Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

As lições de Juscelino Kubitschek em 1964

"A História não perdoa"



JK e seu vice João Goulart

(Publicado no Unisinos).


No dia 1o de abril de 1964, Lincoln Gordon relatava ao Departamento de Estado: “Encontrei Kubitschek às 21:15 e mandei uma mensagem que aparentemente não foi enviada no meio da confusão de ontem à noite. (…) Kubitschek disse que a movimentação de São Paulo seria crítica para o sucesso, e se a rebelião fosse branda, Goulart abriria seu caminho para a ditadura. (…) Nós conversamos sobre o problema da legitimidade, que ele pensou que seria facilmente cuidado pelo Congresso, se o aspecto militar fosse resolvido. Ele tinha visto Goulart no meio da tarde e suplicou que salvasse seu mandato fazendo uma ruptura clara com a CGT e os comunistas, mas Goulart disse que isso seria sinal de uma fraqueza que ele não poderia mostrar. (…) A hora teria claramente chegado e nessas horas não seria necessário nenhum apoio especial dos EUA.”

O informe do embaixador dos EUA no Brasil deixava claro o rompimento do ex-presidente, e então senador Juscelino Kubitschek, com o presidente João Goulart (seu ex-vice), e expunha a sua aberta colaboração com o Departamento de Estado norte-americano, monitorado naqueles dias diretamente pelo presidente Lyndon Johnson, por telefone, de seu rancho no Texas.

Na tarde do dia 1o de abril de 1964, o subsecretário de Estado norte-americano, George Ball, atualizava-se com Gordon sobre a situação no Brasil e traçava as variáveis para o sucesso dos “revoltosos / golpistas”. Segundo essas conversas, um apoio declarado dos EUA fortaleceria o movimento pró-Goulart.

Entre as possibilidades aventadas para retaguarda militar estadunidense estavam acionar porta-aviões, navios e se preciso, aviões, cheios de armamentos (com registro raspado), além de deslocar três destroieres e um submarino para a Baía de Guanabara.

A participação de JK nas movimentações norte-americanas do dia 31 de março não se limitou à conversa com Gordon. Ele também reafirmou a James Minotto, assessor americano para as relações com o Senado, suas posições: “Em uma conversa com James Minotto…, Kubitschek disse que, para razões práticas, a situação já estava definida. Aconteceria um golpe bem-sucedido contra Goulart, e que a resistência a isso se resumiria a uma greve geral de dois ou três dias. [Segundo ele] os trabalhadores … iriam voltar ao trabalho assim que começassem a ficar com fome”. Nessa conversa, JK reconfirmava que “estava rompendo com ele [Goulart] já que o presidente estava seguindo um caminho que acabaria por entregar o país aos comunistas”.

As próximas relações de Kubitschek com os governantes estadunidenses, de ambos partidos, vinham desde antes de seu mandato como presidente. Um relatório “pessoal e confidencial” do então assessor especial da Casa Branca, o magnata do petróleo Nelson A. Rockefeller, ao presidente Eisenhower, após a eleição de JKem dezembro de 1955, mostrava isso.

Para Rockefeller, JK era visto como um aliado importante: “O presidente eleito do Brasil, Juscelino Kubitschek, passou a ser o meu amigo. … Sob sua liderança, parece-me que há uma grande oportunidade para que as relações entre Brasil e EUA sejam muito mais próximas como há muito tempo não são”.

No mesmo relato, Rockefeller indicava que o contato pessoal seria fundamental, para que se desenvolvesse uma boa relação entre os países: “(…) Como muito brasileiros, ele é altamente personalista em seus sentimentos e por causa disso, estou tomando a liberdade de escrever esta nota para fazer uma sugestão relacionada à sua posse, que está próxima…. Eu tenho a sensação que, com base no grande sucesso de suas turnês de boa ‘vizinhança’ anteriores, seria possível que o vice-Presidente Nixon chefiasse a delegação da posse de Kubitschek no próximo mês, onde ele seria muito bem recebido no Brasil e ajudaria enormemente a começar de maneira forte o seu mandato”.

Desde sua campanha, JK era visto pela Casa Branca como garantia de bons negócios e de luta contra o comunismo no País. No mesmo relatório, ainda em 1955, Rockefeller descrevia com bons olhos o Plano de Metas, a aproximação com os EUA e o seu anticomunismo: “Kubitschek mencionou seus planos de promover um grande desenvolvimento da economia brasileira… ele disse que os EUA eram o único país que poderia auxiliá-lo a aprofundar seus planos econômicos… Kubitschek relatou que ele não era comunista e que não permitiria que comunistas fossem ativos no seu governo”.

As escolhas de JK ao longo de sua carreira política, por um desenvolvimento econômico associado (fortemente financiado por bancos internacionais e impulsionado por empresas estrangeiras), pela infraestrutura com base no transporte rodoviário e no petróleo, pelo incentivo às grandes indústrias automobilísticas, e o seu anticomunismo, aproximavam ainda mais Juscelino, eventual candidato à presidência em 1965 (possivelmente contra João Goulart) e os Estados Unidos.

As revelações dos documentos norte-americanos explicitando a colaboração de JK com o embaixador Gordon na véspera do golpe também trazem elementos e lições aos políticos brasileiros de hoje. Muitas vezes o rompimento com a normalidade democrática, motivado por vantagens pessoais imediatas, pode desencadear, a médio e longo prazo, prejuízos incalculáveis ao país e, muitas vezes, a esses próprios políticos. A conjuntura de momento pode ser favorável, mas a História não perdoa.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Em cena, a covardia


Editorial de Carta Capital (Publicada em 27/11/2015)

Os poderes da República assistem impávidos à demolição progressiva do Estado de Direito

Por Mino Carta

Faz duas semanas, em carta publicada na seção competente, um leitor elogiou Carta Capital ao defini-la como revista de esquerda. Que significa ser de esquerda? Bom ou mau? As opiniões, como se sabe, divergem, e em um país maniqueísta como o Brasil divergem absolutamente, embora o significado exato da palavra tenha perdido a clareza de antanho.

Há mesmo quem diga que o tempo das ideologias acabou de vez como se fosse possível admitir a inexistência de ideias capazes de mover as ações humanas. De todo modo, em terra nativa, basta pouco para ser classificado de esquerda, ou mesmo comunista. Vários requisitos exigem-se para chegar a tanto, mas dois são determinantes.

Primeiro, denunciar com todas as letras a insuportável desigualdade reinante no País, recordista em má distribuição de renda. Segundo requisito. Não se acovardar diante da prepotência oligárquica, tão desbragadamente exercida por meio da mídia nativa, paladina de uma liberdade de imprensa que não passa de liberdade de propalar impunemente o que interessa aos patrões, moradores cativos da casa-grande e, portanto, de inventar, omitir e mentir. Esta é também uma forma de corrupção.

