Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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sábado, 8 de dezembro de 2018

Dois casos de amor


Dois casos de amor

                                                            Mirian Cintra



Este conto é uma homenagem a Célia e Arlindo, o primeiro caso de amor e foi escrito a pedido de sua filha, a destemida Juliana que vive o segundo caso.

 

1.  A podóloga surpreende a escritora

 

- Boa tarde. Você é Juliana?

- Sim. Boa tarde. A senhora é Dona Pandá? Está marcada para agora, às 14 horas. Entre. Fique à vontade. Pode deixar suas coisas na cadeira. Deite-se, aqui – disse, apontando a maca.
- Obrigada.
- A senhora está confortável?  Tem algum problema específico nos pés ou precisa apenas da pedologia comum?
- Preciso de um cuidado especial com a unha do dedão no pé direito. Veja como está encravada.
Juliana, com mãos habilidosas, pegou os pés de sua nova cliente e delicadamente foi apertando aqui e ali até formar seu diagnóstico.
- Vamos desencravar esta unha que está aporrinhando a senhora. Vamos bem devagar e acho que seria bom colocar uma fibra para abrir a unha e melhorar seu formato. Aí vai impedir que fique deste jeito – falou, mostrando os cantos encravados -.
- Vamos lá – respondeu Dona Pandá – qualquer coisa que pare este incômodo. Não posso nem colocar um sapato fechado!
A partir daí, a podóloga se concentrou em seu trabalho e só se ouvia, de vez em quando, uns ais, caraca, mama mia e outras expressões que traduziam a tortura a que se submetia a pobre e corajosa cliente. Quando aquela unha foi abandonada, podóloga e cliente não reprimiram seu alívio, fizeram um pequeno intervalo com direito a um copo de água.  Juliana, então, perguntou:
- A senhora é mesmo escritora? – Dona Pandá achou engraçado o jeito da pergunta e devolveu: - Sou por que?
- Então vou lhe contar minha vida e a senhora escreve um livro.
Assim, começou a estória que vão ler e também se iniciou uma amizade entre a podóloga e a escritora.



2.  O pai demora

As quatro crianças sentiram que o pai estava demorando mais do que o usual. Como de costume, ele saíra para buscar a mulher no ponto do ônibus. Ela dava aula num povoado próximo e ele aproveitava para passear com ela na garupa da bicicleta. A distância não era grande e, muitas vezes, paravam debaixo de uma árvore para conversar. Com a casa pequena, as crianças e muito trabalho, ficava difícil roubarem um momento para eles.
Havia poucos dias, Juliana comemorara seus 14 anos. Era a mais velha dos quatro irmãos – Jusceliane (13 anos), Ademair (12), Júnior (10) -  e seria, dali pra frente, seu Norte, seu amparo -. Já o Sol descia no horizonte e os meninos começaram a perceber que logo estaria escuro.
- Ju, por que Pai e Mãe estão demorando? – Ademair, querendo se mostrar indiferente, perguntou ao mesmo tempo em que provocava Júnior, jogando-lhe gravetinhos que pegava do monte armazenado para acender o fogo. Jusceliane, percebendo que a irmã mais velha nem ouvia, respondeu por ela:
- Para com isto, Ademair, Mãe vai precisar dos gravetos pra fazer a janta.
Juliana saiu para fora da casa com intenção de ir ao encontro dos pais, mas seu pensamento, como uma voz fora dela e impositiva, parecia dizer alto não vá. Falou, então, para os irmãos:
- Vou à casa do Tio Célio pedir pra ele ir ver se aconteceu alguma coisa com Pai e Mãe.  - Imediatamente, todos saíram atrás, correndo em direção à casa do tio.

Viviam em uma fazenda, propriedade dos avós.  Quando Maria Célia se casou com Arlindo, fizeram, como os irmãos já casados, uma casinha não muito distante das outras e começaram sua vida.

Na região, era costume na medida em que os filhos iam se casando, construíam suas moradas e começavam a plantar suas roças de milho, mandioca, feijão e a criar suas cabeças de gado, porcos e galinhas.
Como a maioria das famílias tinham muitos filhos, era comum esse aglomerado familiar iniciar um vilarejo, onde a necessidade acabava trazendo uma venda – pequeno armazém com os produtos mais usados pelos moradores – e, com o passar do tempo, casamentos com membros de outras famílias traziam pessoas alheias ao núcleo inicial que contribuíam para a expansão da vila. Algumas acabam se encontrando com o núcleo urbano próximo, aumentando a cidade.

Bem, mas não foi o caso da família Camargo. O senhor Fernando era um homem quieto, passivo, triste, pouco chegado a enfrentamento. Seu tipo físico bem mostrava seu interior, baixo, barriga avançada de quem prefere uma cadeira de balanço a grandes corridas, pele branca combinando com os olhos claros. Trabalhava com madeira, fazendo quebra-cabeças. Já dona Ana mostrava sua vocação de matriarca na estatura, mais alta que o marido, magra, cabelos e olhos castanhos. Para ela nada de balanços, preferia a vigília, andando quase correndo a fim de tudo ver e controlar. Pouco afeita a estranhos, riscos de quebra de sua rígida rotina a que todos deviam obedecer. Parecia sentir-se senhora do destino de cada membro de seu clã.

Dona Ana era despudorada em suas preferências maternais. Teve 10 filhos, um bebê não sobreviveu.  Havia o filho predileto e a filha rejeitada, quase odiada. Célia contrariou a matriarca e pagou um preço alto. Resolveu, ao invés de ir para a enxada, ser professora. Os filhos, segundo dona Ana, deveriam tocar as roças para alimentar a família e ter um excedente, cuja venda abasteceria sua poupança. Todos a obedeceram, exceto Célia que punha o cabo da enxada no queijo, congelava, olhando pro infinito e dizia bem alto: - Não nasci pra enxada, nasci sim para a lousa. Vou estudar, ser professora.  Imperdoável!

