O Brasil, os EUA e o “Hemisfério Ocidental” (2)
JOSÉ LUÍS FIORI
Pensamento dominante em Washington
enxerga hoje, em quase todos os governos sul-americanos, uma ameaça a ser
contida e derrotada
Washington deve sufocar militarmente ações comuns da América do Sul, propôs teórico geopolítico norte-americano mais influente dos no século XX. Em que medida proposição prevalece?
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Em grandes linhas, foi a visão estratégica de Nicholas Spykman1, formulada na década de 1940, que orientou a política externa dos EUA para a América do Sul — democrata e republicana — durante toda a segunda metade do século XX. Nesse período, só Henry Kissinger teve — dentro dos EUA — uma visão geopolítica do mundo tão ampla e inovadora, mas apesar disso, ele não mudou uma vírgula, com relação à visão hemisférica de Spykman. Com a diferença, que Kissinger foi também um executivo, e ocupou cargos de importância crescente, dentro das administrações republicanas, a partir do primeiro governo de Dwight Eisenhower, em 1953, até o final das administrações de Richard Nixon e Gerald Ford, de quem foi Conselheiro de Segurança, e Secretario de Estado, respectivamente. Nesse tempo, participou de conjunturas e decisões internacionais que o transformaram numa das figuras mais importantes da política externa norte-americana, da segunda metade do século XX. Sobretudo durante as administrações de Nixon e Ford, quando deu uma contribuição decisiva para a formulação da nova estratégia dos EUA, de resposta à crise econômica mundial dos anos 70, e à derrota americana no Vietnã, em 1973.
Ele participou diretamente das
negociações de paz no Vietnã, que levaram à assinatura dos Acordos de Paris, em
1973; e das negociações secretas com Chou en Lai e Mão Tse Tung, em 1971 e
1972, que levaram à reaproximação dos Estados Unidos com a China, e a
reconfiguração completa da geopolítica mundial, antes e depois do fim da Guerra
Fria. Mas ao mesmo tempo, Kissinger tomou várias decisões “sangrentas”, que
também foram cruciais, como foi o caso da ordem de bombardeio aéreo do Camboja
e do Laos, sem a autorização do Congresso Americano, em 1969; do apoio à guerra
do Paquistão com a Índia, no território atual de Bangladesh, em 1971; do apoio
e financiamento ilegal da invasão do Chipre, pela Turquia, em 1974; do apoio à
invasão sul-africana de Angola, em 1975; e finalmente, também em 1975, do apoio
à invasão do Timor Leste, pela Indonésia, que se transformou numa ocupação de
24 anos, e custou 200 mil vidas.
Sobre a América do Sul, entretanto,
Henry Kissinger inovou muito pouco, com relação à visão de Spykman, sobre o
potencial de ameaça para os EUA, dos países do Cone Sul. Já haviam passado três
décadas da publicação da sua obra clássica, “America´s
Strategy in World Politics”, em 1942, mas Kissinger seguia considerando
inaceitável o surgimento de um poder hemisférico alternativo nessa região, e
ainda mais, se fosse da parte de um governo de esquerda, ou comunista. Razão
pela qual, apoiou e sustentou os violentos golpes militares2 que derrubaram os governos eleitos da
Bolívia, em 1971, do Uruguai e do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. E existem
evidencias inapeláveis de que também teve injunção na Operação Condor3,
que integrou os serviços de inteligência das Forças Armadas da Argentina,
Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para seqüestrar, torturar e assassinar
personalidades políticas de oposição, nesses países.
Nas décadas de 80 e 90, Henry
Kissinger afastou-se da diplomacia direta, mas manteve uma influencia pessoal e
intelectual muito grande dentro do establishmentamericano,
e entre as elites conservadoras sul-americanas. Em 2001 — uma década depois do
fim da Guerra Fria e da “ameaça comunista” — Kissinger publicou um livro4que
marcou época, discutindo o futuro geopolítico do mundo, e sintetizando os novos
consensos da politica externa dos EUA, para o século XXI. Chama atenção, de
novo, nesse livro, sua posição com relação à América do Sul: para Kissinger, o
continente sul-americano segue sendo — no novo século — uma “zona de
influencia” onde os EUA não podem admitir nenhum tipo de contestação à sua
supremacia estratégica e econômica. Da mesma forma que no século anterior, só
que agora, a grande ameaça à supremacia americana já não vem do comunismo, vem
do “populismo autoritário”, e do “nacionalismo” dos governos que rejeitam as
propostas norte-americanas de integração econômica, do tipo ALCA, na década de
90, e do tipo Aliança do Pacífico, nos anos mais recentes. Ou seja, desse ponto
de vista dominante nos EUA, nesse momento, todos os governos da América do Sul
representariam uma ameaça aos interesses norte-americanos, que deve ser contida
e derrotada, com exceção da Colômbia, do Peru, e do Chile.
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1 J.L.Fiori, “Brasil, EUA e o Hemisfério Ocidental ” (1), Valor Econômico, 29/01/2014
1 J.L.Fiori, “Brasil, EUA e o Hemisfério Ocidental ” (1), Valor Econômico, 29/01/2014
2Na França, Henry Kissinger foi chamado a
depor, pelo juiz Roger Lê Loire, no processo sobre a morte de cidadão franceses
na Operação Condor, e sob a ditadura militar chilena. O mesmo ocorrendo na
Espanha, com a investigação do juiz Juan Guzman, sobre a morte do jornalista
americano Charles Horman, sob a ditadura chilena. E também na Argentina, onde
Kissinger foi investigado pelo juiz Rodolfo Canicoba, por envolvimento na
Operação Condor, assim como em Washington , onde existe um processo na corte
federal com acusação, contra Kissinger, de haver dado a ordem para o
assassinato do Gal Schneider, Comandante em Chefa das Forças Armadas Chilenas,
em 1970.
3Vide Chistopher Hitchens, The
Trial of Henry Kissinger(2003); e
também a resenha de Kenneth Maxwelll, do livro de Peter Kornbluh, The Pinochet file: a Desclassified Dossier
on Atrocity and Accountability, publicado na Revista Foreign Affairs, de
Dezembro de 2003, sobre as relações de Kissinger com o regime de Augusto
Pinochet, em particular com o assassinato do diplomata chileno Orlando Letelier,
em Washington, 1976.
4H. Kissinger, 2001, Does America Need a Foreign
Policy, Simon&Schuster, New York
José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ, é
Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O poder Global e a Geopolítica
do Capitalismo”,www.poderglobal.net. O último livro publicado
pelo autor, O Poder Global,
editora Boitempo, pode ser
encontrado em nossa loja
virtual. O acervo de seus textos publicados no Outras
Palavras, podem ser lidos aqui.
Nossa fonte: Outras Palavras