Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade
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sábado, 10 de agosto de 2013

De Arrimo a Estorvo

                                                    “...que nada nos limite,                        que nada nos defina, que nada nos sujeite,                        que a liberdade seja a nossa própria                              substância.” (Simone de Beauvoir)

Dona Pandá foi visitar a amiga Bastiana que está fazendo as malas para uma grave mudança. Esteve por lá algumas horas e voltou silenciosa, não quis comer, nem andar com os cachorros. Tomou uma chuveirada e se retirou para seu quarto. Passou uma semana com meias palavras. Parecia estar fechada. Seu rosto ficou marcado por rugas novas, vincando sua expressão numa carranca feia, pura expressão de um sofrimento de alma. Agora, disse precisar escrever. Como é seu hábito, contou-me o quê e como quer escrever. Ela praticamente dita, mas sua paciência pequenininha a leva logo embora, dizendo:
            - você sabe o que é para escrever, depois eu olho. –
Lá vamos nós nesta tentativa difícil. Não tenho certeza de que conseguirei dar o tom certo. Embora eu tenha sentido a tristeza imensa de Dona Pandá por sua amiga, há também uma revolta, uma raiva, uma impotência diante do inexorável. Pareceu-me que a Bastiana está com um sentimento diferente. Nela a tristeza tomou conta, não dando lugar a outros sentimentos. O receio de Dona Pandá é que possa haver sequelas, como descrença e perda da vontade de vida.
Bastiana acaba de fazer 70 anos. Sua preocupação com a saúde praticamente se resume ao esqueleto, é portadora de osteoporose. Tem uma vitalidade ignorante de preguiça. Costuma dizer que só se lembra das sete décadas vividas quando olha no espelho e, quase sempre, se assusta. Desde os 17 anos é responsável por sua vida física, financeira, emocional e mental. Liberdade e privacidade são dois valores relevantes e defendidos com muito zelo. Reconhece que seus três casamentos tiveram os laços desatados, sobretudo por ela, dando poucos créditos aos respectivos companheiros nas separações. Mora numa chácara que comprou há 17 anos. Transformou um terreno inóspito no lugar do seu retiro, onde convive com o que plantou em toda sua vida. Continua plantando, mas acha que seu tempo agora é mais de colheita. Cuida de seus cachorros, de plantas e escreve. As duas atividades – o cuidar e o criar – são colheitas do terreno preparado nesses anos por suas opções. Gosta e cultiva a solidão. No entanto, Bastiana me corrigiria, dizendo que gosta de estar só, mas não é solitária e quando sente vontade de papear com determinado amigo, rapidinho corre atrás do objeto de sua saudade. Cultiva algumas amizades antigas, preciosas. Poucos vêm visitá-la. Todos estão bem presentes, com intensa troca de mensagens e telefonemas. Há também, quando a estrada está intransitável para os carros urbanos dos amigos, alguns almoços no meio do caminho.
Dona Pandá é uma dessas amizades de muitos anos. Gosta de dizer que já comeu, pelo menos, dois sacos de sal junto com a amiga. Bastiana pediu demissão de seu último emprego e veio morar na chácara, convencendo Dona Pandá a fazer o mesmo. Tornaram-se vizinhas e parceiras em algumas atividades. Bastiana é escritora e ajuda a amiga em suas incursões literárias. O caminho inverso é feito mais na área da terra. Dona Pandá gosta de descobrir novos tratamentos para as plantas. Gosta mais ainda de repassar suas descobertas e a amiga-vizinha é sua principal receptora.