Célia sabia o que queria e costumava batalhar até chegar ao seu destino. Sabia impor sua vontade e pagava suas contas mesmo que fossem altas e até injustas, como as que a mãe lhe cobrava por sua desobediência. Com muita dificuldade estudou, formou-se, prestou concurso e foi nomeada professora de uma escola localizada num pequeno povoado não muito distante do sítio onde moravam. Ela era inteligente, bonita, alegre, gostava de tocar violão e cantar.
Arlindo era alto, magro, rosto fino, nariz aquilino, cabelos e olhos castanhos, caladão, mas também alegre.

3.  A bitaca

Um pequenino empório à beira da uma estrada, ou venda, como as donas de casa diziam ao gritar a um filho - “vai lá na venda pegar um quilo de açúcar pra mim” – foi onde Arlindo, passando por lá viu, pela porta aberta, a vendedora que lhe pareceu estar sorrindo pra ele.
- Ora, ora – pensou, ralhando consigo mesmo – estou ficando é bobo. A moça nem chegou a me ver e já estou sonhando.
No dia seguinte, deu o jeito de passar pela bitaca e sua decepção foi enorme, onde deveria estar o sorriso que ele “viu”, estava um marmanjo. No outro dia, só por curiosidade, passou devagarinho em frente à venda e lá estava o sorriso que, ao vê-lo, se ampliou... Arlindo parou, olhou sério e, como depois iria ficar recordando, tirou uma linha na moça, mas a coragem para lhe falar foi embora antes dele. Alguns dias se passaram para ele criar a coragem de entrar na bitaca.
- Bom dia.
- Bom dia.
E foi só para tanto que a coragem deu. Precisou de mais tempo para conseguir o bom dia se arrastar até o que se poderia chamar de um flerte.

A moça do sorriso - Maria Célia - tomava conta, pela manhã, da venda. Ela havia notado o rapaz sério e já descobrira algumas informações a seu respeito. Ajuizada e inteligente, aguardava se divertindo com a falta de jeito do rapaz. Depois de muitas desculpas para entrar na Bitaca, uma hora, perguntava se ela vendia fumo de rolo, outra, se havia gergelim para matar formiga. Sempre cuidava para perguntar sobre um item que, segundo sua avaliação, não haveria. Assim, foram dias nesta peleja da busca de inspiração para a verdadeira abordagem.

Num dia abençoado, sentindo que estava a ponto de perder o trem e a moça se escafeder, deixou a timidez debaixo de um balaio, e foi direto e reto para a Bitaca. Para não correr risco, entrou logo sem qualquer paradinha na porta. Esqueceu o bom dia e quase gritou:
- Quer namorar comigo?
Primeiro o susto. Depois a risada. Ele virou as costas e saiu. Maria Célia saiu de trás do balcão e, correndo até a porta, gritou:
- Arlindo! - Ele parou e ela rapidamente completou:
- Quero! – Ele voltou e de cara fechada, a encarou.
- Você riu de mim!
- Você foi tão engraçado! Não fique amuado comigo – ela falou sorrindo, fazendo charme – Gostei de você me pedir em namoro. Demorou tanto!
- Demorei?!
- Você ficava me espiando e eu querendo que você entrasse para conversar comigo, mas você parecia que nem me via. Depois, no outro dia, me olhava, olhava e ia embora!
- E se você não quisesse namorar comigo?!
- Ô gente, pois não estava na cara que eu queria?!
- Na cara de quem? Perguntou ele todo sério.
- Você está de troça comigo? Ou você gosta mesmo é de fazer graça? – Célia olhava pra ele e ria. – Vai ficar nesta casmurrice ou vai me dar um sorriso? Assim, está bom. – E, finalmente, Arlindo conseguiu baixar a tensão e sorriu.

Na realidade, o rapaz era muito tímido e, via Célia como a moça muito bonita e estudada. Sua insegurança só foi menor que a atração que sentia por ela. Arlindo havia parado os estudos ao final do curso básico, então, Célia, uma professora, podia não considerá-lo adequado.
  
