito, o de propriedade intelectual, que torna privado o que é o
público, com a natureza e a produção de conhecimento. Tudo feito em
parceria com as agências governamentais. Com isso, quem planta troca a
diversidade e a capacidade de selecionar seus grãos por plantas que recebem
alteração genética (VEIGA, 2011, ZANONI E FERMENT, 2011).
A transnacional Monsanto está em mais de 80 países, com domínio de
aproximadamente 80% do mercado mundial de sementes transgênicas e de
agrotóxicos. A empresa acumula acusações em diferentes continentes, por
violações de direitos, por omissão de informações sobre o processo de
produção de venenos, cobrança indevida de royalties e imposição de um
modelo de agricultura baseado na monocultura, na degradação ambiental e na
utilização de agrotóxicos.
A quem interessa saber?
O diálogo sobre o presente
e o futuro da alimentação diz respeito aos 7 bilhões de habitantes do
planeta hoje existentes. De acordo com Paulo Freire (1971b, p.
43, apud Lima 2011, p.90), “dialogar não significa invadir, manipular, ou
fazer ‘slogans’. Trata-se de um devotamento permanente à causa da
transformação da realidade (…). O diálogo não pode se deixar aprisionar por
qualquer relação de antagonismo (…)”. A Monsanto se apresenta
como uma empresa comprometida com o diálogo, o qual estabelece como base
nos princípios de seu compromisso corporativo: “ouvir atentamente diversos
públicos e pontos de vista, demonstrando interesse em ampliar a nossa
compreensão das questões referentes à tecnologia agrícola, e a fim de
melhor atender as necessidades e preocupações da sociedade e uns dos
outros”.
Ao afirmarmos que o
diálogo sobre a produção de transgênicos é desencontrado, referimo-nos às
ambivalências entre o discurso e a prática das empresas, dos governos, das
universidades e da mídia. O processo dialógico é permeado por ruídos,
omissões e abordagens unilaterais.
Um ponto flagrante na
divulgação das informações para a população é que a pesquisa com transgênicos é realizada quase exclusivamente por
aqueles que comercializam os produtos biotecnológicos. A preocupação é
elaborar variedades com mais performance, sem se envolver na investigação
de seus riscos indiretos ou diretos. A introdução dos GMs em
diversas partes do mundo mostra a relação conflituosa entre ciência e
democracia (APOTEKER, 2011, p. 89). As implicações vão além da dimensão
cientifico-tecnológica. Estão ligadas às decisões políticas dos governos e
à ética. Existe uma tensão permanente entre a demanda da sociedade e os
interesses envolvidos com o fazer científico.
O direito à informação
sempre esteve presente nos debates relacionados com a introdução dos
transgênicos no país. Essa reinvindicação foi impulsionada pelas
organizações não governamentais(ONGs) e movimentos sociais, em
especial os ligados aos direitos do consumidor. “O aumento da produção
amplia a importância da informação como meio de garantir aos cidadãos o
poder legítimo de escolha”. (SALAZAE, 2011, p. 302).
A rotulagem de alimentos
é um meio de assegurar esse direito, mas em contrapartida torna-se uma
arena de conflitos entre as indústrias e os consumidores. Nos EUA,
utiliza-se o critério de “equivalência substancial”, em que a semente não
transgênica é posta em igualdade com a geneticamente modificada. Partindo
dessa norma, não há necessidade de informar ao consumidor o tipo de grão
que contém um produto alimentício. Assim, a legislação norte-americana não
permite estampar o “T” (de transgênico) nos rótulos (ROBIN, 2008).
Entretanto, as
associações de consumidores norte-americanas conseguiram o direito de
rotular o leite com a informação “ausência de uso”, referindo-se ao
hormônio rBGH, responsável por aumentar em até 30% a produção de
leite. Este foi o primeiro produto nascido da engenharia genética. Após 15
anos de uso massivo na pecuária leiteira – com índices elevados de mastites
nas vacas que recebiam o hormônio, aumento da quantidade de germes no
leite, além do crescimento do fator IGF (responsáveis por várias
enfermidades) – a população passou a ter acesso a essa informação.
