Cientista político
e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004
Publicado no 247 em 3
de Maio de 2019
A
entrevista do presidente Lula à Folha de S. Paulo e
ao El País já é o fato político mais importante deste
ano, pela sua excepcionalidade e pelo que encerra, a um só tempo, de absurdo e
lógica, irracionalidade e razão.
Trata-se de algo inédito: a
condenação e encarceramento de um ex-presidente da República mediante processo
despudoradamente político e eivado de vícios e ilegalidades insanáveis,
comandado por um militante politico travestido de juiz.
Em sua lógica intrínseca,
apresenta-se como peça fundamental, friamente racional, do processo político
ainda em curso e de desenlache desconhecido; anunciando-se contra o líder
popular, visa à demonização das forças progressistas e de esquerda, num
primeiro momento, e, ao fim e ao cabo, à destruição mesma da democracia
reconquistada com a Constituição de 1988.
Essa prisão, denunciou o
ex-presidente em sua entrevista-manifesto, apresenta-se, porém, como uma
necessidade; foi o caminho encontrado pelas forças do atraso para, impedindo
sua candidatura à presidência da República, assegurar a ascensão do
bolsonarismo, o fecho e o cume do processo golpista desencadeado com a
deposição de Dilma Rousseff.
A concessão que nos permitiu o
reencontro com o líder encarcerado é a mesma que denuncia o arbítrio. Se foi um
alento para as massas encontrar um Lula forte, altaneiro e corajoso, foi uma
provação revê-lo a partir de um vídeo de entrevista concedida em seu tugúrio de
condenado político.
São, porém, as condições ditadas pela
atual correlação de forças. É preciso, portanto, alterá-la.
O ex-presidente acertou quando
reiterou a esperança de que o STF, senhor de baraço e cutelo do tempo, um dia
decidirá “segundo a prova dos autos”, como seria seu dever de ofício. Se assim
finalmente julgar, restituir-lhe-á a liberdade suprimida. Mas, todos sabemos, a
farsa do formalismo jurídico não encobre a essencialidade política do processo,
que só terá saída na ação política, cujo motor é a mobilização popular.
Lula – forjado nos embates sindicais,
apelou incansavelmente à organização e rearticulação dos movimentos sociais e
dos partidos de esquerda, inclusive de seu próprio partido; apelou ao
fortalecimento das lideranças de centro-esquerda, ponto de partida para a mais
ampla frente política, partidária e popular, porque também compreendendo o
movimento social.
Porque só uma frente – ampla –
terá condições de enfrentar e derrotar o funesto regime que aí está e
deter sua cruzada obscurantista.
Quando impera entre nós o
regressismo, quando se intenta refazer a História, quando se intenta negar a
tortura e os assassinatos da ditadura militar brasileira, que também é negada
como tal; quando o projeto do governo é destruir a educação e a cultura negando
as ciências humanas; quando a proposta é a ampliação da pobreza, Lula nos diz:
‘Vamos lutar!’. E assim transforma em esperança o desânimo e a tristeza,
retirando a militância democrática de sua ambiência depressiva.
Seu modelo de altivez em condições
tão adversas, seu exemplo de resistência quando tudo parecia perdido, é uma
injeção de ânimo que percorre todo o país ao tempo em que denuncia para todo o
mundo sua condição de preso político e escancara o protofascismo do governo do
capitão e seus generais, acumpliciados com um Judiciário abertamente
partidarizado.
