Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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segunda-feira, 6 de maio de 2019

Porque ‘Lula livre’


Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004

Publicado no 247 em 3 de Maio de 2019

A entrevista do presidente Lula à Folha de S. Paulo e ao El País já é o fato político mais importante deste ano, pela sua excepcionalidade e pelo que encerra, a um só tempo, de absurdo e lógica, irracionalidade e razão.
Trata-se de algo inédito: a condenação e encarceramento de um ex-presidente da República mediante processo despudoradamente político e eivado de vícios e ilegalidades insanáveis, comandado por um militante politico travestido de juiz.
Em sua lógica intrínseca, apresenta-se como peça fundamental, friamente racional, do processo político ainda em curso e de desenlache desconhecido; anunciando-se contra o líder popular, visa à demonização das forças progressistas e de esquerda, num primeiro momento, e, ao fim e ao cabo, à destruição mesma da democracia reconquistada com a Constituição de 1988.
Essa prisão, denunciou o ex-presidente em sua entrevista-manifesto, apresenta-se, porém, como uma necessidade; foi o caminho encontrado pelas forças do atraso para, impedindo sua candidatura à presidência da República, assegurar a ascensão do bolsonarismo, o fecho e o cume do processo golpista desencadeado com a deposição de Dilma Rousseff.
A concessão que nos permitiu o reencontro com o líder encarcerado é a mesma que denuncia o arbítrio. Se foi um alento para as massas encontrar um Lula forte, altaneiro e corajoso, foi uma provação revê-lo a partir de um vídeo de entrevista concedida em seu tugúrio de condenado político.
São, porém, as condições ditadas pela atual correlação de forças. É preciso, portanto, alterá-la.
O ex-presidente acertou quando reiterou a esperança de que o STF, senhor de baraço e cutelo do tempo, um dia decidirá “segundo a prova dos autos”, como seria seu dever de ofício. Se assim finalmente julgar, restituir-lhe-á a liberdade suprimida. Mas, todos sabemos, a farsa do formalismo jurídico não encobre a essencialidade política do processo, que só terá saída na ação política, cujo motor é a mobilização popular.
Lula – forjado nos embates sindicais, apelou incansavelmente à organização e rearticulação dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, inclusive de seu próprio partido; apelou ao fortalecimento das lideranças de centro-esquerda, ponto de partida para a mais ampla frente política, partidária e popular, porque também compreendendo o movimento social.
Porque só uma  frente – ampla –  terá condições de enfrentar e derrotar o funesto regime que aí está e deter  sua cruzada obscurantista.
Quando impera entre nós o regressismo, quando se intenta refazer a História, quando se intenta negar a tortura e os assassinatos da ditadura militar brasileira, que também é negada como tal; quando o projeto do governo é destruir a educação e a cultura negando as ciências humanas; quando a proposta é a ampliação da pobreza, Lula nos diz: ‘Vamos lutar!’. E assim transforma em esperança o desânimo e a tristeza, retirando a militância democrática de sua ambiência depressiva.
Seu modelo de altivez em condições tão adversas, seu exemplo de resistência quando tudo parecia perdido, é uma injeção de ânimo que percorre todo o país ao tempo em que denuncia para todo o mundo sua condição de preso político e escancara o protofascismo do governo do capitão e seus generais, acumpliciados com um Judiciário abertamente partidarizado.
A questão fundamental, diz o ex-presidente, é salvar o país. Livrá-lo da crise econômica que o neoliberalismo aprofunda, tirar o povo da pobreza que o neoliberalismo agrava, salvar a soberania nacional abastardada por um servilismo que só encontra precedente no governo do marechal Castelo Branco, primeiro presidente do mandarinato militar. Mas é, concomitantemente e como condição essencial, o combate ao projeto neofascista que ameaça consolidar-se. Em suma: a palavra de ordem é estancar a desconstituição do país
