Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Carta para Bia


Minha querida Pequerruça,

Você se foi. Agora, está morando no meu coração.
Bei está viúvo. Sofremos juntos. Tem sido deserto. É o luto. Ainda não falei do luto primeiro, a perda da Chácara Xury, o meu lugar para onde levei você e Bei. Preciso falar do segundo luto, a sua perda, minha Pequerruça. Sinto que uma perda se confunde com a outra. Não poderia ser diferente. Você, Bei e eu somos a CXury. Agora, não temos a CXury, não temos você. Bei e eu estamos em estado de sofrimento. Ele, que nunca havia ficado sozinho nesta sua vida de 13 anos, fica à procura e só a mim ele encontra. Cuido dele, sou apenas sua tutora, sua amiga. Ele cuida de mim, é meu guardião zeloso, amoroso. Não temos a terra, as árvores, os macacos, “as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. Não temos a CXury. Não temos nossa Pequerruça..

Você vem, passa no meio das minhas pernas, volta, passa de novo e vai na frente, olha de lado para ter certeza de que estou no meio e Bei atrás. Seu andar é rebolante, sua cabeça balança no ritmo da mudança das pernas e minhas mãos alcança sua anca que se imobiliza para ganhar o carinho. Sinto o focinho do ciumento que busca a partilha. Estamos no corredor atrás da casa grande, mas já os muros desaparecem dando lugar às árvores da matinha que vai até o minhocário e você para, cheira uma planta, anda, para, cheira mais. Bei passa por mim e vai cheirar junto, se embolam, um de um lado, árvore no meio, outro anda mais para frente, volta, trocam de lugar e novamente vai você na frente, rebolando, enquanto Bei me cede lugar e fica na retaguarda. Também sinto os cheiros da mata, os cheiros da CXury.

Pequerruça, tirei vocês, nós do nosso lugar. Foi, tem sido doloroso. O inexorável! Lá ficou nossa saúde. Você fez o câncer que a levou. Bei emagreceu 13 kg e eu fiquei velha, com dores no corpo e na alma. Dona Pandá, aquela personagem gozadora que povoava meu blog está na UTI, sem muita esperança. O blog foi abandonado. Não escrevo mais.

Querida, nem posso dizer que quero voltar. Você se foi. Bei não aguentaria uma viagem de 700 km. Preciso cuidar dele. Não quero que ele viva muito, mas cuido para que viva com algum prazer. Para lhe dar uma compensação, quando de sua ida, contratei o Nego – o rapaz que trabalha meio período aqui no sítio Catita – para caminhar meia hora com ele no condomínio. É o grande momento do dia para Bei. Fizemos juntos esse passeio algumas vezes. Paramos devido a outros cachorros que ficam soltos e vocês dois poderiam partir para um confronto que me deixaria em má situação. Você era tão indisciplinada, tão parecida comigo. Nada de cerca para você. Quantas vezes você liderou uma fuga, furando cercas, saindo da CXury. Um final de tarde, vocês dois entraram no lodo preto, catinguento da chácara vizinha e às 8;30 da noite fria enfrentamos o banho. Dois cachorros fedorentos, inquietos, com frio. Tive que secá-los com o secador de cabelo. Vocês odiando o barulho, travando uma luta que acabou em brincadeira. Bei tão nervoso, bravo; você tão doce e teimosa.

Minha querida, depois continuo. Acho que virei muitas vezes falar com você, mas, agora, minhas lágrimas me cegam.


Cá estou de novo, minha Pequerrucha. Bei está com uma secreção nos olhos, fiz chá de cavalinha e estou lavando seu olho. Ele não gosta, abaixa a cabeça quando o chamo “para limpar o olhinho”. Vem, com muita má vontade, mas vem e deixa eu cuidar. Ele não quer saber de ficar longe de mim. Não quer ficar só. Você o acostumou assim.

