Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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terça-feira, 12 de novembro de 2013

O espelho e a velhice

À Ti'Ada que parece ter alcançado a harmonia entre o ex e o in

Dona Pandá chegou de sua caminhada acompanhada de  uma amiga a quem ofereceu um chá de melissa, casca de maçã e gengibre. Explicou-nos que essa bebida era limpadora de pensamentos malcriados

Manuela acaba de completar seus 70 anos. Estatura média, magra, pernas e braços mais curtos e tronco alongado, morena, cabelos curtos, despistando as grandes orelhas, pintados com uma cor intermediária entre o loiro e o ruivo, olhos cor de mel que  explicitam uma inteligência fora do comum, nariz arrebitado, testa proporcional ao rosto bem feito quase sem rugas, a flacidez tirando o contorno do queixo bonito.

Abelhuda que sou, pressenti uma conversa interessante e me posicionei num canto discreto o suficiente para não perturbá-las, alimentando meus ouvidos e minha curiosidade. Acho que saí ganhando.

- Então você afirma que tenho pensamentos malcriados? – Pergunta Manuela e Dona Pandá não se intimida, mas toma seus cuidados.

- Você se assustou com sua imagem no espelho porque se sentiu velha e este não é um sentimento dos mais agradáveis.

- Não – interrompeu Manuela  – Eu acabara de moderar uma oficina sobre segurança alimentar onde estávamos a mil, entusiasmadíssimos com as propostas que colhêramos. Tínhamos fechado as atividades com uma dança coletiva e o sentimento era de juventude poderosa e não da velhice caquética que lá estava no espelho. Foi um baita susto! Um horror! Macabro!

- Sei do que está falando. É  a falta de harmonia entre o ex e o in.

- Ex e in?! Quando se fala em ex já penso logo nos ex-maridos e aí a imagem combina com o espelho.

Dona Pandá não conseguiu se segurar e deu uma boa risada. – Ex-maridos não perdoados... Deixemo-los em paz enquanto os pensamentos não ficam bem-comportados, e voltemos aos nossos ex e in. Estou falando do físico, corpo, o que sofre profunda, rápida e inexoravelmente o poder da gravidade da nossa Gaia e, de outro lado – que deveria ser do mesmo e não de outro - da nossa parte interna,  o emocional, o intelectual, aquilo que chamam alma. Muitas vezes, me pergunto se não será por isso que é tão difícil entender a velhice. Como as pessoas, ainda que com boa vontade, não conseguem respeitar, de fato, os sentimentos dos idosos. É, para quem está em outra faixa etária, natural a pessoa envelhecer. “Você já não pode fazer isto ou aquilo” é uma frase dita sem saber que pode ser uma facada.

- Ah! Agora estamos falando no mesmo diapasão.

- Quem sabe as Faculdades de Filosofia aceitem a sugestão do Ubaldo Ribeiro e criem o curso de epistemologia da velhice. Para você jogar fora essa sua macambuzice vou continuar citando a crônica Alegrias da Velhice (1). Segundo o autor, seu amigo Jorge Amado  lhe ensinou muitas coisas inclusive que...”a única coisa que a gente aprende com a velhice e que a velhice é uma merda”. U.R. conta: ...”fui descer dois degraus do palco aonde havia antes subido e quatro jovens pressurosas me apararam as costas e me seguraram os cotovelos como se eu fosse um hipopótamo paraplégico, mas sou no máximo uma anta com artrite e ainda tenho lepidez bastante para descer um meio-fio com relativa confiança. (A velhice não está na mente, está nas juntas.)”

 Marcela, entrando no clima ubaldiano, contou que outro dia ao entrar na sala para fazer densitometria óssea, a jovem técnica foi recebê-la na porta, segurou, com força, seu braço para que subisse na cama do exame e ainda falou três vezes para tomar cuidado com os dois degraus, com a cabeça para não bater no aparelho e repetia “bem devagar, não queremos cair”. Marcela disse que teve vontade de tranquilizar a moça  e lhe respondeu: - Você não sei, mas eu não vou cair e ainda sei andar e estou vendo perfeitamente os degraus e o aparelho.

- Essa é uma pessoa de boa vontade, mas ainda não sabe o que é a velhice. – Dona Pandá continuou: - O que me deixa bastante irritada é o  faz de conta, como as tais  filas preferenciais que, muitas vezes, só têm a placa.
-Concordo que quando isto acontece e vamos cobrar, sempre há as caras mais feias que a necessidade. Voltando à sua teoria da harmonia, diga-me, Pandá, como envelhecer com um bom casamento entre o ex e o in?
- Vou fazer o curso de epistemologia da velhice e depois lhe empresto as anotações de aula.

  

(1)Ribeiro, Joao Ubaldo. O Rei da Noite. Ed. Objetiva. RJ. 2008