A questão fundamental, diz o
ex-presidente, é salvar o país. Livrá-lo da crise econômica que o
neoliberalismo aprofunda, tirar o povo da pobreza que o neoliberalismo agrava,
salvar a soberania nacional abastardada por um servilismo que só encontra
precedente no governo do marechal Castelo Branco, primeiro presidente do
mandarinato militar. Mas é, concomitantemente e como condição essencial, o
combate ao projeto neofascista que ameaça consolidar-se. Em suma: a palavra de
ordem é estancar a desconstituição do país
É preciso defender a democracia
diariamente, pois é diária a ação dos que, falsamente, muitas vezes em seu
nome, ou em nome da liberdade, ou em nome do direito ou em nome do combate à
corrupção, tentam garroteá-la. Assim Getúlio e Jango foram depostos por
conspiracies reacionárias levadas a termo pela associação de militares com os
segmentos mais atrasados da economia nacional, com os olhos e a alma voltados
para os interesses do capital internacional, que volta a agir contra as
pretensões brasileiras de uma política externa soberana. Foi em nome do combate
à corrupção que Jânio Quadros e Fernando Collor – com a inefável contribuição
da grande imprensa, sempre – foram transformados em promessas de redenção
nacional.
Em nome do combate à corrupção a extrema-direita,
auxiliada pela adesão de liberais e autointitulados sociais-democratas, elegeu
o capitão e instaurou o regime civil-militar que nos governa de forma
desastrosa, antipopular e antinacional. Em nome do combate à corrupção, essa
aliança intenta destruir o que entende por petismo, lulismo, esquerdismo e
comunismo, impondo a ideologia do atraso como alternativa ao avanço.
A demonização das esquerdas não
resulta da análise racional de seus muitos erros no governo, mas da avaliação
de seus muitos méritos, das muitas conquistas populares que ensejou, dos
direitos que protegeu, da ascensão social que propiciou a milhões de brasileiros,
de negros e pobres aos quais abriu os caminhou da cidadania.
Para desconstruir a democracia, aqui
e em todo o mundo, a direita investe primeiro na desmoralização da política e,
na sequência, na desmoralização dos partidos e dos políticos, reduzidos todos a
meros instrumentos de corrupção. Este é o processo que vivemos presentemente.
Em tal cenário, Lula nos chega
retomando a política como o eixo da democracia representativa, que carece de
partidos fortes, autênticos e firmemente enraizados junto às grandes massas.
Não basta o fortalecimento do PT, pois sua sobrevivência também depende do
fortalecimento dos demais partidos de esquerda, sem o que tornar-se-á presa
fácil do totalitarismo.
Mesmo
a só sobrevivência da esquerda não será suficiente para a recuperação do país,
tarefa que pede uma frente ampla, amplíssima, como aquela que viabilizou a
histórica campanha das Diretas Já, sem a
qual não teria havido a implosão do colégio eleitoral montado pela ditadura
para assegurar sua prorrogação com a eleição do inefável Pauo Salim Maluf, nem
a Constituição de 1988 e com ela as eleições diretas de 1989, encerrando 25
anos de recesso democrático.
Lula, que ressurge revigorado física
e intelectualmente, vê a necessidade de unir o povo e proclama como seu instrumento
inafastável a unidade das forças progressistas.
Os números de 2018 mostram, à
saciedade, que, não obstante a onda de reacionarismo e primitivismo que se
mostrou maior e mais profunda do que a estimada, a eleição do capitão poderia
ter sido evitada se as esquerdas e as forças progressistas se tivessem
unificado e o centro não tivesse optado pela extrema-direita, suicidando-se.
Quem responderá perante a História
pelo ônus do bolsonarismo?
O chamamento à unidade em face do
grande projeto de salvação nacional – a questão está colocada realmente nestes
termos de salvação nacional –, a necessidade de as esquerdas saberem eleger o
adversário comum, abandonando a disputa autofágica, não amortece a necessidade
de denunciar a sociedade de classes e o imperialismo do qual o governo
brasileiro de hoje se transforma em servidor.
Este discurso está claro na
entrevista de Lula.
“Lula livre’, portanto, não é o ponto
de chegada, mas o ponto de partida fundamental para um grande esforço de
recuperação nacional, que depende, hoje mais do que nunca, da mobilização das
grandes massas, que o ex-presidente pretende liderar.