Minha
querida Pequerruça,
Você
se foi. Agora, está morando no meu coração.
Bei
está viúvo. Sofremos juntos. Tem sido deserto. É o luto. Ainda não
falei do luto primeiro, a perda da Chácara Xury, o meu lugar para
onde levei você e Bei. Preciso falar do segundo luto, a sua perda,
minha Pequerruça. Sinto que uma perda se confunde com a outra. Não
poderia ser diferente. Você, Bei e eu somos a CXury. Agora, não
temos a CXury, não temos você. Bei e eu estamos em estado de
sofrimento. Ele, que nunca havia ficado sozinho nesta sua vida de 13
anos, fica à procura e só a mim ele encontra. Cuido dele, sou
apenas sua tutora, sua amiga. Ele cuida de mim, é meu guardião
zeloso, amoroso. Não temos a terra, as árvores, os macacos, “as
aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. Não temos a CXury.
Não temos nossa Pequerruça..
Você
vem, passa no meio das minhas pernas, volta, passa de novo e vai na
frente, olha de lado para ter certeza de que estou no meio e Bei
atrás. Seu andar é rebolante, sua cabeça balança no ritmo da
mudança das pernas e minhas mãos alcança sua anca que se imobiliza
para ganhar o carinho. Sinto o focinho do ciumento que busca a
partilha. Estamos no corredor atrás da casa grande, mas já os muros
desaparecem dando lugar às árvores da matinha que vai até o
minhocário e você para, cheira uma planta, anda, para, cheira mais.
Bei passa por mim e vai cheirar junto, se embolam, um de um lado,
árvore no meio, outro anda mais para frente, volta, trocam de lugar
e novamente vai você na frente, rebolando, enquanto Bei me cede
lugar e fica na retaguarda. Também sinto os cheiros da mata, os
cheiros da CXury.
Pequerruça,
tirei vocês, nós do nosso lugar. Foi, tem sido doloroso. O
inexorável! Lá ficou nossa saúde. Você fez o câncer que a levou.
Bei emagreceu 13 kg e eu fiquei velha, com dores no corpo e na alma.
Dona Pandá, aquela personagem gozadora que povoava meu blog está na
UTI, sem muita esperança. O blog foi abandonado. Não escrevo mais.
Querida,
nem posso dizer que quero voltar. Você se foi. Bei não aguentaria
uma viagem de 700 km. Preciso cuidar dele. Não quero que ele viva
muito, mas cuido para que viva com algum prazer. Para lhe dar uma
compensação, quando de sua ida, contratei o Nego – o rapaz que
trabalha meio período aqui no sítio Catita – para caminhar meia
hora com ele no condomínio. É o grande momento do dia para Bei.
Fizemos juntos esse passeio algumas vezes. Paramos devido a outros
cachorros que ficam soltos e vocês dois poderiam partir para um
confronto que me deixaria em má situação. Você era tão
indisciplinada, tão parecida comigo. Nada de cerca para você.
Quantas vezes você liderou uma fuga, furando cercas, saindo da
CXury. Um final de tarde, vocês dois entraram no lodo preto,
catinguento da chácara vizinha e às 8;30 da noite fria enfrentamos
o banho. Dois cachorros fedorentos, inquietos, com frio. Tive que
secá-los com o secador de cabelo. Vocês odiando o barulho, travando
uma luta que acabou em brincadeira. Bei tão nervoso, bravo; você
tão doce e teimosa.
Minha
querida, depois continuo. Acho que virei muitas vezes falar com você,
mas, agora, minhas lágrimas me cegam.
Cá
estou de novo, minha Pequerrucha. Bei está com uma secreção nos
olhos, fiz chá de cavalinha e estou lavando seu olho. Ele não
gosta, abaixa a cabeça quando o chamo “para limpar o olhinho”.
Vem, com muita má vontade, mas vem e deixa eu cuidar. Ele não quer
saber de ficar longe de mim. Não quer ficar só. Você o acostumou
assim.