No enredo político em pleno desenvolvimento no cenário nacional, o papel da covardia é capital, é a partícula primeva que explode no big-bang. Espero ser entendido ao acentuar que a encenação é digna de um colossal hollywoodiano, e talvez fosse oportuno entregar a direção a Cecil B. DeMille. Cinéfilos vetustos como o acima assinado sabem o que estou a dizer. Vamos, porém, ao ponto, sem exagerar em esperanças quanto a essa compreensão.

A par da credulidade de muitos leitores, ouvintes e telespectadores e da benfazeja indiferença da senzala, preocupada com temas práticos e cotidianos, sobra, com extraordinário vigor, a covardia de quem haveria de resistir. A começar pelo Supremo Tribunal Federal. Lembrei-me do meu professor de Direito Penal na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em uma das cúspides do chamado Triângulo de uma São Paulo adoravelmente provinciana. Noé Azevedo, cavalheiro de cabelos brancos, supunha-o parecido com Caronte, o barqueiro do Styx na versão dantesca, “branco por antigo pelo”. Ensinava a supremacia do Direito Natural: os fatos merecedores de julgamento, hão de sê-lo no mesmo local em que se dão.

Aí está o pecado original, imperdoável, da Lava Jato. Escudado pela polícia curitibana,Sergio Moro manda às favas o Direito Natural. Os ministros do STF não foram alunos do professor Noé, está claro, e talvez nem saibam dele. Poderiam, contudo, ter consciência das suas responsabilidades. No entanto, diante do desmando e de muito outros cometidos na república jurídico-policial de Curitiba, se acovardam.

Divididos nos sentimentos e nos humores, os senhores ministros de uma justiça desvendada, curvam-se aos pés da arrogância midiática. Apavoram-se com a reação, impressa, radiofônica e televisada, a qualquer tentativa de recolocar a situação nos trilhos da lei, sem deixar de apreciar referências gaudiosas às suas pessoas, uma foto aqui, uma nota favorável , ou mesmo uma entrevista, acolá. A citação empolga e compensa o medo.

O mesmo gênero de temor atinge o próprio governo, acuado e até hoje incapaz de inaugurar o segundo mandato de Dilma Rousseff, tão bem representado na sua inércia aturdida por um ministro da Justiça inexoravelmente inepto. Aceita-se a afirmação da prioridade do combate à corrupção, enquanto demole-se o Estado de Direito.

E as bancadas petistas do Congresso e os parlamentares da dita base aliada? Acovardados, alguns à sombra da espada de Dâmocles, outros por que simplesmente tementes à mídia em lugar de Deus, possivelmente alheado como de hábito das misérias humanas. Se algum dia o Brasil foi um Estado de Direito a despeito da presença inesgotável da casa-grande e da senzala, deixa de sê-lo agora debaixo dos golpes das manchetes.

Observa um velho amigo ao me visitar no meio da tarde melancólica: tínhamos um salvador da pátria, chamava-se Joaquim Barbosa, de um tempo para cá tomou-lhe o lugar Sergio Moro. Nada mais simbólico do que a homenagem que lhe fez a Aner, contada nesta edição por Nirlando Beirão na página 30. O herói de camisa preta, adequada a mostrar antes a vaidade do que a identificação ideológica, conforme o editor de CartaCapital.Permito-me observar que o preto também é próprio do coveiro.


Brasília, pesadelo sem saída?

POR 
JOSÉ GERALDO COUTO 

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Em tempos turbulentos, filme de Murilo Salles imagina casal comum tragado pela pequenez da velha política — e é ainda mais provocador por recorrer à “estética do desconforto” que diretor maneja com maestria
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Numa semana trepidante na política e repleta de estreias nos cinemas, destaco aqui um filme tão oportuno quanto incômodo: O fim e os meios, de Murilo Salles. Aliás, num gesto inédito, o diretor está lançando simultaneamente dois outros trabalhos: os documentários Aprendi a jogar com você Passarinho lá de Nova Iorque, ambos sobre artistas populares (um DJ, uma cantora, um cineasta independente) tentando “se virar” no Brasil atual.
Mas, se a terra treme em Brasília, o filme da hora é O fim e os meios, que acompanha os percalços de dois peixes miúdos – uma jornalista e um publicitário – no mar de tubarões do poder político e econômico. Não é um filme-denúncia, não toma partido desta ou daquela facção, não moraliza: simplesmente apresenta dois personagens “comuns” tragados pelo olho do furacão.
Nas bordas da engrenagem
São eles o jovem publicitário carioca Paulo Henrique (Pedro Brício) e a jornalista Cris (Cíntia Rosa), que só passam a formar um casal depois que nasce a filha deles, fruto de uma relação casual. Eles vão morar em Brasília quando Paulo é convidado a trabalhar de “gestor de imagem” para um velho senador (Emiliano Queiroz) e Cris se transfere para a sucursal brasiliense do seu jornal. Ambos falam em topar um “desafio”, uma das palavras mais faladas no filme, quase um eufemismo para “vender a alma, mas só um pouquinho”.
Cena de “O fim e os meios”, de Murilo Salles

