Psicanalista e ativista de direitos humanos, com fortes ligações com o
PT, Kehl critica o uso de recursos da Cultura em desfiles de moda. "O
governo precisa fazer opções. Deixar os Pontos de Cultura à míngua e
incentivar a alta costura, é algo absurdo. E algo que aponta lados. Que
demonstra escolhas. Ou seja, menos arte popular. Mais elitismo", diz
ela; para a ministra, moda é, sim, uma expressão cultural
O
apoio do Ministério da Cultura a desfiles de moda continua gerando
polêmica. Em artigo recente, a ministra Marta Suplicy defendeu o
incentivo (leia
aqui). No entanto, em carta aberta à ministra, a psicanalista Maria Rita Kehl criticou essa opção. Leia abaixo:
“Prezada Ministra Marta, como vai?
Escrevo para lhe dizer que concordo com a sua afirmação: moda é cultura.
Alta culinária também. No entanto, eu não penso que sejam estas as
expressões culturais que precisam dos incentivos do MinC.
O argumento de que desfiles sofisticados “melhoram a imagem do brasil no
exterior”, a meu ver, é inconveniente. Esta era uma preocupação dos
governos militares: enquanto havia tortura aqui dentro, eles se
preocupavam com a imagem do Brasil lá fora. Ora, só o fim da ditadura
poderia melhorar nossa imagem frente aos países democráticos.
Hoje,
em plena democracia, a tortura só é praticada nas delegacias da
periferia, contra negros e pobres cujas famílias são intimidadas para
que as denúncias não cheguem nem à sociedade local, quanto menos à
comunidade internacional. Então, oficialmente, vivemos em plena
democracia. Mas o que é que “mancha” a imagem do Brasil no exterior? Não
é a falta de alta costura/alta cultura. É a permanência da
desigualdade, que nem os programas sociais dos governos petistas
conseguem debelar de fato, embora tenham sim diminuído
significativamente a miséria que excluía milhões de brasileiros dos
padrões mínimos de consumo.
A
desigualdade que persiste no Brasil já não é a que impede o povo
brasileiro de se alimentar. É a que impede o acesso das classes baixas
aos meios de produção. Pescadores perdem as condições de pescar – e com
isso, sua cultura tradicional – expulsos de suas comunidades para se
tornarem, na melhor das hipóteses, trabalhadores braçais não
qualificados. Lavradores, quilombolas e grupos indígenas perdem suas
terras – e com isso, as condições de manter suas práticas culturais –
expulsos pela ganância do agronegócio.
Os
Pontos de Cultura criados na gestão Gilberto Gil estão abandonados em
muitas regiões do país. Músicos e poetas das periferias das grandes
cidades não conseguem recursos para mostrar sua arte para o resto do
país. Pequenos grupos de teatro, que sobrevivem graças à Lei do Fomento
criada na sua gestão na Prefeitura de São Paulo, dificilmente conseguem
levar sua produção cultural para outros Estados, muito menos para outros
países.
Não
prossigo indefinidamente com exemplos que sei que são de seu
conhecimento. Termino com uma afirmação que me parece até banal: em um
país tão desigual quanto o nosso, fundos públicos só deveriam ser
utilizados para possibilitar o crescimento de quem não tem acesso ao
dinheiro privado.
Tão
simples assim. Por isso estou certa de que, a cada vez que o MinC, o
MEC, o Ministério da Saúde e quaisquer outros agirem na direção oposta à
da diminuição da desigualdade, a sociedade brasileira vai se indignar.
As expressões dessa justa indignação é que hão de “manchar a imagem do
Brasil no exterior.
Respeitosamente, Maria Rita Kehl."
* Maria Rita Kehl, psicanalista, ensaísta, crítica literária, poetisa e
cronista brasileira.1 Em 2010, foi vencedora do Prêmio Jabuti de
Literatura na categoria “Educação, Psicologia e Psicanálise” com o livro
O Tempo e o Cão.2 3 e recebeu o Prêmio Direitos Humanos do governo
federal na categoria “Mídia e Direitos Humanos”.