Luiz Carlos Bresser-Pereira(1)
Há muitos anos, ao voltar a São Paulo no final de 1962, depois de estudar
dezoito meses nos Estados Unidos, fiquei impressionadíssimo com a selvageria do
nosso trânsito, quando comparado com o do Meio-Oeste americano. Por que tamanha
diferença? Porque a sinalização de trânsito era melhor, porque as multas eram
maiores, porque a fiscalização estava mais presente – essas eram razões óbvias.
Mas, em artigo na imprensa, naquela época, sugeri que havia uma razão mais
profunda. Enquanto nos Estados Unidos todos tinham carro, de forma que havia
apenas uma “classe” de cidadãos, os motoristas, que em alguns momentos se
tornavam pedestres,e os respeitavam, no Brasil havia duas classes bem distintas
– os motoristas e os pedestres. Em consequência, enquanto nos Estados Unidos
havia uma solidariedade entre os motoristas, aqui havia uma “luta de classes”
entre os motoristas, todo-poderosos, que dirigiam como se quisessem atropelar
quem estivesse pela frente, e os pedestres “que atrapalhavam o
trânsito”.
Passaram-se os anos, e o trânsito tornou-se mais civilizado em São Paulo.
A sinalização tornou-se excelente, o Código Nacional de Trânsito definiu penas
mais elevadas, as fiscalização melhorou. Mas nas marginais os motoristas
continuavam a atropelar os pedestres. Em julho de 2015, depois de ouvir
longamente os técnicos, que lhe diziam que a redução da velocidade reduziria o
número de acidentes e não prejudicaria o fluxo, porque a diminuição da
velocidade seria compensada pelo diminuição das brecadas, o prefeito Fernando
Haddad introduziu a mudança sugerida.
Inicialmente levantou-se um vozerio dos motoristas. Indignados. OK, eles
não sabiam dos benefícios da mudança. Mas aos poucos foi ficando claro que o
conselho dos técnicos e a decisão do prefeito haviam sido corretíssimos. O
número de atropelamentos caiu verticalmente, e o número de acidentes envolvendo
outro veículo também diminuiu. Maravilha!
Maravilha por que? O prefeito eleito, João Dória, já determinou o gradual
aumento da velocidade nas marginais para os níveis anteriores. Por que? Porque
esta é a nova regra do jogo no Brasil: a luta de classes, de cima para baixo,
dos ricos contra os pobres, dos motoristas contra os pedestres. Se os acidentes
com outros veículos houvessem caído tanto quanto caiu o número de
atropelamentos, ainda seria o caso de pensar duas vezes...
Mas é realmente essa a nova regra do jogo? Basta ver os raios e trovões
que o Palácio do Planalto lança todos os dias. Foi a emenda do teto de gastos,
necessária, mas não da forma irracional em que foi aprovada; é a emenda da
previdência, novamente necessária, mas não a emenda draconiana proposta; são as
medidas provisórias hoje anunciadas que simplesmente derrogam a Consolidação das
Leis do Trabalho ao permitir que sindicatos sem representatividade façam acordos
coletivos de trabalho contra a CLT.
Sim, esta é a nova regra do jogo. É a regra do jogo de uma elite liberal
e cosmopolita e de uma classe média tradicional cheia de ódio, que lograram
substituir no poder uma presidente honesta e comprometida com interesse público,
mas pouco competente, por um bando de políticos oportunistas ainda mais
incompetentes, sem compromisso com o interesse público. Estes, para se
“legitimarem” perante as elites neoliberais e seu partido, o PSDB, traíram seus
compromissos com os eleitores que elegeram o vice-presidente da República seu
líder, Michel Temer, e adotaram a nova regra do jogo: a luta de classes de cima
para baixo, com o argumento que todo o problema brasileiro é fiscal, nada tem a
ver com os juros exorbitantes pagos pelo Estado, nem com os elevados deficits em
conta corrente que apreciam o câmbio e inviabilizam a indústria; a clássica culpabilização das
vítimas através da qual os ricos e os poderosos tranquilizam sua consciência.
Enquanto isso a recessão não dá trégua, as delações e agora a abertura do
acordo da Odebrecht com os Estados Unidos revelam que todo o grupo governante
está enredado até a cabeça não apenas em doações caixa dois, mas na corrupção em
sentido estrito – em propinas. Em uma República as leis são sagradas – são as
normas que a sociedade adota para resolver seus conflitos e permitir o avanço
econômico e social. Ora, vemos horrorizados que as propinas não foram recebidas
apenas em troca de obras; foram também recebidas em troca de emendas às leis – o
que representa uma corrupção ainda maior, porque envolve mais do que dinheiro:
envolve as instituições do país.
Mas a operação Lava Jato não está aí para acabar com a corrupção? Sim,
mas, por enquanto, o Judiciário está voltado contra uma velha, muito velha,
regra do jogo: a corrupção de alguns políticos. Quanto à nova regra do jogo – a
da luta dos ricos contra os pobres, a da culpabilização das vítimas – o
Judiciário não tem poder. Quem tem poder para exercê-la é um Executivo e um
Legislativo desmoralizados. Poder no curto prazo, poder decorrente de um
impeachment que desestabilizou as instituições maiores do país. Poder que lhe
será cobrado nas eleições.
A
serem realizadas quando? Não daqui a dois anos. O país não suportará tanta
violência e tanta ilegitimidade. Precisamos de eleições diretas já. O grito dos
brasileiros não deve ser “Fora Temer”, porque poderemos ter alguém tão ruim ou
pior do que ele o substituindo. Precisamos de “Diretas Já”.
(1)Professor
Emérito da Fundação Getúlio Vargas
www.bresserpereira.org.br