Não cabe aqui entrar em detalhes do enredo. O que importa é que o jovem casal vai transitar pelas bordas da perversa engrenagem do poder – e sofrer os efeitos psicológicos, afetivos e morais disso. Dinheiro, intrigas, confusão entre o público e o privado, promiscuidade entre imprensa e poder, em suma tudo isso que conhecemos dos livros ou de ouvir falar, só que aqui mostrado “por dentro”, vivido por “gente como a gente”.
A maneira como Murilo Salles encena e filma esse drama não deixa espaço para o maniqueísmo, a identificação com um dos lados, a catarse. Sob um céu permanentemente carregado, uma paleta de cores reduzida quase ao preto e branco (até mesmo quando se filma uma praia paradisíaca do Nordeste), há uma predominância dos planos gerais, em que os personagens aparecem pequenos, como que oprimidos pelo espaço que os engloba. Poucos closes, recusa sistemática do campo/contracampo, raros momentos de câmera subjetiva, quase nenhuma música. Ou seja, nada dos recursos habituais que, na decupagem clássica, induzem à identificação emocional do espectador com este ou aquele personagem.
Desconforto
Tudo é desconforto, como costuma acontecer no cinema de Murilo Salles, em que ninguém é totalmente virtuoso ou totalmente canalha. Inútil tentar buscar aqui referências a personagens individuais da nossa política. Não é um roman à clef. O senador que contrata Paulo Henrique tem um pouco de Sarney, um pouco de ACM, mas vai além desses modelos: é, sim, um coronel nordestino arquetípico, um “faraó embalsamado” da nossa sociedade oligárquica, mas ao mesmo tempo um personagem de carne e osso, que não abre a boca durante todo o filme, mas transmite pelo olhar uma gama enorme de ideias e sentimentos. É quase uma esfinge que nos desafia à decifração. (Diga-se entre parênteses: que ator extraordinário, esse Emiliano Queiroz!)
Oriundo da direção de fotografia, Murilo Salles é um cineasta essencialmente visual, isto é, alguém que sabe que o cinema, mais do que com ideias e palavras, se faz com imagens e sons (o que inclui as palavras, mas não se resume a elas). Parece óbvio, mas quando examinamos nossa filmografia política vemos que há, em geral, muito discurso e pouco cinema. E O fim e os meios, filme em que a primeira fala só surge depois de dez minutos (e ainda assim dirigida a um cachorro!), está repleto de imagens fortes e originais: um homem escondido numa laje na cobertura de um prédio em Copacabana, tomando banho na caixa d’água, mijando numa garrafa de plástico ou procurando um canto onde o sinal da internet seja melhor; fogo consumindo malas de dinheiro numa estrada de terra em meio a um canavial; dois casais conversando em volta da mesa numa mansão em Brasília, com o espaço fragmentado e duplicado por espelhos.
Ao controle absoluto da profundidade de foco soma-se uma “profundidade de som” que nada tem de naturalista ou aleatória. Há, por exemplo, uma cena em que Cris conversa com uma possível “fonte” para uma matéria. Os dois estão bem distantes no fundo do quadro, mas ouvimos perfeitamente a conversa, quase como se eles estivessem “grampeados” por aparelhos de escuta. O procedimento nos estimula a imaginar o teor das conversas ao pé do ouvido que vemos à distância nas reportagens televisivas nos espaços do poder em Brasília.
Herança patriarcal
A personagem Cris – jovem, bela, inteligente, altiva, negra – condensa, de certa forma, as principais tensões em curso. Tudo passa por ela, ou antes, a atravessa: o racismo, o machismo, a exploração profissional, toda a herança patriarcal da nossa sociedade. O que provavelmente incomodará muita gente é o fato de que ela não é uma vítima e tampouco uma heroína: é uma mulher plena de fraquezas e contradições. Sua atitude ambivalente diante do homem que a agride sexualmente talvez gere revolta entre feministas mais afoitas. A questão é que ela não está lá para representar a luta das mulheres, mas o drama de uma única mulher, ela própria.
Mais vale, a meu ver, atentar para a sutileza com que é filmada (ou melhor, omitida) a cena da violência sexual propriamente dita. Numa elipse visual, a câmera percorre, em contre-plongée, escadas, forros e tetos da casa, enquanto ouvimos os sons abafados e distantes do casal no ato. Os olhares silenciosos das empregadas mostram que elas também ouviram, e isso é o que importa.
Mais do que na frase grosseira do violentador (Marco Ricca) – “Seu marido te chama de ‘neguinha gostosa’?” –, nosso racismo velado, naturalizado, se revela quando um entregador toca a campainha e diz à protagonista, assumindo que ela seja a empregada: “Entrega para a dona Cris”. “Eu sou a dona Cris”, ela responde, ofendida.
Haveria muito mais a dizer sobre O fim e os meios, bem como sobre os dois novos documentários de Murilo Salles, mas este texto já está longo e é preciso falar de outra estreia importante da semana.
A Califórnia não é aqui
Filmes protagonizados por adolescentes e ambientados em décadas passadas, brasileiros ou não, correm o risco de cair na frivolidade, na idealização nostálgica ou, pior, num bom-mocismo doutrinário. Exceções recentes são o ótimo Depois da chuva, de Cláudio Marques e Marilia Hughes, e o delicado Califórnia, de Marina Person.
Estreia da diretora no longa de ficção (seu filme anterior é um documentário sobre seu pai, o cineasta Luis Sérgio Person), Califórnia traz evidentes traços autobiográficos ao retratar uma garota paulistana de classe média nos confusos anos 1980. A descoberta do amor, o aprendizado do sexo, a dolorosa construção de uma identidade num mundo em transformação, sob a ameaça ainda obscura da Aids e as canções dilacerantes de The Cure, David Bowie, New Order, Titãs etc.
O eixo da narrativa é a relação, em boa parte epistolar, entre a tal garota, Estela (Clara Gallo), e seu tio jovem e libertário (Caio Blat) que mora na Califórnia. Os relatos do tio alimentam a fantasia de Estela, configurando uma Califórnia idealizada como espaço de descoberta, invenção e liberdade. A vinda dele para São Paulo ocasionará um confronto entre o imaginário e o real. O “lado B” dajoyous free and flaming life revela-se bruscamente – e não é nisso que consiste, no fundo, a passagem da infância à idade adulta? E mais não se pode dizer, sob pena de entregar demais a história
FonteOUTRAS PALAVRAS

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Dia da infâmia: entre a chantagem de Cunha e a hipocrisia da oposição

Fernando Morais

Minha geração testemunhou o que eu acreditava ter sido o episódio mais infame da história do Congresso. Na madrugada de 2 de abril de 1964, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República, sob o falso pretexto de que João Goulart teria deixado o país, consumando o golpe que nos levou a 21 anos de ditadura.

Indignado, o polido deputado Tancredo Neves surpreendeu o plenário aos gritos de “Canalha! Canalha!”.

No crepúsculo deste 2 de dezembro, um patético descendente dos golpistas de 64 deu início ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

A natureza do golpe é a mesma, embora os interesses, no caso os do deputado Eduardo Cunha, sejam ainda mais torpes. E no mesmo plenário onde antes o avô enfrentara o usurpador, o senador Aécio Neves celebrou com os golpistas este segundo Dia da Infâmia.

Jamais imaginei que pudéssemos chegar à lama em que o gangsterismo de uns e o oportunismo de outros mergulharam o país. O Brasil passou um ano emparedado entre a chantagem de Eduardo Cunha – que abusa do cargo para escapar ao julgamento de seus delitos – e a hipocrisia da oposição, que vem namorando o golpe desde que perdeu as eleições presidenciais para o PT, pela quarta vez consecutiva.

Pediram uma ridícula recontagem de votos; entraram com ações para anular a eleição; ocuparam os meios de comunicação para divulgar delações inexistentes; compraram pareceres no balcão de juristas de ocasião e, escondidos atrás de siglas desconhecidas, botaram seus exércitos nas ruas, sempre magnificados nas contas da imprensa.

Nada conseguiram, a não ser tumultuar a vida política e agravar irresponsavelmente a situação da economia, sabotando o país com suas pautas-bomba.

Nada conseguiram por duas singelas razões: Dilma é uma mulher honesta e o povo sabe que, mesmo com todos os problemas, a oposição foi incapaz de apresentar um projeto de país alternativo aos avanços dos governos Lula e Dilma.

Aos inconformados com as urnas restou o comparsa que eles plantaram na presidência da Câmara – como se sabe, o PSDB, o DEM e o PPS votaram em Eduardo Cunha contra o candidato do PT, Arlindo Chinaglia. Dono de “capivara” policial mais extensa que a biografia, Cunha disparou a arma colocada em suas mãos por Hélio Bicudo.