É preciso defender a democracia diariamente, pois é diária a ação dos que, falsamente, muitas vezes em seu nome, ou em nome da liberdade, ou em nome do direito ou em nome do combate à corrupção, tentam garroteá-la. Assim Getúlio e Jango foram depostos por conspiracies reacionárias levadas a termo pela associação de militares com os segmentos mais atrasados da economia nacional, com os olhos e a alma voltados para os interesses do capital internacional, que volta a agir contra as pretensões brasileiras de uma política externa soberana. Foi em nome do combate à corrupção que Jânio Quadros e Fernando Collor – com a inefável contribuição da grande imprensa, sempre – foram transformados em promessas de redenção nacional.
Em nome do combate à corrupção a extrema-direita, auxiliada pela adesão de liberais e autointitulados sociais-democratas, elegeu o capitão e instaurou o regime civil-militar que nos governa de forma desastrosa, antipopular e antinacional. Em nome do combate à corrupção, essa aliança intenta destruir o que entende por petismo, lulismo, esquerdismo e comunismo, impondo a ideologia do atraso como alternativa ao avanço.
A demonização das esquerdas não resulta da análise racional de seus muitos erros no governo, mas da avaliação de seus muitos méritos, das muitas conquistas populares que ensejou, dos direitos que protegeu, da ascensão social que propiciou a milhões de brasileiros, de negros e pobres aos quais abriu os caminhou da cidadania.
Para desconstruir a democracia, aqui e em todo o mundo, a direita investe primeiro na desmoralização da política e, na sequência, na desmoralização dos partidos e dos políticos, reduzidos todos a meros instrumentos de corrupção. Este é o processo que vivemos presentemente.
Em tal cenário, Lula nos chega retomando a política como o eixo da democracia representativa, que carece de partidos fortes, autênticos e firmemente enraizados junto às grandes massas. Não basta o fortalecimento do PT, pois sua sobrevivência também depende do fortalecimento dos demais partidos de esquerda, sem o que tornar-se-á presa fácil do totalitarismo.
Mesmo a só sobrevivência da esquerda não será suficiente para a recuperação do país, tarefa que pede uma frente ampla, amplíssima, como aquela que viabilizou a histórica campanha das Diretas Já, sem a qual não teria havido a implosão do colégio eleitoral montado pela ditadura para assegurar sua prorrogação com a eleição do inefável Pauo Salim Maluf, nem a Constituição de 1988 e com ela as eleições diretas de 1989, encerrando 25 anos de recesso democrático.
Lula, que ressurge revigorado física e intelectualmente, vê a necessidade de unir o povo e proclama como seu instrumento inafastável a unidade das forças progressistas.
Os números de 2018 mostram, à saciedade, que, não obstante a onda de reacionarismo e primitivismo que se mostrou maior e mais profunda do que a estimada, a eleição do capitão poderia ter sido evitada se as esquerdas e as forças progressistas se tivessem unificado e o centro não tivesse optado pela extrema-direita, suicidando-se.
Quem responderá perante a História pelo ônus do bolsonarismo?
O chamamento à unidade em face do grande projeto de salvação nacional – a questão está colocada realmente nestes termos de salvação nacional –, a necessidade de as esquerdas saberem eleger o adversário comum, abandonando a disputa autofágica, não amortece a necessidade de denunciar a sociedade de classes e o imperialismo do qual o governo brasileiro de hoje se transforma em servidor.
Este discurso está claro na entrevista de Lula.
“Lula livre’, portanto, não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida fundamental para um grande esforço de recuperação nacional, que depende, hoje mais do que nunca, da mobilização das grandes massas, que o ex-presidente pretende liderar.

