Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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sábado, 31 de dezembro de 2016

Atropelar? Por que não? É a nova regra do jogo.

Luiz Carlos Bresser-Pereira(1)
Há muitos anos, ao voltar a São Paulo no final de 1962, depois de estudar dezoito meses nos Estados Unidos, fiquei impressionadíssimo com a selvageria do nosso trânsito, quando comparado com o do Meio-Oeste americano. Por que tamanha diferença? Porque a sinalização de trânsito era melhor, porque as multas eram maiores, porque a fiscalização estava mais presente – essas eram razões óbvias. Mas, em artigo na imprensa, naquela época, sugeri que havia uma razão mais profunda. Enquanto nos Estados Unidos todos tinham carro, de forma que havia apenas uma “classe” de cidadãos, os motoristas, que em alguns momentos se tornavam pedestres,e os respeitavam, no Brasil havia duas classes bem distintas – os motoristas e os pedestres. Em consequência, enquanto nos Estados Unidos havia uma solidariedade entre os motoristas, aqui havia uma “luta de classes” entre os motoristas, todo-poderosos, que dirigiam como se quisessem atropelar quem estivesse pela frente, e os pedestres “que atrapalhavam o trânsito”.
Passaram-se os anos, e o trânsito tornou-se mais civilizado em São Paulo. A sinalização tornou-se excelente, o Código Nacional de Trânsito definiu penas mais elevadas, as fiscalização melhorou. Mas nas marginais os motoristas continuavam a atropelar os pedestres. Em julho de 2015, depois de ouvir longamente os técnicos, que lhe diziam que a redução da velocidade reduziria o número de acidentes e não prejudicaria o fluxo, porque a diminuição da velocidade seria compensada pelo diminuição das brecadas, o prefeito Fernando Haddad introduziu a mudança sugerida.
Inicialmente levantou-se um vozerio dos motoristas. Indignados. OK, eles não sabiam dos benefícios da mudança. Mas aos poucos foi ficando claro que o conselho dos técnicos e a decisão do prefeito haviam sido corretíssimos. O número de atropelamentos caiu verticalmente, e o número de acidentes envolvendo outro veículo também diminuiu. Maravilha!
Maravilha por que? O prefeito eleito, João Dória, já determinou o gradual aumento da velocidade nas marginais para os níveis anteriores. Por que? Porque esta é a nova regra do jogo no Brasil: a luta de classes, de cima para baixo, dos ricos contra os pobres, dos motoristas contra os pedestres. Se os acidentes com outros veículos houvessem caído tanto quanto caiu o número de atropelamentos, ainda seria o caso de pensar duas vezes...
Mas é realmente essa a nova regra do jogo? Basta ver os raios e trovões que o Palácio do Planalto lança todos os dias. Foi a emenda do teto de gastos, necessária, mas não da forma irracional em que foi aprovada; é a emenda da previdência, novamente necessária, mas não a emenda draconiana proposta; são as medidas provisórias hoje anunciadas que simplesmente derrogam a Consolidação das Leis do Trabalho ao permitir que sindicatos sem representatividade façam acordos coletivos de trabalho contra a CLT.
Sim, esta é a nova regra do jogo. É a regra do jogo de uma elite liberal e cosmopolita e de uma classe média tradicional cheia de ódio, que lograram substituir no poder uma presidente honesta e comprometida com interesse público, mas pouco competente, por um bando de políticos oportunistas ainda mais incompetentes, sem compromisso com o interesse público. Estes, para se “legitimarem” perante as elites neoliberais e seu partido, o PSDB, traíram seus compromissos com os eleitores que elegeram o vice-presidente da República seu líder, Michel Temer, e adotaram a nova regra do jogo: a luta de classes de cima para baixo, com o argumento que todo o problema brasileiro é fiscal, nada tem a ver com os juros exorbitantes pagos pelo Estado, nem com os elevados deficits em conta corrente que apreciam o câmbio e inviabilizam a indústria; a clássica culpabilização das vítimas através da qual os ricos e os poderosos tranquilizam sua consciência.
Enquanto isso a recessão não dá trégua, as delações e agora a abertura do acordo da Odebrecht com os Estados Unidos revelam que todo o grupo governante está enredado até a cabeça não apenas em doações caixa dois, mas na corrupção em sentido estrito – em propinas. Em uma República as leis são sagradas – são as normas que a sociedade adota para resolver seus conflitos e permitir o avanço econômico e social. Ora, vemos horrorizados que as propinas não foram recebidas apenas em troca de obras; foram também recebidas em troca de emendas às leis – o que representa uma corrupção ainda maior, porque envolve mais do que dinheiro: envolve as instituições do país.
Mas a operação Lava Jato não está aí para acabar com a corrupção? Sim, mas, por enquanto, o Judiciário está voltado contra uma velha, muito velha, regra do jogo: a corrupção de alguns políticos. Quanto à nova regra do jogo – a da luta dos ricos contra os pobres, a da culpabilização das vítimas – o Judiciário não tem poder. Quem tem poder para exercê-la é um Executivo e um Legislativo desmoralizados. Poder no curto prazo, poder decorrente de um impeachment que desestabilizou as instituições maiores do país. Poder que lhe será cobrado nas eleições.
A serem realizadas quando? Não daqui a dois anos. O país não suportará tanta violência e tanta ilegitimidade. Precisamos de eleições diretas já. O grito dos brasileiros não deve ser “Fora Temer”, porque poderemos ter alguém tão ruim ou pior do que ele o substituindo. Precisamos de “Diretas Já”.