O triste de tudo isso é saber que o ódio de Bicudo ao PT não vem de divergências políticas e ideológicas, mas por ter-lhe escapado das mãos uma sinecura – ou, como ele declarou aos jornais, “um alto cargo, provavelmente fora do país”.

Dilma não será processada por ter roubado, desviado, mentido, acobertado ou ameaçado. Será processada porque tomou decisões para manter em dia pagamentos de compromissos sociais, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida.

O TCU viu crimes nessas decisões, embora não os visse em atos semelhantes de outros governos. Mas é o relator das contas do governo, o ministro Augusto Nardes, e não Dilma, que é investigado na Operação Zelotes, junto com o sobrinho. E é o presidente do TCU, Aroldo Cedraz, e não Dilma, que é citado na Lava Jato, junto com o filho. Todos suspeitos de tráfico de influência. Provoca náusea, mas não surpreende.

“Claras las cosas, oscuro el chocolate”, dizem os portenhos. Agora a linha divisória está clara. Vamos ver quem está do lado da lei, do Estado democrático de Direito, da democracia e do respeito ao voto do povo.

E veremos quem se alia ao oportunismo, ao gangsterismo, ao vale-tudo pelo poder. Não tenho dúvidas: a presidente Dilma sairá maior dessa guerra, mais uma entre tantas que enfrentou, sem jamais ter se ajoelhado diante de seus algozes.

Fonte: Fundação Perseu Abramo
(Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Estelita vence: direito de propriedade não é absoluto




Justiça reconhece argumento dos que defendem cidades para todos: valor histórico, paisagístico, ambiental, social e político não pode ficar subordinado ao poder econômico. Mas batalha está só começando
Por Raquel Rolnik

No último sábado (28), a população do Recife acordou com a notícia da decisão judicial que anulou o leilão da venda da área do Cais José Estelita, realizado em 2008, em resposta à ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal. Essa área, de cerca de 100 mil metros quadrados, pertencia à Rede Ferroviária Federal, que, uma vez extinta, teve seu patrimônio transferido para a União, ou seja, o governo federal. Em leilão, a área foi arrematada pelo consórcio Novo Recife, formado pelas construtoras Moura Dubeux, GL Empreendimentos, Ara Empreendimentos e a empreiteira Queiroz Galvão. Ali, o grupo pretendia implementar um megaempreendimento imobiliário, com 13 torres de edifícios de luxo de cerca de 40 andares.

Desde 2012, porém, articulou-se um forte movimento de contestação a esse projeto, o Movimento Ocupe Estelita, que vem promovendo inúmeras ações para abrir canais de diálogo sobre o futuro daquela que é uma área privilegiada da cidade, tanto por sua localização, quanto por sua paisagem e história. Sem dúvida, a forte mobilização do grupo – que ganhou repercussões internacionais – é a grande responsável por levar o debate sobre o futuro do Cais José Estelita aos mais diversos setores da sociedade. Sem isso, muito provavelmente, as torres já estariam de pé.

A sentença do juiz Roberto Wanderley Nogueira não apenas determina a restituição daquele patrimônio à União – por considerar que o leilão foi realizado indevidamente –, como anula a aprovação do projeto nos órgãos municipais, por entender que diversas exigências e condicionalidades não foram cumpridas. De acordo com o juiz, “não pode o coração da primeira República das Américas, filha do Recife e de Olinda, quedar subjugado à sanha patrimonialista da especulação imobiliária dos tempos contemporâneos. Há muito mais de valor histórico, paisagístico, ambiental, social e político a proteger que as economias, sempre sequiosas, dos afortunados de momento, não raro consorciados a setores do Poder Público.”

Este trecho da sentença chama a atenção para uma questão extremamente atual para o nosso país, que diz respeito à forma como são tomadas as decisões sobre o uso do patrimônio público e o destino das nossas cidades. O Estelita não é o único caso em que importantes terras públicas foram passadas para o mercado por meio de leilões ou licitações “pra inglês ver”, já que, na maioria das vezes, os resultados são definidos previamente. São procedimentos que a sociedade hoje questiona, cobrando transparência, diálogo e efetiva participação nas decisões sobre os rumos de pedaços importantes do nosso território.

A sentença é de primeira instância, portanto, o mais provável é que se inicie agora uma guerra judicial, já que o consórcio deve recorrer da sentença. Uma das preocupações é garantir que, no vaivém de recursos, nenhuma obra possa ser iniciada antes que a questão esteja definitivamente resolvida pela Justiça. Se isso não acontecer, o Recife verá se repetir a novela das chamadas Torres Gêmeas – duas megatorres residenciais de alto padrão (da mesma construtora, Moura Dubeux), também no centro histórico da cidade, cujo leilão chegou a ser anulado pela Justiça, mas sem nenhum resultado, pois o empreendimento já havia sido concluído e comercializado.

Por fim, é necessário reafirmar a importância de que se abra uma ampla discussão pública, participativa e transparente sobre o futuro daquela área, que permita traçar diretrizes e formular um projeto democrático, includente, que atenda às necessidades da população, respeitando a paisagem, sua história e sua cultura. A vitória não será definitiva enquanto a área permanecer em ruínas. Este é agora o maior desafio: Recife e o Movimento Ocupe Estelita podem entrar para a história com um projeto de reconquista da cidade, construído e implementado com participação pra valer.
Fonte: Outras Palavras

Ocupando a futuridade



[Fotograma do Do filme “OCUPAÇÃO” (2015), dirigido por Giovanni Alves.]

Por Giovanni Alves.

O movimento de ocupação das escolas públicas do Estado de São Paulo pelos estudantes secundaristas que lutam contra o projeto de reorganização e fechamento de escolas do governo Geraldo Alckmin pode ser considerado o movimento social de maior expressão político-simbólica no Brasil de hoje. Foi um sopro de esperança no Brasil – e principalmente no Estado d São Paulo – assolado pela estupidez da classe média liberal e mediocridade politica e sindical incapaz de canalizar as energias dos movimentos sociais das camadas médias assalariadas indignada e da classe operária insatisfeita numa perspectiva de mudanças social efetiva para além do politicismo vigente. O movimento social da juventude insurgente contém um significado radical: a re-apropriação democrático-radical do espaço escolar. Indo além de sua imediaticidade política, o movimento de ocupação das escolas públicas pelos estudantes secundaristas é efetivamente uma crítica radical dos protocolos estranhados da gestão escolar em suas múltiplas dimensões. A moçada insurgente quer uma nova escola pública que deixer de ser um sistema burocrático e ideológico insensível às demandas dos sujeitos-produtores do processo de ensino-aprendizagem – não apenas professores, mas servidores administrativos e estudantes secundaristas.