Lula dá uma lição de resistência





MINO CARTA


 6 DE MAIO DE 2019 (publicado em Carta Capital)

E também de altivez e sabedoria: é a entrevista do ex-presidente

A entrevista de Lula à Folha de S.Paulo e ao El País ainda vibra nesta redação e o que nos toca em primeiro lugar é a lição de altivez e desassombro que a marca para sempre. As palavras do ex-presidente sobre as razões que o levam a manter a resistência a partir da prisão curitibana nos comovem e nos empolgam.


Fundamental na análise deste momento crucial da história nacional o depoimento de Lula, dado antes do início da entrevista e gravado pelo valente Ricardo Stuckert, extraordinário e fidelíssimo biógrafo de quem acompanha a largo tempo. A Folha não o publicou, ao contrário do El País, representado por Florestan Fernandes Júnior, e pelo site online da Forum. Alguns trechos, os mais significativos, estão na página ao lado.

Lúcida e implacável a análise da sequência de ações que do impeachment de Dilma Rousseff levam à condenação sem provas, aos desmandos de Temer e à eleição de Jair Bolsonaro. Fio condutor: a demência como forma de governo, o entreguismo do súdito e a demolição do Estado. O entrevistado reconhece a unicidade da conspiração à brasileira, do fatídico jeitinho de inventar motivos e enganar a plebe rude e ignara. Sublinha Lula haver países ameaçados, ou a pique, de perder as benesses criadas pela democracia, enquanto o Brasil nem chegou a conquistá-las. Ao dar passos essenciais neste sentido, dados pelo governo petista,  foram engolidos pelo golpe e suas consequências.

Se eu estivesse entre os entrevistadores, teria perguntado a respeito do STF conivente e velhaco
Tenho pelo meu eterno presidente, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema à República, uma amizade irrecorrível vincada pela franqueza a caracterizar uma relação de autêntica substância. Ele nunca deixou de se abrir comigo e eu nunca deixei de expor meu pensamento. Lula me cita a propósito do caso Battisti: é fato que insisti junto ao então presidente, a lamentar a espantosa ignorância de quantos viam um herói em um mero terrorista, ex-ladrãozinho do arrabalde romano. Preferiu dar ouvidos a quem nada sabe a respeito da história recente da Itália. Já a história deste Brasil formalmente desigual ele a conhece a fundo e desnuda em toda a sua malignidade.
A situação em que precipitamos ele a percebe desde as raízes, aponta inclusive a diferença abissal a separar os atuais parlamentares que desonram o País e o Congresso que editou em 1988 a nova Constituição, presidida por Ulysses Guimarães, notabilíssima personagem merecedora da melhor lembrança. E a mim vem à memória o dia do começo de janeiro de 1984, quando o doutor e o governador Montoro me pediram para procurar o jovem líder do PT e reiterar o convite a participar da manifestação das Diretas Já convocada em São Paulo na Praça da Sé no aniversário da cidade, a 25 daquele mês. Logo almocei com Lula e ouvi dele o que esperava: “Estarei lá, obviamente”. Acompanhava-me um amigo caríssimo, jornalista italiano de passagem por São Paulo, e ele carregou a certeza de que eu era um potentado da República, a despeito do meu esforço de demovê-lo desta convicção. Lula foi à manifestação e figurou na linha de frente do palanque diante de uma plateia de 500 mil pessoas. Ao cabo da memorável festa cívica, um grupo dirigiu-se à Avenida Paulista e incendiou uma perua da Globo.

