Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pretinho, o sobrevivente


O carro era uma caminhonete preta, eu estava ao volante, sozinha. Pelo retrovisor eu o via correndo atrás, um cachorrinho. O carro, numa descida, parecia querer parar. Meu pé não achava o acelerador, buscava o freio, meu coração fazia um barulho esquisito, meus olhos se esqueciam de ver a estrada pela frente, não largavam o retrovisor e o Pretinho corria e eu chorava por ele e por mim, impotente. Por fim, ele parou e meu pé voltou ao acelerador, meu peito segurou um coração que emudeceu jogando um grito gutural para o ar que não passava por meu pulmão. As lágrimas caíram e a caminhonete, por alguns metros, se dirigiu sem que meus olhos vissem o caminho. Eta vida desgraçada!

Pretinho é um sobrevivente. Nasceu em algum lugar, com alguns defeitos e muita capacidade de amor. Sua carinha gosta de se encostar nas minhas pernas, num pedido tão dele de carinho. Seu olhar, mostrando muita vivacidade, parece estar sorrindo. Ele quer ser feliz e batalha para isso, contra quem o rejeita. Tem o pelo bem curto, preto, com uma pincelada de branco na carinha, ajudando a imagem do sorriso. Uma perna dianteira, com o atropelamento e sem assistência, ficou torta lhe dando um andar manquitola que não o impede de correr buscando uma proteção – que não consegui lhe dar – ou um brinquedo.
Nós nos conhecemos no quintal da casa de Isa, uma amiga. Na primeira vez que o vi, estava com um pequeno machucado perto dos quadris, onde coloquei um remedinho cicatrizante. Na segunda vez, ele estava com um buraco muito feio no pescoço. Fiquei assustada com o aspecto, percebendo que não daria conta de cuidar,  peguei-o no colo e o levei à veterinária Cláudia que com toda sua competência e sensibilidade o tratou com antibiótico, cicatrizante, vacinas, vermífugo e antipulgas. Como precisava tomar o antibiótico por mais dois dias, ficou internado.
Ao retornar à casa de minha amiga, perguntei a ela se concordava em cuidar do Pretinho, ficando comigo a responsabilidade da ração e do que mais ele precisasse. Nessa casa, já havia um pequeno cão que ganharia um companheiro para suas brincadeiras. Esse cachorrinho fica na varanda da cozinha, onde as pessoas da casa passam a maior parte do tempo. Isa aquiesceu. Então, providenciei uma casinha, comedouro-bebedouro, cobertor, toalha, coleira e guia e fui buscar o meu amigo que já me reconheceu como tal. Não me deixou nenhuma dúvida. Ao me ver, veio correndo e quis subir no meu colo, maneira sua de me cumprimentar que mantém sempre que me vê. Isa colocou as coisinhas do Pretinho na varanda da frente da casa.
Moro em uma chácara que, por questão de segurança, tem um casal de cachorros grandes, territoriais e que não permitem a entrada de nenhum estranho. Por infelizes experiências, sei que não posso trazer o Pretinho, como eu gostaria tanto. Já passei horas buscando uma alternativa, porém seria um risco demasiado grande.
Começou um período de queixas. Toda vez que eu  ia visitar minha amiga – que cuida sozinha de sua mãe, uma idosa deficiente visual e auditiva, além de também não ter total  mobilidade devido a suas pernas sem forças – era recebida com alguma reclamação contra o Pretinho. Até que há dois dias atrás o ambiente ficou insustentável. Apareceu lá um terceiro cachorro que foi recebido na varanda da cozinha. Quando lá cheguei, a primeira frase que ouvi foi: - Não dou conta de cuidar de três cachorros. – Em seguida, uma descrição das traquinices do Pretinho que, na versão de minha amiga, é o líder responsável pelo grande trabalho que estava tendo.  Considerando sua situação estressante de cuidadora, percebi imediatamente que Pretinho precisava de outro lar.
Meu amigo é um cachorro de rua – no caso, de estrada, pois estamos no campo -, um buscador desesperado de um dono. Ele me escolheu e eu não posso cuidar dele, sem colocá-lo numa situação de risco. Lembrei-me que há outra casa onde ele vai muito e lá fomos, então, minha amiga e eu pedir a essa senhora para aceitar o Pretinho. Assumi com ela o mesmo compromisso de levar a ração. Fui buscar mais uma vez o cãozinho e suas coisinhas. Ele sentindo que estava sendo expulso, colocou as duas patas dianteiras nas pernas da Isa e lhe deu um olhar pidão. Cheguei a pensar que haveria uma comoção e desistência, mas me enganei. Peguei-o no meu colo e, imediatamente, ele começou a lamber minha mão, num pedido mudo e eloqüente de socorro. No carro, ele confiante parecia estar contente, querendo subir no meu ombro. Levei-o para a casa de Dona Saturnina. Pessoa muito pobre que mora num terreno com mais duas outras casas da família, mãe e irmã, além de mais três cachorros. Foram todos bastante receptivos, já conheciam o Pretinho a quem chamam de Neguinho. Depois de arrumar as coisinhas dele, pedi para colocar água no bebedouro e Dona Saturnina levantou a tampa de um grande galão de onde tirou a água e me entregou. Percebi que as casas não tinham água encanada.
O cachorro Bidu se mostrou ciumento e eu perguntei se não haveria problemas ao que alguém da casa me respondeu logo: - Não. Eles são amigos.
Acariciei o Pretinho e me despedi, informando que ficaria fora por uma semana e tão logo retornasse iria visitar o Pretinho.
Duas imagens estão na minha retina, no meu coração e na minha cabeça. O Pretinho suplicando à dona da casa para não expulsá-lo e correndo atrás do meu carro. Ele confiou em mim e eu o tirei de onde ele acreditava ser seu lar, deixei-o em outro lugar e vim embora. Coloquei toda minha energia para desejar que o novo lar do meu amigo seja um pouco mais duradouro, que ele consiga pessoas melhores. Minha impotência é, hoje, minha marca.