O pólo protagonico de luta contra a política de educação pública dos governos do PSDB tem sido historicamente os professores que lutam há décadas por dignidade salarial. Inclusive em 2015 a APEOESP conduziu uma greve de 100 dias reivindicando principalmnte melhores salários e mudança na precarização contratual do professores do Estado de São Pauo. O governo Alckmin se manteve impassível rejeitando a negociação coletiva com a entidade sindical que representa os docentes do ensino público. Não é novidade que a precarização do trabalho docente nas escolas públicas do Estado de São Paulo assumiu hoje dimensões catastróficas. A profissão de professor tornou-se um sina danada pela falta de perspectivas salariais e reconhecimento social e profissional. É claro que não se trata apenas da realidade do Estado mais rico do País – o que é um contrasenso, mas trata-se de uma política nacional de desprezo pela valorização salarial e profissional dos professores no Brasil. Não iremos tratar neste artigo da miséria do trabalho docente das escolas públicas no Brasil. Degrada-se o trabalho de educação de crianças e adolescentes, esteios da futuridade do Paìs. A crise da educação em sua dimensão pública é uma forma crucial da alienação do capital em seu patamar histórico de crise estrutural, expressando em s e ara si, a desvalorização da atividade social, humana e profissional, do professor de educação pública, o produtor da educação entre crianças e filhos adolescentes das famílias das camadas médias baixas e camadas populares da sociedade brasileira, o verdadeiro esteio da barbárie social que avança nas condições do capitalismo catastrófico no Brasil. É um tema candente cuja solução política eencontra-se distante principalmente no cenário de crise orçamentária dos Estados brasieiros.

Entretanto, em 2015, diante do projeto de reorganização escolar do governo Alckmin, surgiu de modo imprevisivel, um novo sujeito protagonico de luta social contra a degradação da educação pública. Provavelmente nem o governo Alckmin, nem a própria APEOESP, a entidade sindical dos professores, acrediatavam que os estudantes secundaristas rebeldes assumiriam com a estratégia de ocupação das escola pública do Estado de São Paulo, o protagnismo contra o projeto de reorganização escolar do governo do PSDB – intitulado eufemisticamente de “reforma dos ciclos”. Por trás da “reforma dos ciclos” temos o fechamento de escolas públicas, o amento de alunos em salas de aula – degradando, deste modo, mais ainda o processo de ensino-aprendizagem – e a constituição de um modo de organização escolar como ante-ala da terceirização da gestão escolar (como ocorreu nos Estados de Goias e ará, administradões politicas do PSDB). Enfim, a uurpação da coisa pública pela lógica privatista.

Poderiamos dizer que os estudantes secundaristas que ocuparam o território das escolas públicas, conseguiram elaborar, em si, uma crítica radical da escola pública tal como existe hoje, indo além das demandas econômico-corporativas do movimento sindical de professores. O sindicalismo dos professores nunca conseguiu efetivamente elaborar na prática sindical, uma crítica da gestão escolar autocrática na escola e na sala de aula. A crítica dos conteúdos curriculares sem sentido que contribuem para que o desinteresse pelo processo de ensino-aprendizagem nunca assumiu um carater sistematico capaz de mobilizar o conjunto de professores, muitos deles imbuidos da cultura de autoritarismo que caracterzou as relações sociais nas instituições disciplinares como a escola pública. Talvez muitos professores e funcionários das escolas não tenham a perspectiva da dimensão política e histórica radical do ato de rebeldia dos meninos e meninas que decidiram ocupar aquilo que estava efetvamente alienado deles – não apenas o espaço escolar em si, mas o próprio sentido da educação e do espaço coletivo da escola pública degradado pela lógica neoliberal (a violência endêmica nas salas de aula de alunos contra porfessores, çor exemplo, representa uma escola pública cerceada pela lógica alienado do capital).

De certo modo, a ocupação organizada e auto-gerida das escolas públicas pelos coletivos de estudantes secundaristas conseguiu, nesse pouco tempo de movimento social, crescer, cativar a sociedade paulista e ir além, no plano do imaginário da juventude rebelde mais avançada politicamente, das demandas político-corporativas da mera luta contra a reorganização escolar do governo Alckminn. É isto que as midias hegemonicas querem – reduzir o movimento de ocupação estudantil a luta contra a reestruturação escolar do governo do PSDB. Após o recuo do governador Alckmin, revogando o decreto-lei da reorganização escolar, os poderes constituidos do Estado burguês, querem que as escolas públicas sejam desocupadas e que tudo volte a ser como antes. Entretanto, por um curto lapso de tempo histórico, reconfigurou-se o espaço escolar nas escolas públicas ocupadas. Percebeu-se que uma nova escola pública é possivel. A escola ocupada tornou-se não mais um aparelho burocrático de ensino-aprendizagem ou aparelho ideológico do Estado propriamente dito (como diria Louis Althusser). De repente, os estudantes secundaristas tornaram-se produtores associados da educação como formação humana, elabrando pautas de atividades culturais e parecrias com a comunidade local e a sociedade capazes de dar sentido pleno à atividade educacional.

Na verdade, o ato da ocupação no sentido territorial – um espaço como relação de poder – significou a afirmação da democracia direta dos estudantes secundaristas que participam da ocupação num primeiro momento, contra a lógica tecnocrática de reorganização das escolas públicas sem promover a discussão pública ampla e irrestrita com a sociedade civil organzadas do Estado de São Paulo, principalmete APEOESP e entdades de representação estudantil. Por trás da lógica tecnocrática existem interesses ocultos e escusos que movem a intencionalidade política do governador Geraldo Alckminn. Como não poderia deixar de ser assim, governos de direita odeiam a discussão democrática e a consulta popular, adotando práticas autocráticas de administração da coisa pública à margem dos produtores sociais, como ocorria, por exemplo, na ditadura civil-militar. Na verdade, o Estado brasileiro de cariz neoliberal apesar do fim da ditadura civil-militar preserva a cultura autocratica da gestão da coisa pública persistem que convive ao lado de seus aparelhos de repressão, como a Policia Militar. Enfim, ocupar o território da coisa pública tornou-se o ato supremo de afirmação da democratização da res pública. No fundo, reside um carecimento radical que se manifesta com vigor na juventude proletária: o anseio de re-apropriar-se dos espaços de vida alienada pela pseudo-concreticidade da vida cotidiana.