 Passaram a namorar, mas alguns meses depois, Arlindo terminou o namoro e arrumou outra namorada.  Célia se dedicou mais ainda aos estudos, sem entender direito o que ocorrera.
Ela continuava suas atividades que incluía um período na bitaca e ele evitava passar por lá. De repente, as coisas começaram a se repetir e Célia teve a sensação do dejá vu.  O rapaz passava, olhava e seguia adiante. Mais uns dias e ela, indo embora pra casa, depois de seu expediente, o encontrou sentado em um tronco de árvore no meio de seu caminho. Quando, o viu de longe, seu coração gritou, mas ela tomou a decisão de passar ao largo. Ele, porém, não havia esperado mais de uma hora para perder a chance de lhe falar. Levantou-se e, mostrando a bicicleta, perguntou: - Posso levar você para casa? - Agora ele sorria e ela, séria, respondeu: - Na garupa da sua bicicleta?! Não, obrigada e foi andando. - Ele, empurrando a bicicleta, a acompanhou, em silêncio. Quando faltava pouco para chegarem, Célia lhe disse:
- Olha, agradeço a companhia, mas acabo de chegar sozinha e, por favor, não faça mais isto. Você tem namorada e... – Ele a interrompeu: - Não tenho mais.- Ela só olhou para ele com a interrogação nos olhos e Arlindo, vendo que apesar da dureza do semblante, Célia aguardava parecia que com alguma expectativa. Então, haveria de lhe dar uma nova oportunidade. Os dois ficaram se olhando alguns segundos até que ela tomou a dianteira, cobrando:
- Fala, homem.
- Terminei com Sandra.
- E por que?
- É de você que eu gosto.
- Por causa disso é que terminou comigo? Você quer ficar um pouco comigo, um pouco com ... como é que você a chamou?
- Sandra. Não quero ficar com ela.
- Arlindo, sua atitude não me agradou e continua não me agradando.
- Sabe, eu lhe dou razão, mas errar é humano – Célia lhe ofereceu um sorriso malicioso e completou: - e perdoar é divino. Você pensa que sou besta? – Virou-se e foi andando.
No dia seguinte, lá estava Arlindo sentado no mesmo tronco. Ela passou, disse um boa tarde e apressou o passo. Ele ficou perplexo e resmungou: - Diacho de moça difícil! Vamos ver quem desiste. Não há de ser eu!
No terceiro dia, ele ficou atento e quando teve certeza de que ela estava sozinha, foi a seu encontro e logo já disse:
- Olha aqui, Célia, não vou desistir de você.
- Ah! É?! Então, me explique primeiro por que me deu o fora e foi namorar outra.
- Quero namorar você.
- Arlindo, você não me ouviu?! Enquanto não me disser o que fez você me dar o fora, não vou começar tudo de novo com você. – Ele percebeu que não tinha saída e como iria explicar? Com os olhos fixos em uma touceira de mato a chamou para sentar no tronco onde estivera esperando por ela, dizendo que precisava falar com calma.  Os dois se sentaram e Arlindo, com certa dificuldade, contou do seu medo de não dar certo devido à diferença de estudo. Ele se sentindo quase analfabeto e ela a professora. Daí, achou que podia casar com a moça Sandra, porém, logo entendeu que não era bem assim.
- O coração da gente é mandão, não obedece e ainda quer ser obedecido. Meu coração é que nem burro quando empaca. Encasquetou que é você. O que eu posso fazer?
- Célia deu uma risada e percebeu que aquele moço, com aquela conversa de coração, burro empacador, sabia era manobrar o seu coração. O resultado foi o retorno do namoro.

Não foi um casamento de arromba. Foi uma festa a dois. Houve convidados, alguns amigos, parentes, mas a alegria dos noivos foi a principal nota.  




4.  O aviso no sonho

Enquanto corriam à procura do tio, Juliana se lembrou do sonho que teve naquela noite. Acordou chorando e o pai chegou logo para acalmá-la: - Filha, você estava sonhando. Veja, estou aqui. Estamos em nossa casa. O que foi que sonhou? Conta pro Pai. – Arlindo havia abraçado a filha e passava a mão carinhosamente em sua cabeça. Quando a menina parou de soluçar, contou que no sonho sua mãe havia morrido. O pai aproveitou a superstição e falou: - Ora, isto é bom. Quando sonha que alguém morre é sinal de vida longa para a pessoa. Quer dizer que seu sonho trouxe a mensagem de que sua mãe vai viver até os 100 anos. Já pensou a Celinha toda enrugada, andando com bengala e falando sozinha? – Juliana começou a rir com a imagem da mãe velhinha e, depois de outro beijo do pai, dormiu tranquila.

Parou, então, sua corrida e falou alto: - Mãe vai ficar velhinha.
Ademair, que estava logo atrás, perguntou: - Mãe vai ficar velha ?! O que você está falando, Ju?
- O pai me disse que quando a gente sonha que uma pessoa morre, é sinal de que a pessoa vai viver muito.  – Com este pensamento, Juliana se acalmou, deu uma parada, esperou os outros irmãos e ficou pensando no que teria acontecido para os pais se demorarem tanto. Ademair, curioso queria uma explicação: - Ju, por que pai falou que mãe vai ficar velhinha.
- Porque eu sonhei que mãe morreu.  – Jusiliane e Júnior chegaram perto e Ademair contou o sonho da irmã. Como já haviam chegado à casa do tio que estava, com um prato na mão, à beira do fogão, pretendendo servir seu jantar, parou e olhando surpreso os sobrinhos, perguntou: - Você sonhou que Célia havia morrido, Ademair?
- Eu não. Foi Ju.
- Onde estão seus pais?
- Ô tio, eles ainda não chegaram.
- É mesmo?! Já está tarde. O que pode ter acontecido? Será que eles iam passar na casa da Marlene?
- Não – Respondeu a sobrinha mais velha – quando eles vão se atrasar, pai fala antes. Está na hora da janta. Mãe não deixa a gente com fome. O tio pode ir ver se mãe não chegou e pai ainda está lá esperando? – Célio percebeu que as crianças estavam bem ansiosas e começavam a contaminá-lo, pois perdera o apetite. Vou chamar o Nardo pra gente ir até o ponto do ônibus. Vocês voltam pra sua casa e ficam lá esperando.

Célia, Nardo e Célio eram vizinhos, suas casas ficavam bem próximas umas das outras. Célio tinha uns 30 anos, era alto, claro, cabelos cacheados, olhos castanhos que pareciam verdes, dependendo de seu humor. Era brincalhão. Morava com a mulher e dois filhos, um garoto e uma menina de quem Ju gostava de se fazer babá. Nos raros momentos de brincadeira, a garotinha cumpria um belo papel de boneca. Célio plantava junto com Arlindo, colhiam e vendiam seus produtos em parceria.

Arnaldo, como não podia deixar de ser, era Nardo. Apelido apropriado para o garoto que, com hipotireoidismo mal tratado, parecia anão. Os adultos da família, caçoando dele, ensinaram as crianças e, logo, todos o elegeram como a vítima da zombaria geral e maldosa. Devido a suas limitações para o trabalho pesado, era muito pobre e só conseguiu fazer uma tapera de adobe. Morava sozinho. Criava galinhas, cuja venda era seu sustento. No entanto, extremamente bondoso, muito ajudava a irmã e o cunhado. Ficava com as crianças que gostavam bastante do tio anão. 