(1)Professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas
www.bresserpereira.org.br

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Carta para Bia


Minha querida Pequerruça,

Você se foi. Agora, está morando no meu coração.
Bei está viúvo. Sofremos juntos. Tem sido deserto. É o luto. Ainda não falei do luto primeiro, a perda da Chácara Xury, o meu lugar para onde levei você e Bei. Preciso falar do segundo luto, a sua perda, minha Pequerruça. Sinto que uma perda se confunde com a outra. Não poderia ser diferente. Você, Bei e eu somos a CXury. Agora, não temos a CXury, não temos você. Bei e eu estamos em estado de sofrimento. Ele, que nunca havia ficado sozinho nesta sua vida de 13 anos, fica à procura e só a mim ele encontra. Cuido dele, sou apenas sua tutora, sua amiga. Ele cuida de mim, é meu guardião zeloso, amoroso. Não temos a terra, as árvores, os macacos, “as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. Não temos a CXury. Não temos nossa Pequerruça..

Você vem, passa no meio das minhas pernas, volta, passa de novo e vai na frente, olha de lado para ter certeza de que estou no meio e Bei atrás. Seu andar é rebolante, sua cabeça balança no ritmo da mudança das pernas e minhas mãos alcança sua anca que se imobiliza para ganhar o carinho. Sinto o focinho do ciumento que busca a partilha. Estamos no corredor atrás da casa grande, mas já os muros desaparecem dando lugar às árvores da matinha que vai até o minhocário e você para, cheira uma planta, anda, para, cheira mais. Bei passa por mim e vai cheirar junto, se embolam, um de um lado, árvore no meio, outro anda mais para frente, volta, trocam de lugar e novamente vai você na frente, rebolando, enquanto Bei me cede lugar e fica na retaguarda. Também sinto os cheiros da mata, os cheiros da CXury.

Pequerruça, tirei vocês, nós do nosso lugar. Foi, tem sido doloroso. O inexorável! Lá ficou nossa saúde. Você fez o câncer que a levou. Bei emagreceu 13 kg e eu fiquei velha, com dores no corpo e na alma. Dona Pandá, aquela personagem gozadora que povoava meu blog está na UTI, sem muita esperança. O blog foi abandonado. Não escrevo mais.

Querida, nem posso dizer que quero voltar. Você se foi. Bei não aguentaria uma viagem de 700 km. Preciso cuidar dele. Não quero que ele viva muito, mas cuido para que viva com algum prazer. Para lhe dar uma compensação, quando de sua ida, contratei o Nego – o rapaz que trabalha meio período aqui no sítio Catita – para caminhar meia hora com ele no condomínio. É o grande momento do dia para Bei. Fizemos juntos esse passeio algumas vezes. Paramos devido a outros cachorros que ficam soltos e vocês dois poderiam partir para um confronto que me deixaria em má situação. Você era tão indisciplinada, tão parecida comigo. Nada de cerca para você. Quantas vezes você liderou uma fuga, furando cercas, saindo da CXury. Um final de tarde, vocês dois entraram no lodo preto, catinguento da chácara vizinha e às 8;30 da noite fria enfrentamos o banho. Dois cachorros fedorentos, inquietos, com frio. Tive que secá-los com o secador de cabelo. Vocês odiando o barulho, travando uma luta que acabou em brincadeira. Bei tão nervoso, bravo; você tão doce e teimosa.