Como movimento social lastreado numa espontaneidade indignada e rebelde, característico da juventude na flor da idade, o ato de ocupação organizado possui múltiplas significações. Como salientamos acima, a intencionalidade direta é barrar o projeto de reorganização escolar do governo Alckminn. Mas para além do ato politico-corporativo, o processo de ocupação estudantil possui um significado imanente de crítica da estrutura escolar pública com sua gestão autocrática por parte de dirigentes de escolas e inclusive, professores e funcionários públicos insensiveis à cultura libertária. Como podemos apreender no video-documentário “Ocupação”, de Giovanni Alves (Projeto CineTrabalho/Práxis vídeo, 2015), o espaço de autonomia constituido pelos estudantes secundaristas que ocuparam de forma organizada e auto-gerida as escolas públicas, fez aflorar carecimentos radicais para além da mera demanda político-corporativa de impedir a reestruturação escolar do governo do PSDB. Na verdade, a ocupação tornou-se um espaço de aprendizagem político-radical da cidadnia ativa, resgate inestimável dos valores fundantes e fundamentais para a formação da consciência de classe: autonomia, solidariedade e união. Aboliu-se num lapso de tempo histírico, a alienaçao escolar que os educava para a subalternidade proletária. A experiencia coletiva da ocupação educa-os – ou cria a possibilidade de educação – para os valores da luta e resistência do precariado em formação. A ocupação está sendo para os estudantes secundaristas rebeldes, muitos deles originariamente não envolvidos com o movimento estudantil, a aula de política mais importante do resto da vida deles. Esta juventude secundarista, de origem proletária, representa o que podriamos denominar de precariado seminal, o precariado em formação, que incorpora e expressa na sua espontaneidade juvenil, aquilo que Karl Marx considerou fundamental na classe social do proletariado: a Selbsttätigkeit, movimento espontâneo e autônomo do proletariado, isto é, a auto-atividade histórica do proletariado.

Deste modo, com a ocupação da escola pública eles vivem a experiencia da nova sociabilidade democraica radical. Um espaço de autonomia inédito que explicita os sonhos imanentes da emancipação social. Energias utópicas restritas à espontaneidade e temporalidade cnstrangedora do tempo histórco social manifestam-se de modo bruto. Por um lapso de tempo histórico rompe-se com a vida alienada do cotidiano burguês (familia, escola, lazer). Pelos depoimentos vistos no documentário “Ocupação”, critica-se na prática, as instâncias repressivas da vida burguesa – não apenas o governo Alckminn, parte compositivas do Estado neoliberal no Brasil, mas também a gestão escolar autocrática de dirigentes e professores das escolas públicas e inclusive, os conteúdos escolares sem sentido para a juventude do século XXI. Crítica-se também a família repressiva, com alguns pais, seduzidos pela mídia neoliberal hegemônica, proibindo filhos de participarem do movimento de ocupação escolar e desqualificando o próprio valor da ação política. Nesse caso, o conflito geracional que permeia as familias expõe a dialética da vida onde os jovens educam efetivamente os mais velhos.

Finalmente, os estudantes secundaristas que participam das ocupações estudantis se auto-criticam como pessoas humanas, contestando não apenas a dominação política do capital e as práticas de exploração do trabalho que contaminam os loci escolares, mas. Por exemplo, a sociabilidade de opressão de gênero. A alteridade do outro é reconhecida e abomina-se as práticas discriminatórias e preconceituosas. O outro-como-concorrente interverte-se em outro-como-próximo. Um detalhe: o protagonismo das mulheres no movimento de ocupação estudantil das escolas públicas é flagrante. Na verdade, no seio do movimento estudantil que ocupa as escolas públicas contesta-se radicalmente o machismo como forma de autocracia sociometabolico do capial. Na verdade, o coletivo das ocupações estudantis anseia – como utopia social – uma sociabilidade humana de novo tipo para além da miséria brasileira. Trata-se de uma tarefa árdua de crítica biopolítica da vida cotidiana. Infelizemnte, não é dentro dos limites do movimento de ocupação escolar que ocorre nas escolas públicas do stado de São Paulo que se efetivará a mudança social necessária se afirmar a utopia da nova socialibilidade libertária.

Enfim, o precariado seminal constituído pelos estudantes secundaristas que ocupam as escolas públicas expõem de modo dilacerante as contradições radicais do capitalismo global. Contestam a função ideológica da escola pública como instância de formação e reprodução das relações de exploração da força de trabalho. A escola capitalista é uma pequena fábrica onde se cultiva a disciplina e o assujeitamento de classe. Os estudantes são pequenos operários submetidos aos rudimentos de relações sociais de exploração. Eles são trabalhadores assalariados em formação, isto é, individualidades pessoais de classe que compõem o precariado do amanhã – o precariado seminal. Na medida em que aprendem a rebelar-se, re-apropriam-se da humanidade que está sendo alienado de si – ou melhor, ocupam a futuridade que está lhes sendo roubada. Na verdade, abre-se uma fratura na subjetividade burguesa hegemonica, sendo, deste modo, o movimento de ocupação dos espaços públicos pelos próprios cidadãos proletários, um elemento compositivo daquilo que John Holloway denomina de fissurar o capitalismo (provcar fissuras na estrutura de poder do capital). Talvez o velho Herbert Marcuse – e mesmo Ernst Bloch – tenham conseguido vislumbrar, na década de 1960, caracterizada pelas manifestações estudantis nos EUA e Europa Ocidental, a pulsão proletária – no sentido deSelbsttätigkeit, – da juventude rebelde. Os “trinta anos perversos” do capitalismo global (1980-2010) procurou enquadrar e manipular a juventude proletária, castrando seus sonhos concretos de contestação social, reduzindo-os aos sonhos, valores e expectativas de mercado. Entretanto, a crise do capitalismo neoliberal abriu fraturas na subjetividade reificado do precariado – a juventude altamente escolarizada inserida em condições de trabalho e vida precária. Aliás, o fenômeno do precariado indicou a irrupção de carecimentos radicais incapazes de serem efetivados pelo capitalismo catastrófico – capitalismo neoliberal na etapa de crise estrutural do capital.

Portanto, o elemento essencial da estratégia de ocupação de espaços públicos pelos cidadãos proletários – como ocorre hoje com a ocupação estudantil das escolas públicas no Estado de São Paulo – é o sentido de re-apropriação da coisa pública alienada. Na verdade, trata-se efetivamente de luta contra a alienação n sentido radical. O público torna-se o coletivo auto-gerido. Diríamos mais – hoje, mais do que nunca, a estratégia de ocupação organizada e auto-gerida dos territórios públicos, torna-se a principal estratégia de luta contra a degradação das instâncias de produção de valores civilizatórios que caracteriza o capitalismo global no século XXI.

Na medida em que a prática da ocupação de espaços públicos pelos próprios cidadãos e produtores sociais cria, amplia e envolve a comunidade local e a sociedade em particular, buscando apoio em outras instâncias associativas e sindicais e organizações da sociedade civil, ela cria um fato político hegemonico capaz de conter a degradação dos espaços de produção dos valores civilizatórios. Torna-se um elemento fundante de socialização da política radical e construção da hegemonia social e cultural. De repente, ocupa-se não apenas escolas públicas, mas também, por exemplo, hospitais públicos, terras públicas, etc. A re-apropriacao da coisa pública na era da sociedade neoliberal torna-se um ato de cidadania ativa e momento de formação da consciência de classe necessária, pois o que presenciamos com as ocupações é uma forma complexa de luta de classes que caracteriza hoje a sociedade brasileira, exigindo, sob pena de colapsar sob seus próprios limites estruturais, expandir-se para a processualidade política social e democrático-institucional capaz de transformar – no sentido de sua extinção – o próprio Estado político do capital.