Célio e Nardo andavam apressados, o dia estava pra acabar e o ponto do ônibus não era tão perto.
– Eu devia ter lembrado da lanterna. – Falou Célio.
– É mesmo. Também os meninos naquela gritaria que nem dava pra saber o que falavam...  – O irmão respondeu, com a voz de quem deixou o prato cheio e o estômago vazio. Os dois quase corriam, demostrando que não queriam precisar da lanterna esquecida.  De repente, Arnaldo gritou:
- O que é aquilo?
- Parece fogo! E é fogo!
Chegaram mais perto e se assustaram. Deram meia volta e correram até botarem a língua pra fora.  Foram direto para a casa da dona Ana, dois homens de olhos arregalados, sem fôlego para falar. As crianças viram os tios e foram saber por que os pais não estavam com eles. Ao entrarem na cozinha, ouviram os dois, com palavras entrecortadas, meio sem nexo, contando que Arlindo e Célia estavam caídos na estrada e o pai pegando fogo!
Calamidade se aproximando!
Não entendiam, sentiam o horror! Os três pequenos, perplexos, em choque, depois de choros, o silêncio do desespero, do desamparo. Saíram da casa e ficaram sentados no chão perto da porta.
Juliana, num segundo, começou a agir por instinto, procurou o telefone e ligou para a polícia. Uma tia, vendo a menina ao telefone, pegou o aparelho e pediu a presença de policiais e de uma ambulância.
Os adultos não tiveram olhos para as crianças e Juliana virou adulta. Pressentiu a extensão da desgraça e soube que a vida havia lhe dado uma carreta para puxar morro acima. Seus irmãos iriam precisar de uma leoa para defendê-los. Ela era, agora, pai e mãe aos 14 anos. Mãe?! Juliana foi atrás dos tios, questionando-os:
- E mãe?!
Com a sensibilidade dominada pelo medo, Célio respondeu:
 - Deve estar morta, ela não gemia.  – Juliana saiu correndo num choro seco, doído e chamando os irmãos, levou-os para casa, numa tentativa de proteção.
Os quatro foram para o quarto do casal e se sentaram na cama. Júnior buscou a mão da Jusiliane e balbuciou:
 - Quando pai chegar, vai perguntar...
 – Pai não vai chegar – gritou histericamente o irmão. Todos se assustaram com o presente caindo-lhes sobre a cabeça como chuva de espinhos. Calaram-se, cada um rejeitando o que vivia, entrando no mundo mais seguro, o das lembranças.
Jusiliane, tendo a mãozinha do irmão na sua para lembrá-la que devia cuidar dele, começou a falar com a voz perto do choro:
 - Vocês se lembram quando mãe chegou mais o pai e encontrou a gente correndo atrás do gato amarelo? – Juliana, percebendo que a irmã se fazia de forte, aderiu prontamente.
- O gato apareceu no paiol e pai falou para deixar ele lá para cuidar dos ratos que queriam comer o milho.
- Mãe ficou brava comigo porque eu tinha uma pedra na mão. Ela gritou que ia me bater e saiu correndo atrás de mim. - Falou Ademair. - Todos foram buscar na cena vivida, em momento feliz, o refúgio contra o presente tão assustador. Cada um se lembrava de detalhes e chegaram a rir quando veio à baila o escorregão de Ademair, a perda da pedra e o ganho da palmada na bunda.

- Mãe tem a mão pesada. – A lembrança da palmada se misturou ao presente e o desespero se fez forte. O caçula, querendo tirar alguma coisa que o estava estrangulando, começou a gritar:
- vou brincar de taquenalata , vou brincar de taquenalata – Júnior repetia sem parar. Ademair olhou assustado para o irmãozinho e falou um cala a boca, moleque, que foi a senha para a volta à realidade e os choros chegaram para todos. Juliana também não se conteve mais e com as lágrimas rolando, chamou: - Vamos para a cozinha fazer a janta.

A polícia encontrou Célia morta com fratura craniana e Arlindo todo queimado, cheirando a gasolina. Ele foi levado, ainda vivo, para o hospital, acompanhado por um dos seus irmãos que lhe ouviu as últimas falas. Estas contradisseram a precipitada versão da polícia. Começam aí as perguntas não respondidas sobre o duplo assassinato. As investigações se basearam no fato de a morte da mulher ter sido provocada por agressão, com um cano, na base do crânio.
Nabuco, um policial aposentado, achou, na área do crime, o tal cano e o entregou à polícia, identificando-o como sendo de propriedade de Arlindo, já que havia visto o objeto em sua casa.  O ex-policial frequentava as casas da família e assediava Juliana, tentando boliná-la, o que sempre foi motivo de rejeição e grande desconforto para a garota. Concluíram que a arma do crime era o cano e o assassino, seu proprietário. Assim, a conclusão rápida da polícia foi que Arlindo matou Célia e se colocou fogo. As investigações posteriores – se as houve – confirmaram, segundo a polícia, essa versão. A partir daí, múltiplas dúvidas, e muitas perguntas ficaram sem respostas. A mais intrigante é por que, logo no início do inquérito, as investigações foram paralisadas e o caso encerrado? As pessoas que conviviam com a família, sem exceção, sempre afirmaram que o casal era apaixonado, muito feliz. As lembranças dos filhos são de uma família bem estruturada, sem indicação de ruptura de qualquer natureza. A pergunta Quem matou Célia e Arlindo não foi respondida.

5.  O pula-pula na busca de um lar

A avó Ana não permitiu que as crianças ficassem na casa onde viviam com os pais e as levou para sua própria morada. Lá, pelo menos, os quatro ficaram juntos. Na situação tão traumática, sem apoio familiar compensatório e confiável, apoiavam uns nos outros. Não podiam imaginar uma separação, estavam de mãos fortemente enlaçadas.