As duas amigas têm muitas afinidades, além de uma história de vida semelhante. Acham que Bastiana possui um diferencial privilegiado. Tem uma família muito especial. Suas irmãs, que moram nas terras do Serrado Goiano, são pessoas de qualidades excepcionais, unidas, solidárias, generosas. Além de ter o filho e a nora que pediu ao Universo. Dona Pandá confessa despudoradamente que, neste aspecto, inveja a amiga.  Ambas são mulheres que batalharam muito pela liberdade. A vida que têm, hoje, é fruto dessas batalhas.  Planejaram suas vidas para desfrutarem uma velhice tranquila no meio do mato, o lugar de origem. Ao se mudarem para suas chácaras, trabalharam duro para conseguir a emoção do cheguei ao meu lugar. Esta é a expressão que usam ao falar de suas moradas.
Dona Pandá encontrou sua amiga bem esquisita. Bastiana não estava de mau humor, mas tinha dificuldade de falar. Abria a boca e gaguejava. Começava a falar emboladamente, como se quisesse e, ao mesmo tempo, não contar algo grave. Ao final, como era de se esperar, tratava-se do seu amigo predileto, um jovem senhor. Ele e sua linda mulher chegaram para o almoço semanal.   O rapaz começou, então, a se mostrar preocupado com a segurança da setentona. Disse que iria colar alguns pedaços de lixa na calçada ao redor da casa para evitar escorregões. Como ele é muito criativo, sobretudo quando se trata de desenhos e música, já estava bolando recortes que deixariam as calçadas bem bonitas. Depois outras preocupações foram explicitadas: as varandas precisavam ser reformadas, a escada demandava uma grade.  Bastiana estava achando até engraçado tantos cuidados logo após seus 70. Estranhando o fato de não ser consultada, pensou, em determinado momento, como seria se resolvesse dar uma faxina na casa do amigo.
O final do dia foi a frase que expressou a preocupação máxima do rapaz com a segurança da anfitriã. Ela deveria se mudar para junto das irmãs, retornar a Goiás. Bastiana não falou com tranquilidade de sua emoção.  Lembrou-se do pai que se sentia extremamente culpado por ter, seguindo o conselho médico, tirado o avô da fazenda onde ele sempre morou. O avô viveu (?) até os 90 anos na cidade. Não teve o enfarto vaticinado caso continuasse a trabalhar na fazenda, mas perdeu a memória, a alegria. Passou anos sentado, alheio à vida preservada. 
Bastiana ficou  espantada por não ser compreendida em suas convicções, em sua  maneira de viver e de valorar a vida. O sentimento maior é a tristeza e junto foi apresentada à solidão.
Dona Pandá se revoltou, sentiu muita raiva do inexorável. De um lado, a velhice com suas exigências, sua desarmonia entre o físico e o emocional-intelectual e do outro, a juventude desmemoriada e presunçosa.  Bastaria a lembrança honesta de uma época quando os cuidados com a fragilidade da idade eram dados com a observância da primazia emocional.
Já é desgastante o enfrentar dos mais variados procedimentos da sociedade. Alguns, embora reconhecidamente necessários, não conseguem deixar de humilhar pela distinção negativa. Na fila do banco, os olhares e resmungos impacientes; na carteira de motorista, o aviso pleonástico de que se trata de maior de 65 e, em tantos outros lugares, onde a idade é vista com irritação e, muitas vezes, intolerância e preconceito. Os velhos, como todas as pessoas, não são todos iguais, sentem e têm necessidades diferentes, mas o espaço conquistado talvez seja uma constante para todos.
Neste instante, chegam atrás de mim, para ler o texto, Dona Pandá e a amiga. Bastiana  sorri e, procurando minimizar o acontecido, explica que, curada a ressaca, está mesmo fazendo as malas. A acolhida das irmãs, quando lhes foi contada a possibilidade de sua ida para o Serrado Goiano, foi tão gostosa, quanto estimulante.  