Outro era o Brasil. Compreensível agora o apoio irrestrito que Lula dá ao PT, a meu ver partido tíbio diante do descalabro terrificante dos dias de hoje. Mas Lula é um ser de emoções à flor da pele, generoso por natureza, amigo irredutível dos amigos ‒ e não lhe faltaram os traidores. Por causa desse aspecto da sua personalidade, se quisermos encantador, e apesar do QI muito elevado, do senso de humor agudo, da vocação da tirada irônica, às vezes ele tropeça em enganos diria mesmo ingenuamente. Nem sempre a paz na terra premia os homens de boa vontade, conforme cantaram os anjos na noite de Nazaré. De todo modo, por raciocínios distintos, apreciei a sabedoria que o inspirou ao falar de Guilherme Boulos e Ciro Gomes.
Comovem as razões que o levaram a resistir a partir da prisão
Se eu estivesse entre os entrevistadores, não teria hesitado em fazer perguntas a respeito de uma alta corte naturalmente incumbida de velar pelo cumprimento da Constituição. Como sabemos, deu-se o exato contrário. O Supremo poderia ter agido desde 2014 para impedir a criminosa atuação da Lava Jato ao longo de um processo que transforma o juiz imparcial em inquisidor disposto a condenar sem provas ao sabor das fantasias dos pregadores de uma cruzada. E ignorou os poderes que lhe permitiam intervir no processo de impeachment de Dilma Rousseff para coibir mais um desacato à Lei Maior e a clamorosa injustiça cometida contra Lula. Um Supremo conivente e velhaco aderiu, tal o verbo correto, ao golpe de forma decisiva em todas as suas passagens. E ainda ter perguntado como enxerga agora os Toffolis e Fachins da vida, as Rosa Webers e Cármen Lúcias, e outros que o quiseram onde hoje se encontra.

De minha parte, recordo que no dia 15 de abril de 2015, Dilma, no início do segundo mandato, de Joaquim Levy a tiracolo, almocei com Lula em minha casa, com a companhia do professor Belluzzo e de minha filha Manuela. Lá pelas tantas, ao enfrentar um ossobuco com raspa de limão sobre o tutano, sustentei a necessidade imperiosa de uma pronta reação. O plano do golpe já estava em andamento desde a eleição e o impeachment da presidenta e a condenação sem provas pelo inquisidor curitibano já figuravam no script. Não se tratava de profecias, mas de constatações. Sugeri: aluga um ônibus e organiza uma caravana, começa por sua terra, Garanhuns, atravessa o Nordeste, vai ao Norte, desce para Salvador, depois Belo Horizonte, enche as praças, abre os olhos do povo, faz um barulho do capeta. Como sempre, disse o que penso. A caravana saiu quando era tarde, Lula já condenado. Ninguém me tira da cabeça que, se ele aceitasse minha sugestão, não haveria golpe e tudo o mais.

O prólogo

Confira trechos do documento lido antes da entrevista:
▪ Aquele golpe começou a ser preparado em 2013 quando a Rede Globo de Televisão usou sua concessão pública para convocar manifestações de rua contra o Governo e até contra o sistema democrático. Tudo valia para tirar o PT do Governo, inclusive a mentira e a manipulação pela mídia.
▪ O novo Brasil que estávamos criando junto com o povo e as forças produtivas nacionais foi retratado pela Rede Globo e seus seguidores na imprensa como um país sem rumo e corroído pela corrupção.
▪ Nem em 1954 com Getúlio nem em 1964 contra Jango se viu  tanta demonização contra um partido, um governo ou um presidente. Centenas de horas do Jornal Nacional e milhares de manchetes de revistas contra nós. Nenhuma chance de defender nossas opiniões. Mesmo assim, em 2014, derrotamos os poderosos nas urnas pela quarta vez consecutiva. Para quem não conhece o Brasil, nossas elites dizimaram milhões de indígenas desde 1500, destruíram florestas, enriqueceram por 300 anos a custas de escravos tratados como se fossem bestas. Colonos e operários tratados como servos. Divergentes como subversivos, mulheres como objetos. Diferentes, como párias. Negaram terra, dignidade, educação, saúde e cidadania ao nosso povo.
▪ Criamos o PT em 1980 para defender as liberdades  democráticas, os direitos do povo e dos trabalhadores. O acúmulo das lutas do PT e da esquerda brasileira, do sindicalismo dos movimentos sociais e populares nos levou a consolidar um pacto democrático na constituinte de 1988. Esse pacto foi rompido pelo golpe do impeachment em 2016 e por seu desdobramento que foi a minha condenação sem culpa, e minha prisão em tempo recorde para que eu não disputasse as eleições.