A passagem por essa casa ficou na memória dos netos como mais uma prova que a vida lhes estava passando. Cada um guardou para si, na tentativa de proteger os outros, os descalabros sofridos na casa da avó que lhes servia comida no prato feito por ela. Essa comida era menos em quantidade e pior em qualidade que a oferecida às outras pessoas da casa, sem o cuidado de não deixar as crianças perceberem essa mesquinharia.

Após o almoço, as crianças eram obrigadas a colocar cada uma a enxada no ombro e ir para a roça capinar. Juliana se parece muito com sua mãe, o que era motivo para a avó amaldiçoá-la, dizendo-lhe grosseiramente que ela não teria filhos e nunca conseguiria formar uma família. Muitos anos depois, Juliana mostrou à avó o seu grande equívoco.

Havia um toque de sadismo no autoritarismo da matriarca, não somente em relação aos netos, mas também para com o marido e os filhos não prediletos. As características negativas da avó foram marcantes para as crianças, porém como elas já haviam recebido dos pais os valores, onde a solidariedade e a honestidade se faziam presentes, conseguiram superar, não sem enorme sofrimento, o período macabro do início da orfandade.

Esse período durou dois longos anos.
Júnior, com 12 anos, e Ademair, com 14, foram morar cada um com um tio. O primeiro, ao completar 18 anos, mudou-se para a casa de um amigo com quem começou a trabalhar. Logo iniciou a construção de sua própria casa para onde se mudou tão logo a construção o permitiu. Casou-se e continua morando lá.
Dois anos antes de Júnior, Ademair completou seus 18 anos e foi morar sozinho no Quemquem, distrito de Janaúba, numa casa que conseguiu comprar e lá ficou mais quatro anos. Daí foi para Betim, onde Juliana já estava e ficou morando com a irmã dois anos, quando, então, mudou-se para sua própria casa.

Jusceliane saiu da casa de Dona Ana aos 16 anos, indo morar com sua madrinha, onde ficou por dois anos. Em seguida foi para a casa de uma cunhada da madrinha e lá ficou para fazer o curso de auxiliar de enfermagem e ter experiência em farmácia. Foi para uma república, mas não suportou a desorganização do lugar. Negociou com seu padrinho para morar em um pequeno apartamento que ele possuía, pagando um aluguel razoável. Esse arranjo durou 10 anos. Jusceliane continua em Janaúba, trabalha em um hospital e tem dois filhos.

Juliana foi convidada a ficar com as três meninas – a mais velha tinha oito anos, a caçula, três e a do meio, seis - filhas de um primo. Convite que aceitou com uma grande sensação de liberdade por deixar a casa da avó e poder visitar os irmãos nas casas dos tios. Depois de três meses, a prima, frustrada por Juliana recusar seu irmão,  levou-a à presença da promotora que a encaminhou ao Conselho Tutelar, tendo lá permanecido por quase dois meses. Uma prima distante foi buscá-la e Juliana esteve, então, em sua casa, por dois anos, quando foi solicitada a se mudar. Sua amiga do grupo de orações alugou uma quitinete e foram morar juntas. Ju pagava água e luz com o que ganhava fazendo unhas.

6. A gota d’água e o recomeço

Conseguiu, então, um emprego de caixa na loja de uma de suas clientes.
Nessa época, a vida já havia lhe proporcionado as dores que não mais cabiam em seus pequenos ombros e os resultados das batalhas travadas mal davam para conseguir caminhar alguns passos. Juliana, uma garota linda, cobiçada por muitos homens, numa cidade pequena do interior mineiro, onde impera a maledicência, pagou caro sua firmeza e honestidade.  Aquele policial aposentado, na realidade era doente, concupiscente, tentou agarrar Juliana que conseguiu sair fisicamente ilesa, mas sofreu a vingança do homem rejeitado. Nabuco  se encarregou de montar uma imagem negativa da garota que o humilhou. Espalhou o ocorrido exatamente da forma inversa à verdade e a menina passou a ser vista pelas pessoas – que não se preocuparam com sua situação dolorosa, tampouco em saber se os boatos eram verdadeiros – daquela cidade como uma leviana. Depois de tantos episódios tétricos, Juliana se abateu, foi ficando depressiva, terminou com o namorado, perdeu o emprego e, por seis meses, não pode sequer sair de casa.  Superando mais essa batalha, saiu a procurar emprego, já que era questão de sobrevivência, o instinto de vida e sua coragem venceram a depressão.

Soube de uma loja que estava se preparando para abrir, portanto, deveria estar contratando funcionários. Era uma loja pequena, mas foi contratada e imediatamente já começou a ajudar o gerente, irmão do dono.  A loja foi inaugurada e Juliana passou a tomar conta do caixa.