O retrato de um país no romance O Cortiço de Aluísio Azevedo

É como romancista social que melhor se afirmou o talento de Aluísio. É o escritor apaixonado, o artista combativo, pondo a nu os problemas sociais e morais da realidade brasileira do seu tempo: o preconceito de cor, os preconceitos de classe, a ganância de lucro fácil – e todas as injustiças e misérias decorrentes. Mais do que o indivíduo, é a sociedade que lhe interessa. Mais que miniaturista da alma, é o pintor de amplos murais. E é na pintura um verdadeiro impressionista: colorido vivo, tons fortes e quentes. Mostra preferência pelos tipos vulgares e grosseiros, pelos ambientes sujos e situações deprimentes – é o artista procurando acordar a consciência do leitor da sociedade comprometida nas injustiças.

O impacto da industrialização, como sabemos, promoveu a centralização urbana em escala nunca vista, criando novas e terríveis formas de miséria – inclusive a da miséria posta diretamente ao lado do bem-estar, com o pobre vendo a cada instante os produtos que não poderia obter. Essa nova situação logo alarmou as consciências mais sensíveis e os observadores lúcidos, gerando uma série de romances que a denunciam. Aluísio foi o primeiro dos nossos romancistas a descrever minuciosamente o mecanismo de acumulação do capital. No seu romance, está presente o mundo do trabalho, do lucro, da competição, da exploração econômica visível, que dissolvem a fábula e sua intemporalidade.

Antonio Candido conta que no final do século XIX era corrente no Rio de Janeiro o ditado humorístico: “Para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar”. O crítico literário explica que, para o brasileiro livre daquele tempo, com tendência mais ou menos acentuada para o ócio, favorecido pelo regime de escravidão, o português se nivelaria ao escravo porque, de tamanco e camisa de meia, parecia depositar-se (para usar a imagem usual da época) na borra da sociedade, pois “trabalhava como um burro de carga”. A diferença consistia em que: “enquanto o negro escravo e depois liberto era de fato confinado sem remédio às camadas inferiores, o português, falsamente assimilado a ele pela prosápia leviana dos ‘filhos da terra’ podia eventualmente acumular dinheiro, subir e mandar no país meio colonial”.

No romance, o português João Romão não se distingue, inicialmente, pelos hábitos, da escrava Bertoleza: “empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois”. Mas João Romão era o proprietário do cortiço, do qual vai tirando os meios que o elevam no fim do livro ao andar da burguesia, pronto para ser comendador ou visconde.

Bertoleza, apesar de ser explorada até a exaustão por seu companheiro, era feliz, pois vivia iludida na sua falsa liberdade. Ela só compreendeu a sua posição e a sua condição de “animal de trabalho” com a transformação do companheiro. “E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgraçada muitas vezes sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava em segredo, sem ânimo de reclamar seus direitos. Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era o amor que a mísera desejava, era somente confiança no amparo de sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida”.

No momento em que enriqueceu e que foi aceito como futuro marido da filha de Miranda, o negociante português, proprietário do sobrado vizinho ao cortiço, João Romão quis se livrar da escrava Bertoleza. Ele sentia-se atrelado à “negra dos diabos, e não conseguia arredar logo de sua vida aquele ponto negro: apagá-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama!” João Romão se via como alguém que lutara muito e que estava prestes a ver seus sonhos ambiciosos se desfazerem no ar.

João Romão contou com a ajuda de Botelho para se livrar de Bertoleza. Saudosista, o velho Botelho, na sua juventude, fora um comerciante de escravos, profissão da qual muito se orgulhava. Foi com muita decepção e raiva que tomou conhecimento das ideias da época sobre abolição. Sempre que podia vociferava, classificando os abolicionistas e os partidários da Lei Rio Branco de “cáfila de salteadores”. O Brasil, em sua opinião, só tinha uma serventia: “enriquecer os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria”.

O final do romance seguiu uma forma crítica, apontando os “abolicionistas de ocasião”, como refere a historiadora Marília Conforto. João Romão denunciou Bertoleza aos seus antigos donos, que vieram até a venda resgatar a escrava fugida.

Ao ver seus antigos donos e pressentir o que estava para lhe acontecer, Bertoleza se suicida. João Romão, então livre da sua “nódoa de lama”, lucrou novamente com a moribunda instituição escravista. Nesse momento (o do suicídio de Bertoleza), parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha de casaca, trazer a João Romão o diploma de sócio benemérito. Ele mandou que um empregado os conduzisse para a sala de visitas!

(*) Mestre em Direito. Doutoranda em Letras. Analista Tributário da Receita Federal do Brasil


Bibliografia:
Azevedo, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
Candido, Antonio. De cortiço a cortiço. In: Azevedo, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
Conforto, Marília. Faces da personagem escrava. Caxias do Sul: EDUCS, 2001

Nossa fonte: Vermelho