Enfim, a estratégia política de ocupar como modo de fissurar a reificação capitalista é a estratégia essencial de luta não apenas contra a degradação da coisa pública – e inclusive do fundo público, que direciona cada vez recursos do orçamento público para interesses do capital – mas de luta contra a degradação da pessoa humana-que-trabalha, buscando resgatar as individualidades pessoais do estranhamento social que as dilacera.

O capital hoje é uma máquina de dilacerar a subjetividade, a sociabilidade e a individualidade das pessoas humanas que trabalham. A prática social de reapropriacao coletiva e auto-gerida da coisa pública é uma prática de luta contra a “captura” da subjetividade; de resgate da alteridade do Outro-como-proximo contra o mundo social do individualismo possessivo, concorrência e machismo; e também reapropriacao dos valores culturais das objetivações civilizatórias alienados pela máquina de imbecilização cultural e miséria espiritual da indústria cultural burguesa. Enfim, a estratégia de ocupação dos espaços públicos – mesmo na sua dimensão contingente – é um aviso de alerta que precisamos resgatar (e ocupar) com urgência, a futuridade condenada pela barbárie social e o extermínio civilizatório do capital.

Finalmente, é importante salientar que a ocupação organizada e auto-gerida pelos estudantes secundaristas é um acontecimento transcotidiano, isto é, um lapso radical, luminoso e diruptivo, que fratura a pseudo-concreticudade da vida escolar cotidiana. Entretanto, posui limites estruturais candentes – principalmente numa conjuntura de reação histórica do capital. Caso não se altere a correlação política das forças sociais no Brasil e não se extinga efetivamente o Estado capitalista neoliberal – o que obviamente improvável nas condições históricas do Brasil hoje, tendo em vista a hegemonia burguesa no País –, o ato de ocupação como prática de luta e contestação social, não se tornará efetivamente sustentável no sentido de instaurar uma nova materialidade social. Ao invés do delírio esquerdista de lideranças da extrema-esquerda que incitam as ocupações, não vivemos numa conjuntura revolucionária como por exemplo, a Rússia de 1917 ou o Chile de 1972. A experiência das ocupações estudantis é um delicada flor da utopia social do precariado seminal, um aviso de alerta para as forças sociais demcráticas, ppulares e socialistas que almejam mudar a sociedade brasileira. Entretanto, o valor da ocupação estudantil das escolas públicas reside na sua própria dinâmica contingente de reconfigurar as subjetivudades do precariado seminal.

A experiência do precariado seminal, o precariado em formação, é a experiência social de resgatar a futuridade alienada. Os estudantes secundaristas serão o precariado do amanhã. Talvez seja importante refletirmos sobre a luta candente do precariado contra a futuridade alienada. Por isso, o que o precariado seminal expõe com a ocupação da coisa pública é a luta pela futuridade no sistema do capital que consome o futuro. Luta pela democracia radical, luta pelo fundo público e luta contra a degradação da pessoa humana. Estes são os indícios radicias do movimento social contingente da ocupação estudantil das escolas públicas do stado de São Paulo que assistimos em 2015. No fundo, é uma reação contingente à lógica neoliberal que impulsiona o capital como contradição viva. Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo e sua lógica do mercado, a não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências pós-capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o que diz o livro dos “Genesis” do capital. Esta é a perspectiva epistemológica e moral da economia política tão criticada por Marx. A presentificação histórica do capitalismo tal como operava a economia politica é a versão clássica (e elegante) da presentificação crônica que entorpece o precariato sob o capitalismo manipulatório. Como observou o filósofo Henri Bérgson no começo do século XX, “nós praticamente só percebemos o passado”, com o “presente puro sendo o avanço invisível do passado consumindo o futuro”. O que significa que o “presente puro” não existe; ele é apenas “o passado consumindo o futuro”. O que Bergson descreve, sem o saber, é a ontologia da temporalidade do capital, onde o passado, com sua inércia amortecedora, domina o presente, eliminando as chances de uma ordem futura qualitativamente diferente. Na verdade, para I. Mészáros a temporalidade do capital é uma “temporalidade decapitada”, isto é, temporalidade restauradora, “a paralisante temporalidade restauradora do capital”, tendente a construir um “futuro” como uma espécie de versão do status quo ante. Deste modo, a temporalidade do capital que hoje se afirma não é uma temporalidade aberta, mas sim uma temporalidade fechada que não liga o presente a um futuro de verdade que já se abre à frente.

No caso dos “precários”, eles tem a percepção clara da temporalidade fechada do capital, percepção estranhada de perda do futuro que os projeta, no plano da contingencia, na “presentificação crônica” do metabolismo social do capital. Ideologicamente, na sua consciência contingente, incorporam a presentificação histórica do capitalismo posta pela consciência liberal. Na verdade, a consciência liberal só traduz, no plano ideológico, o modo de ser da “paralisante temporalidade restauradora do capital”.

Nas condições do poder da ideologia e da constituição da “multidão” do precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a necessidade radical da luta ideológica que, num mundo social do trabalho precário, torna-se mais candente tendo em vista a exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital como sociometabolismo estranhado. A ansiedade perante o futuro não se trata apenas de um problema social (vínculos laborais precários, baixos salários, falta de direitos laborais), mas sim, trata-se de um problema existencial que corrói a individualidade pessoal. Na verdade, a precariedade interdita a vida pessoal do sujeito de classe. É a alienação/estranhamento na sua dimensão radical.

Para a camada social do precariado, trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados que não conseguem se inserir na cidadania salarial construída pelo Estado de Bem-estar social, o principal problema da precariedade é “esse futuro que nos estão a tirar”. Esta percepção de futuro hipotecado é um traço recorrente no discurso de indignação de jovens adultos-adultos que construíram sua individualidade pessoal de classe baseada na perspectiva da carreira e perspectiva de consumo. Educação, emprego/carreira e consumo foi a implicação subjetiva da juventude construída pelo capitalismo europeu de bem-estar social e reproduzida nas últimas décadas pelo discurso social-democrata.

Na verdade, o capitalismo manipulatório que se constituiu nos “trinta anos perversos” se baseou na seguinte implicação paradoxal:

Por um lado, o discurso de compatilização entre capitalismo liberal, democracia representativa e Estado de bem-estar social. Construiu-se, a partir daí, a utopia educacional da juventude baseada na idéia do capital humano onde a alta escolaridade seria o lastro do emprego-padrão por tempo indeterminado, perspectiva de carreira profissional e o ethos do consumismo. É o ideal da boa vida no interior da ordem burguesa, onde se renuncia a utopia da emancipação social pela utopia dos pequenos sonhos individuais de carreira e consumo. A cultura neoliberal disseminou nos “trinta anos perversos” de capitalismo global os valores-fetiche do individualismo possessivo. Esta perspectiva ideológica do capitalismo mais desenvolvido, envolveu em sua larga maioria, a “classe média” assalariada, lastro político dos partidos socialistas e sociais-democratas.