Minha querida, depois continuo. Acho que virei muitas vezes falar com você, mas, agora, minhas lágrimas me cegam.


Cá estou de novo, minha Pequerrucha. Bei está com uma secreção nos olhos, fiz chá de cavalinha e estou lavando seu olho. Ele não gosta, abaixa a cabeça quando o chamo “para limpar o olhinho”. Vem, com muita má vontade, mas vem e deixa eu cuidar. Ele não quer saber de ficar longe de mim. Não quer ficar só. Você o acostumou assim.

Começaram os preparativos de Natal. Não gosto desta época. André e eu – depois de seu casamento, Dai se juntou a nós – sempre gostamos de comemorar a passagem do ano. Você e Bei odeiam os fogos e esta é a parte ruim. No último ano que passamos na CXury, André ficou com vocês no canil e fomos brindar o ano, tomando um gostoso espumante, lá. Dai corria do canil para a casa, onde os pequenos – Tute, Mel e Pretinho - ficaram também com medo do barulho. Eram poucos os fogos se comparados com os que soltam por aqui. Lá, a chácara fica no meio do mato, vizinhança rarefeita. Aqui, um codomínio enorme, muitos vêm da residência urbana com alguns gestos incivilizados como fazer barulho com fogos e música alta. Por causa disto, não posso ir comemorar a entrada de um novo ano com Dai e André, deixando Bei sozinho. Sinto mais saudades deles e da minha Xury nesta época. Todos se reúnem aqui na Casa Grande da Mana, felizes. Esforço-me para não me deixar abater, pois mancharia de tristeza a festa de Natal da família. Quando Mamãe ainda estava conosco – ela que era tão católica - a data era comemorada com muita coerência e mesmo sem sua crença eu a respeitava. Muitas vezes, André estava conosco. As mudanças não têm sido bem aceitas por mim. Será que é a impertinência da velhice? Nesses dois anos em que estou aqui, a pior época é o Natal. A presença das manas, cunhado e dos sobrinhos faz um clima de solidário regozijo que me perturba por explicitar com maior intensidade a ausência sentida.
Nossa vinda para cá teve seu lado positivo e me apego a isto.

Tive, agora, uma notícia das melhores, André consertou o telefone fixo de sua casa. Havia um bocado de tempo que eu pedia para que ele providenciasse esse conserto. Meu Filhote tem seu tempo, tão diferente do meu. Sou lebre, ele tartaruga. Eis aí uma questão fundamental no relacionamento dos humanos, mais ainda dos casais. É quase impossível a adequação perfeita dos tempos, o que torna difícil a convivência diária. Não sei quem é o mais incomodado a lebre que fica na espera ou a tartaruga que é pressionada. Para variar a harmonia está na tolerância.
Ontem, o susto foi grande. Bei pegou o pescoço do Pretinho e não soltava nem com a mangueira de água fria que joguei nele. O pequeno é mesmo atrevido e o grandão fica injuriado quando está preso aqui na nossa casa e o outro solto vem latir. Os portões ficam fechados, mas um bate do lado de fora, enquanto o outro empurra de dentro o portão abriu e Bei pulou já com a bocaça no pescoço do atrevidinho. Com as imagens bem vívidas das vezes que vocês mataram meus gatos, entrei em desespero. Perdi o controle, gritei, gritei, enviei a mão na boca do Bei e nada consegui. Vi o sangue escorrer e manchar minha roupa, tive um momento de dúvida – lembrei-me do quanto Hilda sofreu por eu tentar soltá-la de vocês dois -, mas continuei lutando para salvar a vida do Pretinho. Depois de muito tempo, multiplicado por meu pânico, os dois se separaram e Pretinho, completamento ileso já que o sangue era da língua do Bei e da minha mão, ainda parou e latiu numa provocação absurda. Minha mão doía muito pelo esforço e soltou a coleira do Bei que consegui ainda segurar com as duas pernas e, sem o provocador que, enfim, se mandou, atendeu meu comando e entrou para a casa. A imagem do meu descontrole provocou uma ressaca de tirar o sono.

