Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade
Clic sobre o livro (download gratuito). LEIA E DÊ SUA OPINIÃO

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A lida diária da Ana Valente


Dona Pandá procurava a matéria-prima para implantar seu minhocário, com a finalidade de recuperar o pomar e fazer uma pequena horta. Depois de muita procura, encontrou o senhor Margarido – irmão do caseiro de um vizinho – que se dispôs a lhe mostrar o caminho de uma fazenda que vendia esterco.
Quando entraram na estrada de terra, o senhor Margarido, mostrando sua genuína mineirice, falou:
- Vou precisar só de três sacos de esterco. A senhora pode encher sua caminhonete com os 16 sacos, mas eu preciso mesmo é só de três. – Entendendo que era o preço que deveria pagar pelo serviço de guiá-la, Dona Pandá respondeu:
- Está bem. Vamos ver quantos sacos vamos conseguir colocar na carroceria.

Chegando, foram recebidos por Dona Ana, a fazendeira, que, imediatamente, pegou uma pá e se meteu num barracão cheio de esterco já curtido. De lá, gritou:
- Vou ensacar. Quantos a senhora vai levar?
- Quantos couber.
- Cobro R$ 3,00 cada saco.
- Está bem. – Dona Pandá quase falou que estava muito barato, pois havia comprado cinco sacos a R$ 10,00. Ouviu, então, o senhor Margarido dizer que estava indo ajudar Dana Ana. Ela, com a pá ia jogando o esterco no saco que ele abria e segurava. Quando enchia, levava para fora do barracão, próximo da Preta, a caminhonete.

Ana é uma mulher, cuja idade meio indefinida pode ser uns 60 anos, estatura média, magra, mas nem tanto, cabelos castanhos, mal tampados por um lenço. Consegue, num quase milagre, conservar traços que denunciam uma beleza levada pelo trabalho bruto e contínuo. Durante o tempo todo, contou causos e Dona Pandá ficou sabendo que moravam com ela o pai e o irmão.

O pai, completamente corcunda, apareceu e foi logo explicando que suas costas eram o resultado de tanto carregar cana para as vacas. Estas ficam presas no curral, sendo alimentadas por cana triturada com ração que é comprada “quando Ana vai receber minha aposentadoria e já deixa tudo na casa de rações”.  

Antes de terminar o ensacamento, apareceu o irmão e de longe gritou:
- Está na hora. - Ana explicou que precisava ajudar a trazer os bezerros para lhes dar a ração. As vacas ficam presas para não gastarem energia e não emagrecerem mais ainda, enquanto os bezerros só mamam pela manhã, no momento de tirar o leite. Depois são apartados e ficam no pasto que de tão seco já se vê terra nua.

Passados 20 minutos, Ana, de volta e recomeçou o trabalho. O senhor Margarido comprou queijo, linguiça e outros produtos que Ana fez na véspera e estava negociando frango, quando Dona Pandá, enfim percebendo que a ave iria concorrer com os pedais da Preta, avisou que não levaria nenhum animal. Ninguém pediu justificativa porque Dona Pandá usou sua conveniente cara antipática de quem não quer saber de conversa.

Ana pareceu entender que seu cliente havia passado a linha da conveniência e ofereceu o número do seu celular para Dona Pandá lhe avisar quando quisesse mais esterco, “podendo vir sozinha, agora que a senhora já conhece o caminho”.

Na volta, Dona Pandá teve dificuldade de manter a conversa com o companheiro de viagem. Não conseguia tirar da retina a imagem de Ana, o pai corcunda e o irmão com a preguiça da desnutrição, as vacas magras, os bezerros mal chegando às tetas das mães, o pasto inexistente. A pobreza transformou uma fazenda produtiva num lugar seco, onde as perspectivas são cruéis como a vida de quem lá ficou.