(APOTEKER, 2011, p. 90; COHEN, 2005).
No Brasil, o decreto
federal 4.680/2003 regulamentou o direito à informação, conforme artigo 6º
do Código de Defesa do Consumidor (CDC), sobre alimentos que contenham
acima de 1% de ingredientes transgênicos. A lei vale, inclusive, para
alimentos e ingredientes produzidos a partir de animais alimentados com
ração contendo GM. Em agosto de 2012, o Tribunal Regional Federal
da Primeira Região, acolhendo o pedido da Ação Civil Pública proposta
pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e pelo Ministério
Público Federal (MPF), tornou uma exigência a rotulagem dos transgênicos
independentemente do percentual e de qualquer outra condicionante. É
possível identificar em diversos produtos um símbolo com a letra T (exige
atenção para identificar, pois normalmente aparece com discrição nas
embalagens).
Entretanto, o momento
atual parece um retrocesso no que diz respeito à informação sobre a
fabricação. O Projeto de Lei (PL) 4.148 (2008), de autoria
do Deputado Luis Carlos Heinze, pretende retirar essa informação dos
rótulos. O PL apresenta as seguintes propostas: (1) não torna
obrigatória a informação sobre a presença de transgênico no rótulo se não
for possível sua detecção pelos métodos laboratoriais, o que exclui a
maioria dos alimentos (como papinhas de bebês, óleos, bolachas, margarinas);
(2) não obriga a rotulagem dos alimentos de origem animal alimentados com
ração transgênica; (3) exclui o símbolo T que hoje permite a identificação
da origem transgênica do alimento (como se tem observado nos óleos de
soja); (4) não obriga a informação quanto à espécie doadora do gene.
Em 2013, o PL poderia
ir em votação em caráter de urgência, mas a ameaça não se confirmou. Em 29
de abril de 2014, novamente entrou eu pauta por conta de outro projeto que
prevê a separação de produtos transgênicos em prateleiras de
estabelecimentos comerciais (similar a uma lei estadual de São Paulo). Mas
com a mobilização da sociedade civil a votação foi suspensa. Esses são
alguns dos desencontros do diálogo sobre a transgenia no Brasil. O Idec
está em campanha para impedir o fim da rotulagem dos transgênicos. Para
participar, basta enviar uma mensagem para os deputados. É fácil e eficaz.
A soberania do discurso
científico pode calar e distanciar os cidadãos de assuntos que dizem
respeito ao desenvolvimento econômico, social e cultural. É necessário
construir um debate público com informação e conscientização. O diálogo
aprofundado, e interessado em ouvir o que a sociedade realmente tem a
dizer, é de responsabilidade do governo, por meio das leis de
regulamentação; das universidades públicas, com educação e formação de
cidadãos críticos e participativos; dos cientistas, ao respeitar o
interesse público; das ONGs, ao trazer informações para a esfera
pública; e da mídia e empresas do agronegócio, que devem comunicar com mais
clareza e ética.
Como podemos observar, as
novas tecnologias envolvem questões que devem ser debatidas pelos mais
diversos atores sociais. A produção de alimentos GMs trouxe
questões complexas, que urgem por interdisciplinaridade para construir a reflexão
e propor soluções. É o caso alarmante da transição da posse das sementes, das mãos dos camponeses às das
multinacionais. Outra análise imperativa é em relação aos riscos
indeterminados, em longo prazo, na saúde humana e no meio ambiente.
A dificuldade para se
fazer pesquisas independentes sobre a produção de transgênicos é um entrave
para fundamentar as discussões no campo do direito e da cidadania. O
diálogo entre os sujeitos, permeado de múltiplos valores, necessita
encontrar caminhos concretos e seguros para transformar a realidade. Nesse
sentido, um processo de comunicação dialógico, como nos sugere Paulo
Freire, pode nutrir a sociedade com informações consistentes e o mais
abrangentes possíveis. Assim, o cidadão poderá conquistar autonomia e
engajamento para participar democraticamente, de forma deliberativa, de
questões centrais para o presente e o futuro
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