O gerente Adilson sabendo das fofocas contra a nova funcionária, deu-lhe apoio e procurou mostrar o caminho positivo da vida, sem levar em conta as maledicências. As pessoas fortes atraem inveja, ele gostava de repetir, mostrando à Juliana a importância zero das pessoas que a invejavam por ter conseguido superar as adversidades, os terríveis sofrimentos  advindos da morte dos pais. Essas conversas acabaram por aproximar bastante os dois. Ele, 20 anos mais velho, encantou-se com a garota linda, corajosa e, o que mais admirava era o fato de, com todos os infortúnios, ela ainda ser alegre.
Adilson namorava Dalva jovem viúva, mãe de três crianças. Após conhecer Juliana, o noivado foi ficando sem graça e havia pouco tempo para esse namoro. Até que o rapaz percebeu que precisava terminar aquele relacionamento para ser honesto com Dalva e com ele próprio. No entanto, a diferença de idade com Juliana trouxe inquietações. Foi falar com seu irmão sobre essa dúvida que o estava angustiando e o impedia de se abrir com ela.  Quando contou ao Marcos seu problema, fechou dizendo:
- Quando eu tiver 70 anos, ela terá apenas 50. Vou estar caquético e ela bonitona. Estou pensando em me mandar daqui e procurar meu caminho, mas não está fácil pensar que não verei mais aquele sorriso tão doce quando me dá bom dia. – Sorriu sonhador e completou:
- Não há poder no mundo que faça meu dia não ser bom!
- Marcos riu com vontade, deixando o irmão entre sem graça e com raiva. - Ao invés de rir de mim poderia me ajudar.
- Como você quer que eu o ajude? Você estava com uma mulher de sua idade. Terminou com ela e, agora, está na dúvida se namora a garota mais nova.
- Se falo com ela, pois nem sei se vai querer namorar com o coroa aqui.
- Cara, você parece que foi expulso do campo antes de começar o jogo.
- Ora, me diga o que você acha que devo fazer?
- Depende.
- Depende de quê?!
- Depende de como você quer chegar aos 70. Você quer chegar como um homem sério que procura uma mulher pela idade ou quer chegar aos 70 tendo vivido o grande amor?
- Adilson olhou espantado para o irmão e resmungou: - o que estou esperando?! – Saiu apressado e quando se deu conta estava em frente à loja, mas era à noite, O expediente terminara há algumas horas e ele nem sabia onde a moça do sorriso de bom dia morava. Agora, ele tinha urgência! O que fazer senão esperar até o dia seguinte? Quase que por puro hábito fora parar lá, lembrou-se que Juliana, quando de sua contratação, preencheu a ficha de funcionários. Feliz com a ideia que lhe ocorreu, abriu a porta da loja e foi buscar os documentos do pessoal. Lá estava a foto da garota e seu endereço. Adilson falou em voz alta: - Peguei você!  - Rapidamente, fechou tudo e saiu correndo a procura do endereço.

7. Juliana, a intrépida alegre

Juliana foi abrir a porta e deu de cara com seu gerente que, sem um boa noite, lhe disse: - Preciso falar com você, vamos dar um passeio. – O tom não era de interrogação e pegando sua mão a puxou para a calçada. Juliana meio preocupada com a seriedade de Adilson, mas achando graça no seu jeito, mostrou que estava de chinelos e penhoar ao que ele aquiesceu, pedindo que fosse se trocar rapidamente.
- Pronto. Vamos logo para eu saber onde está pegando fogo...
- Fogo! eu é que estou pegando fogo, menina – pensou o rapaz.
Foram andando e ela cobrou:
- Fala, Adilson, você está me deixando nervosa.
- Acho que estou gostando de você.
- Acha?
- Juliana, podemos namorar? Quer dizer você tem namorado?
- Tenho, mas...
- Mas o quê?
- Eu já ia mesmo terminar esse namoro porque não está dando certo. Ele é muito criança pra mim.
- E você me acha muito velho?  É, acho que posso dizer que você é que é muito criança pra mim.
Juliana estava ficando chateada e perguntou meio agressiva:
- Você está me deixando confusa. Vem na minha casa, me chama para ir dar um passeio, diz que quer me namorar e, agora, vem dizer que eu sou muito nova pra você!
Adilson segurou o braço dela, olhou em seus olhos com tanto carinho que Juliana ficou também olhando pra ele enquanto sentia sua mão nos cabelos e ouvia sua voz baixa: - Sabe o que é? Sou muito mais velho que você por isto tive medo de lhe falar antes.
- Estamos perto da pracinha, vamos sentar num banco? – Foram andando, com as mãos entrelaçadas. Quando sentaram, foi ela que falou:
- Faz tempo que olho pra você e sinto que gostaria de me aproximar mais. Fico contente por me procurar, mas me dê um tempo para eu resolver com o Juarez, o rapaz com quem ando saindo. A verdade é que antes dele, tive a infelicidade de namorar um cara bastante ciumento e violento. Fiquei com medo de ficar sozinha e ele vir me aporrinhar. Daí, o Juarez apareceu. Ele é muito correto, não posso ser diferente. - Adilson concordou. Embora não tenha gostava da tal espera, achou a atitude da moça louvável.
Quando Juliana avisou que estava liberada, os dois passaram a sair juntos. Ela saiu da loja e foi trabalhar em outra, onde, todo final de tarde, ele passava par acompanhá-la até sua casa. Na medida em que a convivência ia mostrando as preferências de cada um, seus jeitos de encarar a vida, iam percebendo maravilhados o quanto se acertavam, se complementavam. Como Juliana sempre foi um hino à alegria de viver e Adilson a admirava também por sua coragem nos enfrentamentos que a vida lhe imponha, o casal tinha uma convivência fácil.

Uma tarde, Adilson encontrou Juliana sentada no beiral do portão da loja.
- O que aconteceu? Por que você chorou?
- Roubaram minha bicicleta. – Havia um componente psicológico naquela bicicleta que a transformara em um objeto importante, quase um fetiche. Quando criança, o pai carregava Juliana na garupa para levá-la ao ponto do ônibus escolar. Ela conseguiu, com todos os percalços de suas idas pra lá e pra cá, nas várias moradias por onde passou, conservar a bicicleta.  Adilson sabia de todo o significado e se condoeu. Pegou as mãos dela e a levantou, puxando-a num abraço. Ela se entregou à sua nova dor e chorou. Ao se acalmar começou a falar o quanto estava cansada de tudo dar errado e, num sofrido desabafo, falou:
- Não quero ficar mais nesta cidade. Só tive sofrimento. – Adilson que já estivera fazendo planos para voltar a Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ficou acariciando seus cabelos, na tentativa de acalmá-la.
- Vamos pra casa, tomamos um lanche e quero lhe contar os meus planos de sair daqui. – Ela sorriu e pensou: deve ser a janela abrindo no lugar de todas as portas que já se fecharam para mim.  