Começaram
os preparativos de Natal. Não gosto desta época. André e eu –
depois de seu casamento, Dai se juntou a nós – sempre gostamos de
comemorar a passagem do ano. Você e Bei odeiam os fogos e esta é a
parte ruim. No último ano que passamos na CXury, André ficou com
vocês no canil e fomos brindar o ano, tomando um gostoso espumante,
lá. Dai corria do canil para a casa, onde os pequenos – Tute, Mel
e Pretinho - ficaram também com medo do barulho. Eram poucos os
fogos se comparados com os que soltam por aqui. Lá, a chácara fica
no meio do mato, vizinhança rarefeita. Aqui, um codomínio enorme,
muitos vêm da residência urbana com alguns gestos incivilizados
como fazer barulho com fogos e música alta. Por causa disto, não
posso ir comemorar a entrada de um novo ano com Dai e André,
deixando Bei sozinho. Sinto mais saudades deles e da minha Xury nesta
época. Todos se reúnem aqui na Casa Grande da Mana, felizes.
Esforço-me para não me deixar abater, pois mancharia de tristeza a
festa de Natal da família. Quando Mamãe ainda estava conosco –
ela que era tão católica - a data era comemorada com muita
coerência e mesmo sem sua crença eu a respeitava. Muitas vezes,
André estava conosco. As mudanças não têm sido bem aceitas por
mim. Será que é a impertinência da velhice? Nesses dois anos em
que estou aqui, a pior época é o Natal. A presença das manas,
cunhado e dos sobrinhos faz um clima de solidário regozijo que me
perturba por explicitar com maior intensidade a ausência sentida.
Nossa
vinda para cá teve seu lado positivo e me apego a isto.
Tive,
agora, uma notícia das melhores, André consertou o telefone fixo de
sua casa. Havia um bocado de tempo que eu pedia para que ele
providenciasse esse conserto. Meu Filhote tem seu tempo, tão
diferente do meu. Sou lebre, ele tartaruga. Eis aí uma questão
fundamental no relacionamento dos humanos, mais ainda dos casais. É
quase impossível a adequação perfeita dos tempos, o que torna
difícil a convivência diária. Não sei quem é o mais incomodado a
lebre que fica na espera ou a tartaruga que é pressionada. Para
variar a harmonia está na tolerância.
Ontem,
o susto foi grande. Bei pegou o pescoço do Pretinho e não soltava
nem com a mangueira de água fria que joguei nele. O pequeno é mesmo
atrevido e o grandão fica injuriado quando está preso aqui na
nossa casa e o outro solto vem latir. Os portões ficam fechados, mas
um bate do lado de fora, enquanto o outro empurra de dentro o portão
abriu e Bei pulou já com a bocaça no pescoço do atrevidinho. Com
as imagens bem vívidas das vezes que vocês mataram meus gatos,
entrei em desespero. Perdi o controle, gritei, gritei, enviei a mão
na boca do Bei e nada consegui. Vi o sangue escorrer e manchar minha
roupa, tive um momento de dúvida – lembrei-me do quanto Hilda
sofreu por eu tentar soltá-la de vocês dois -, mas continuei
lutando para salvar a vida do Pretinho. Depois de muito tempo,
multiplicado por meu pânico, os dois se separaram e Pretinho,
completamento ileso já que o sangue era da língua do Bei e da minha
mão, ainda parou e latiu numa provocação absurda. Minha mão doía
muito pelo esforço e soltou a coleira do Bei que consegui ainda
segurar com as duas pernas e, sem o provocador que, enfim, se mandou,
atendeu meu comando e entrou para a casa. A imagem do meu descontrole
provocou uma ressaca de tirar o sono.
Bia,
enquanto escrevo, Bei está deitado aqui perto, dormindo. Quando
chega a hora do seu passeio um despertador invisível toca e ele vai
para perto do protão esperar o Nego.
Nosso
Brasil está mal, deixando os trabalhadores brasileiros em perigo
gravíssimo. Ainda tenho uma réstia de esperança (como disse
Cortella, do verbo esperançar que inclui luta) de conseguirmos
reverter o grande desastre do golpe dado neste ano. O pior é que,
além de muita luta, sofrimento para nosso povo, nossas riquezas
estão sendo solapadas tirando nossa dignidade e altivez.
Vou
parar novamente, mas tenho a impressão de que falar com você pode
me trazer de volta a escrita.