Começaram os preparativos de Natal. Não gosto desta época. André e eu – depois de seu casamento, Dai se juntou a nós – sempre gostamos de comemorar a passagem do ano. Você e Bei odeiam os fogos e esta é a parte ruim. No último ano que passamos na CXury, André ficou com vocês no canil e fomos brindar o ano, tomando um gostoso espumante, lá. Dai corria do canil para a casa, onde os pequenos – Tute, Mel e Pretinho - ficaram também com medo do barulho. Eram poucos os fogos se comparados com os que soltam por aqui. Lá, a chácara fica no meio do mato, vizinhança rarefeita. Aqui, um codomínio enorme, muitos vêm da residência urbana com alguns gestos incivilizados como fazer barulho com fogos e música alta. Por causa disto, não posso ir comemorar a entrada de um novo ano com Dai e André, deixando Bei sozinho. Sinto mais saudades deles e da minha Xury nesta época. Todos se reúnem aqui na Casa Grande da Mana, felizes. Esforço-me para não me deixar abater, pois mancharia de tristeza a festa de Natal da família. Quando Mamãe ainda estava conosco – ela que era tão católica - a data era comemorada com muita coerência e mesmo sem sua crença eu a respeitava. Muitas vezes, André estava conosco. As mudanças não têm sido bem aceitas por mim. Será que é a impertinência da velhice? Nesses dois anos em que estou aqui, a pior época é o Natal. A presença das manas, cunhado e dos sobrinhos faz um clima de solidário regozijo que me perturba por explicitar com maior intensidade a ausência sentida.
Nossa vinda para cá teve seu lado positivo e me apego a isto.

Tive, agora, uma notícia das melhores, André consertou o telefone fixo de sua casa. Havia um bocado de tempo que eu pedia para que ele providenciasse esse conserto. Meu Filhote tem seu tempo, tão diferente do meu. Sou lebre, ele tartaruga. Eis aí uma questão fundamental no relacionamento dos humanos, mais ainda dos casais. É quase impossível a adequação perfeita dos tempos, o que torna difícil a convivência diária. Não sei quem é o mais incomodado a lebre que fica na espera ou a tartaruga que é pressionada. Para variar a harmonia está na tolerância.
Ontem, o susto foi grande. Bei pegou o pescoço do Pretinho e não soltava nem com a mangueira de água fria que joguei nele. O pequeno é mesmo atrevido e o grandão fica injuriado quando está preso aqui na nossa casa e o outro solto vem latir. Os portões ficam fechados, mas um bate do lado de fora, enquanto o outro empurra de dentro o portão abriu e Bei pulou já com a bocaça no pescoço do atrevidinho. Com as imagens bem vívidas das vezes que vocês mataram meus gatos, entrei em desespero. Perdi o controle, gritei, gritei, enviei a mão na boca do Bei e nada consegui. Vi o sangue escorrer e manchar minha roupa, tive um momento de dúvida – lembrei-me do quanto Hilda sofreu por eu tentar soltá-la de vocês dois -, mas continuei lutando para salvar a vida do Pretinho. Depois de muito tempo, multiplicado por meu pânico, os dois se separaram e Pretinho, completamento ileso já que o sangue era da língua do Bei e da minha mão, ainda parou e latiu numa provocação absurda. Minha mão doía muito pelo esforço e soltou a coleira do Bei que consegui ainda segurar com as duas pernas e, sem o provocador que, enfim, se mandou, atendeu meu comando e entrou para a casa. A imagem do meu descontrole provocou uma ressaca de tirar o sono.

Bia, enquanto escrevo, Bei está deitado aqui perto, dormindo. Quando chega a hora do seu passeio um despertador invisível toca e ele vai para perto do protão esperar o Nego.

Nosso Brasil está mal, deixando os trabalhadores brasileiros em perigo gravíssimo. Ainda tenho uma réstia de esperança (como disse Cortella, do verbo esperançar que inclui luta) de conseguirmos reverter o grande desastre do golpe dado neste ano. O pior é que, além de muita luta, sofrimento para nosso povo, nossas riquezas estão sendo solapadas tirando nossa dignidade e altivez.

Vou parar novamente, mas tenho a impressão de que falar com você pode me trazer de volta a escrita.