Não demorou muito e realmente, ele deixou a loja com seu irmão que afinal era o proprietário do negócio. Em Betim, foi morar com a irmã. Ficara combinado que Adilson iria arrumar um emprego, alugar uma casa e, então, Juliana iria. Acontece que ela havia chegado a seu limite e avisou que não podia esperar mais. Combinaram, pois, de ela ir e ajudar a procurar casa para alugar. A irmã concordou e ficaram alguns dias morando com ela. Logo, conseguiram alugar uma casa e foram, então, para o lugar que, pela primeira vez, Juliana pode chamar de minha casa. Há muitos anos, sonhava em ter seu lar com sua família.  Começou a procurar trabalho e foi ser manicure em uma salão de beleza. Ele conseguiu um lugar para vender peças automotivas, já que tinha experiência nesta área. Prestou um concurso na Prefeitura de Belo Horizonte, passou e tomou posse, iniciando suas idas de manhã bem cedo para a Capital.
Foi um tempo difícil, levantavam de madrugada, trabalhavam muito e se viravam, na maior economia com o dinheirinho que ganhavam. Entretanto, Juliana não se abatia e se acostumou a buscar o melhor do que vivia. Adilson oferecia a ela a segurança de que precisava, sobretudo pelo carinho.

Ela começou um curso de podóloga, enquanto Adilson se preparava para prestar outro concurso, agora para o Estado de Minas Gerais.  Juliana passou, então, a trabalhar como podóloga, ganhando um pouco mais e ele como funcionário do Estado. Compraram uma casa em Mateus Leme, pertinho de Betim. Juliana engravidou. Felicidade! Toda gravidez desejada traz à mulher uma luz de alegria que a ilumina, como se fosse um aviso para o mundo se preparar para a chegada de uma nova era.

Passaram alguns meses, a preparação para o enxoval do bebê já se iniciara, porém Juliana começou a se preocupar porque não sentia mais os movimentos da criança. Foi constatada a morte do feto e o médico achou que deveriam esperar para o próprio organismo expulsar, num aborto espontâneo. Juliana sofreu muito por perder o filho que tanto queria e por ficar com o feto morto dentro de si. Aguardaram um mês ao final do qual, ela não suportou e foi, então, feita a cirurgia. Tristeza maior! De novo o infortúnio!

Juliana carrega a contradição: de um lado os acontecimentos nefastos a acompanhando e de outro, sua intrepidez lhe apontando batalhas vencidas num convite à vida. Lembra com angústia das palavras amaldiçoadas da avó, prenunciando seu fracasso de nunca formar uma família, de ser incapaz de ter filhos. Junto à lembrança, vem o abatimento. No entanto, logo chega o outro lado, se houve tanta desdita e ela conseguia até ser uma jovem alegre – como seu marido gostava de dizer – significava que sua força era grande. Começou a reagir e, durante o churrasquinho – o casal tinha o costume de toda segunda-feira ficar em casa, curtindo um ao outro - avisou ao Adilson que queria outro filho. De fato, logo engravidou novamente.

Nasceu Ana Júlia que trouxe alegria e coragem maiores ao seus pais. Como não poderia deixar de acontecer, quando a criança completou cinco anos, Juliana a levou e ao marido para apresentá-los à avó. Mais uma vitória a comemorar!

Mudaram para outro município mais perto do trabalho dos dois. O futuro está se delineando com mais um filho e uma nova mudança, agora, para uma cidade pequena à beira mar, um sonho que tem tudo para ser realizado.

Em, 7 de dezembro de 2018                                                      


sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Engels 198 anos, Marx 200 Anos – Celebração, celebrações...