Por outro lado, ao lado do discurso ideológico social-democrata, a partir da década de 1980, ocorreu, sob pressão da acumulação capitalista predominantemente financeirizada, a corrosão persistente do Estado-Providência. Desde a década de 1980, no núcleo orgânico do capitalismo global (EUA e União Europeia), governos conservadores e neoliberais (e inclusive, governos socialistas e sociais-democratas) passaram a adotar políticas de cariz neoliberal que contribuíram para a corrosão do Estado social.

De modo lento e persistente, amplia-se a mancha de precariedade laboral sob a vigencia da flexibilidade laboral. Instaurou-se a era da precarização estrutural do trabalho, com a disseminação de várias modalidades do trabalho precário ao lado do desemprego de massa que atinge principalmente a juventude trabalhadora europeia. Nos “trinta anos perversos” de crises financeiras persistentes do capitalismo global, aprofundou-se, principalmente entre a geração nascida na década de 1980 e que na década de 2000 busca realizar seu sonho de cidadania salarial, a frustração com as promessas sociais-democratas.

Entretanto, a implicação paradoxal do capitalismo social-democrata agudizou-se na mesma medida em que aumentou a capacidade de manipulação ideológica e ilusionismo político da ordem burguesa hipertardia. Na era de precarização estrutural do trabalho, as jovens gerações de proletários de “classe média” que constituem o precariado, vivem sob o fogo cruzado do capitalismo manipulatório.

No plano da consciência de classe contingente, expõe-se a carência de futuridade Torna-se cada vez mais claro na percepção da consciência de classe contingente que o capitalismo global hipotecou o futuro de jovens-adultos que cumpriram tudo aquilo que a ordem burguesa receitou para obterem o sucesso, mas não encontraram um “lugar ao sol”, com a incapacidade do próprio sistema inclui-los como força de trabalho produtiva. Na verdade, a carência de futuridade do precariado é a projeção no plano da consciência de classe contingente, da carência do comunismo posto hoje, mais do que nunca, como necessidade histórica civilizacional.

No livro Para além do capital, István Meszários, um dos críticos radicais da perspectiva ideologia social-democrata, observou o seguinte: “A inalterável temporalidade histórica do capital é a posteriori e retrospectiva. Não pode haver futuro num sentido significativo da expressão, pois o único ´futuro´ admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito'”. Portanto, é sob as condições da crise estrutural do capital que se explicita com vigor um dos traços candentes da ordem burguesa e uma particularidade radical da nossa época histórica que se distingue de outras épocas do capitalismo histórico: a interdição persistente da futuridade.

Quando o sistema do capital não consegue “incluir” em seus parâmetros sócio-reprodutivos, trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados de acordo com as prescrições e proscrições da ordem burguesa, há algo de podre no reino da Dinamarca. O espectro do precariado, como o espectro de Hamlet, é expressão do apodrecimento da ordem burguesa.

Finalmente, podemos nos interrogar: o que acontecerá com a escola pública no Estado de São Paulo após a dissolução das ocupações estudantis? Ela será a mesma escola pública que existia antes do movimento contra a reorganização escolar do Alckminn? Como serão recompostas (ou não) relações sociais autocráticas e repressivas no interior do espaço escolar público? Esta é uma interessante questão a ser investigada sociologicamente. Mais uma vez a sociedade brasileira nos surpreende em 2015 com a irrupção do precariado seminal no seio do baluarte neoliberal e pólo histórico de reação política do País: o Estado de São Paulo.

Fonte:Blog da BoiTempo

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Emissões da agropecuária podem ser 25% superiores ao que indica a metodologia oficial


As emissões de gases de efeito estufa na agropecuária, os gases que contribuem para o aquecimento global, ficaram praticamente estáveis em 2014, com aumento de 1% em 2014, quando comparado ao ano anterior e representam 27% do total das emissões brasileiras.

(A reportaem foi publicada por Blog Imaflora, 19-11-2015).

Os dados, calculados com base nas metodologias do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas e doInventário Brasileiro de Gases de Efeito Estufa, do Ministério de Ciência e Tecnologia, reafirmam a posição do estado do Mato Grosso como o líder nesse ranking, com 12% das emissões totais da agropecuária, seguido por Minas Gerais (11%) e Rio Grande do Sul (11%).

O resultado, no entanto, não contabiliza o balanço de carbono, ou seja, as emissões dos gases que provocam o efeito estufa gerados pela decomposição do material orgânico em pastagens degradadas, nem a remoção desses gases da atmosfera, por meio de boas práticas no campo e na pecuária. Levando-se em conta esse cenário, os gases que provocam o efeito estufa subiriam em 25%.

Essa estimativa foi feita pelo IMAFLORA, levando-se em conta os significativos 60 milhões de hectares de pastagens degradadas, área equivalente ao estado de Minas Gerais e com peso decisivo no sucesso de redução de metas de emissões , seja no Plano ABC ou nas Contribuições Nacionalmente Determindas, o INDC, que será apresentado na próxima Conferência do Clima, em Paris.

“O potencial da agropecuária no combate ao aquecimento global é enorme. As áreas de pastagens degradadas no país são muito grandes e, se forem recuperadas e utilizadas para expansão agropecuária, pela nossa conta, será possível reduzir as emissões em 50% neste setor, até 2030”, explica Marina Piatto, engenheira agrônoma, coordenadora da área de Iniciativa de Clima e Agropecuária, do IMAFLORA.

O estudo apresentado no 3º Seminário Anual de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa confirma oaumento das emissões na direção dos estados do Norte, sobretudo no Pará e em Rondônia. Por atividades, as que mais contribuiram para o aquecimento global em 2014 foram a pecuária de corte (60%),seguida pela pecuária leiteira, com 12% e pelos fertilizantes sintéticos, com 8%. “Com assistência técnica, atacando os gargalos e com um amplo sistema de monitoramento, podemos alcançar bons resultados. Até porque esse é um setor chave para que o governo brasileiro atinja a meta proposta de reduzir em 43% suas emissões até 2030”, lembra Ciniro Costa Filho, engenheiro químico, especializado nas questões climáticas e que participou do trabalho do IMAFLORA.

Sobre o Imaflora

O IMAFLORA é uma Organização Não Governamental, brasileira, criada em 1995, a partir dos debates sobre a importância da conservação da floresta tropical, intensificados a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente.

Trabalha para promover a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais e para gerar benefícios sociais nos setores florestal e agropecuário.

É acreditado ao FSC® Forest Stewardship Council® (em português, Conselho de Manejo Florestal) e é certificador da Rainforest Alliance CertifiedTM/ Rede de Agricultura Sustentável, no Brasil. Tem atuação nacional e participação em fóruns internacionais, com sede em Piracicaba, interior de São Paulo. Saiba mais aqui.