Bia, enquanto escrevo, Bei está deitado aqui perto, dormindo. Quando chega a hora do seu passeio um despertador invisível toca e ele vai para perto do protão esperar o Nego.

Nosso Brasil está mal, deixando os trabalhadores brasileiros em perigo gravíssimo. Ainda tenho uma réstia de esperança (como disse Cortella, do verbo esperançar que inclui luta) de conseguirmos reverter o grande desastre do golpe dado neste ano. O pior é que, além de muita luta, sofrimento para nosso povo, nossas riquezas estão sendo solapadas tirando nossa dignidade e altivez.

Vou parar novamente, mas tenho a impressão de que falar com você pode me trazer de volta a escrita.




quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Os absurdos da reforma da Previdência

Análise de Ana Luiza Matos de Oliveira

A reforma da Previdência (PEC 287/2016) proposta pelo governo golpista conseguiu desagradar até mesmo as centrais sindicais próximas a Temer, como a Força Sindical e a União Geral dos Trabalhadores (UGT). Em geral, as centrais rejeitam, por exemplo, a proposta de idade mínima de 65 anos, a ausência de um modelo menos rígido para as mulheres, que enfrentam desigualdade no mercado de trabalho, e a imposição das mudanças aos trabalhadores na ativa (homens com menos de 50 anos e mulheres com menos de 45).

Propõe-se que o trabalhador, seja homem ou mulher, contribua durante ao menos 25 anos com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e estabelece idade mínima de 65 anos de idade para ter acesso ao benefício (para homens e mulheres). Pela proposta da PEC, homens e mulheres terão de trabalhar 49 anos para conseguir a aposentadoria integral: mesmo contribuindo por 25 anos, o trabalhador não terá direito à aposentadoria integral.

Os homens de 50 anos ou mais e as mulheres com 45 ou mais de idade entrarão nas regras de transição. Nada muda para quem já se aposentou ou já alcançou as regras atuais para ter acesso ao benefício. Além disso, ainda não serão modificadas as regras para militares.

O documento que acompanha a PEC, que pode ser acessado no site do Senado, justifica que a idade mínima de 65 anos seguiria o padrão internacional. Porém, compara o Brasil a outros países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), como Suíça, Islândia, Japão, sem levar em consideração as especificidades do mercado de trabalho brasileiro, em que os trabalhadores começam a trabalhar muito mais cedo, têm menos acesso a formalização e expectativa e qualidade de vida menores.

Questão de gênero

Como já discutido em outras notas, a proposta de igualar os critérios para acesso ao benefício por gênero é justificada de forma absurda. Ainda que cite a dupla jornada e as desigualdades enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho, o documento aponta que as desigualdades estão diminuindo e que as condições de inserção irão se igualar no futuro próximo, portanto não haveria problema. O documento não analisa as diferenças de rendimento mensal entre homens e mulheres, somente rendimento por hora, o que mascara o fato de que as mulheres têm jornadas de trabalho menores por terem vínculos mais precários e, portanto, possuem menores rendimentos. Escreve-se “a razão de rendimento entre as mulheres de 14 a 23 anos em relação aos homens é de 99%”, sem fonte, o que leva a entender que a diferença de rendimento é mínima entre homens e mulheres, o que é uma falácia.

Ainda, se um dos problemas é a dupla jornada, para justificar que hoje as mulheres se ocupam menos dos trabalhos domésticos, o texto aponta que hoje menos mulheres se dedicam exclusivamente aos trabalhos domésticos, o que é positivo, mas foge da questão: as mulheres ativas dedicam cerca do dobro de tempo dedicado por homens ativos aos serviços domésticos. E tal proporção ainda é considerável entre a juventude brasileira, o que indica que, infelizmente, esse fenômeno se reproduz no tempo e não será mudado “naturalmente”.

Ora, igualar a idade para a aposentadoria não resolve o problema da desigualdade de gênero nem auxilia em seu combate, mas cristaliza e naturaliza ainda mais as desigualdades vividas pelas trabalhadoras brasileiras.

Fonte: Fundação Perseu Abramo, Boletim de Política Social, Ano 4, nº 376.