Rex Regente

Celebrações merecidas pois
menos de 30 anos depois
de Marx ter nascido,
ele e Friederich Engels,
seriam encarregados pela Liga dos Comunistas,
os dois, de escrever o Programa. E o escreveram.
E que Programa maravilhoso escreveram ![1]
Escreveram um Programa que ainda ressoa,
desde a primeira frase famosa
(que faz tremer ainda certo tipo de alma medrosa):
Um espectro assombra a Europa —
a assombração do comunismo.
Contra ele se aliaram as velhas potências, o papa e o czar...
”,
e continua retumbante o Manifesto
até a convocatória da última linha que ainda ecoa:
Proletários de todo o mundo, uni-vos...!”.
-*-
O Papa é muito melhor agora: é o Bergoglio,
um craque, argentino, hermano,
jesuíta que homenageia os franciscanos,
(melhor que o Maradona),
E o czar ?
É página virada da História.
Mas o Manifesto permanece!
Continua como aviso vibrante
que faz temer a classe dominante.
Ele informa que a História não termina e nem terminará,
Que se um dia a escravidão acaba e monarquias findam,
também o capitalismo passará.
Numa singela analogia: o Manifesto de 1848
é detalhe especial em grande e elaborada pintura.
É como o encontro dos dedos no teto da Capela Sistina,
em que a obra que criaram, forma mais que uma Catedral,
mais que uma partitura. Artisticamente falando: é monumental.
Marx e Engels, se juntaram em 1844 e nunca mais se largaram.
Que bela amizade ! ao longo de quatro décadas !!!
(mais de 40 anos!
não um dia ou dois)
Singularmente se complementaram:
amigos, parceiros, colaboradores, cúmplices, articuladores, intelectuais práticos, escritores, interessados por tudo que humano fosse...
Sabe aquela frase famosa que os dois criaram no começo da caminhada conjunta?
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes;
a questão, porém, é transformá-lo” [2] ?.
Fizeram dela uma definição de vida para eles.
E eles interpretaram o mundo com disposição para o trabalho:
escreveram mais de 50 grandes volumes
de livros, textos, artigos, panfletos,
cartas, cadernos, anotações, borradores,
orientados a iluminar questões complexas
que mantém humanos acorrentados à escuridão da ignorância.
São escritos libertadores [3] [4].
Eram rigorosíssimos no uso das fontes e
para acessá-las aprenderam línguas.
O alemão era  língua materna de ambos
e nela escreveram Filosofia e tudo o mais.
Dominaram o inglês e o francês,
que usaram com maestria:
liam, escreviam e falavam.
Engels[5] lia russo, italiano, português, gaélico,
espanhol,  polonês, línguas escandinavas.
E não eram só as línguas modernas que estudava,
há registros que planejou escrever uma gramática de línguas eslavas
e que aprendeu persa em poucas semanas.
“O Capital” tem citações em grego, italiano, latim e outras línguas.
Quando Marx morreu em 1883 estava a estudar russo e se qualificar para responder perguntas que, da Rússia czarista e atrasada, lhe faziam Vera Zasulich
e outros interessados no socialismo e na revolução.
Gostava de literatura nosso aniversariante genial[6].
Sabia decor trechos de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac,
e o russo aprendeu também, para conhecer Puchkin e Gogol no original.
Onde achava tempo o Mouro ? este era seu apelido na família e para os íntimos.
Durante anos frequentou assiduamente o Museu Britânico,
ponto de concentração de conhecimentos,
quando estava no auge a rapina imperial.
Formou dupla com Engels, e como raras vezes se viu até agora,
fazendo uma analogia com o futebol,
mutatis mutandis
e com todo respeito,
foram maiores que Pelé e Coutinho em sua hora.
Estudaram História. Aprofundaram-se em muitos temas:
política, filosofia, economia, ciências naturais, direito, antropologia
e muito mais. Interpretaram o mundo! E como !!!.
Com seu sistema de pensamento-e-ação, teoria-e-prática,
em suma: com seu Método contribuíram para fazer-nos
pessoas mais livres e mais inteligentes.
Foram protagonistas em organizações, conselhos, assembleias,
Comitês de Correspondência e frentes de luta. Influenciaram o mundo todo. Foram membros-fundadores
da Associação Internacional dos Trabalhadores,
aquela – sempre é bom lembrar –
que limitou a jornada de trabalho regular
a oito horas diárias,
talvez a maior conquista social
desde que a escravidão dos tempos bíblicos
concedeu o descanso do sétimo dia semanal
aos adeptos de uma religião libertadora.
Sua obra saborosa frutificou em frondosa floresta conceitual,
enraizada na vida material dos povos, onde fez História e criou raízes.
Isto ocorreu no mundo, no Brasil e em muitos outros países.
A grande dupla dinâmica Marx-Engels lutou contra as circunstâncias que escravizam os humanos, no âmbito do pensamento, da escrita e da ação, com grande esforço e desprendimento pessoal.
Engels tolerou[7] a vida como funcionário de indústria internacional de fios e tecidos em que seu pai era sócio e que tinha matriz na Alemanha e em Manchester, na Inglaterra, uma filial. Em troca de remuneração que mantinha a sí
e ocasionalmente permitia prover financeirarmente as necessidades da família Marx.  Ele mesmo garoto-prodígio, fazia isto desprendidamente porque
considerava Marx, entre os dois, o gênio criativo, o “primeiro violino” na orquestra de instrumentos, que com a força dos pensamentos[8], da ciência, da literatura, das artes, com que ambos compuseram uma música para o entendimento da realidade.
Mas, nem com todo o provimento que recebeu, a família Marx teve vida fácil.
Ao contrário. Houve períodos em que as privações foram duríssimas
e contribuíram, entre outras dores, para a perda precoce de quatro dos sete filhos
que Jenny e Karl Marx tiveram além de difíceis situações difíceis com credores[9].
Talvez não seja uma grande ironia, quase uma piada pronta,
que o maior estudioso do dinheiro em todos os tempos,
dedicasse mais tempo para penetrar e revelar aos humanos
os mistérios profundos deste assunto de dois mil anos
e dedicasse tão pouco tempo a obtê-lo,
ao mesmo tempo que padecia da falta do mesmo.
Por tudo isto e muito mais,
as familias de Engels e Marx,
tornaram-se personas non gratas a governos,
grandes capitalistas e todo tipo de escravocratas.
Com sua ação, força de pensamento e com seu exemplo,
surfaram as grandes ondas das lutas sociais do seu tempo
e permanecem como inspiração.
Então, um brinde atrasado aos 200 anos do nascimento de Karl Marx
completados no último 5 de maio! E a Friedrich Engels
um brinde adiantado pelos 198 anos
que completaria no próximo 28 de novembro.

Que venham os próximos séculos !!!
Rumo ao Socialismo Científico 2.0 !!!




[1] V. José Paulo Netto no YouTube, falando do Manifesto.
[2] Não é o caso de citar aqui em alemão tal e como em sua original formulação.
[3] Por isto o “mistério” auto-evidente do porquê surgirem Escolas “sem Partido”, equivalentes laicos a madrassas, ieshivót, seminários e a outros sistemas de educação religiosos dedicados à produção de fanáticos impermeáveis aos fatos e a realidade.
[4] Ontem 23/10/28 assisti a Marx Reloaded, filme alemão de 2011 (https://en.wikipedia.org/wiki/Marx_Reloaded) instigador e revigorante. Em conexão com o texto principal, digo aqui que: a inserção de Desenho Animado em que Trostsky faz o papel de Morpheus e Marx o papel de Neo no filme original Matrix e onde se travam aqueles dialógos densos em filosofia (e armadilhas ) em que há que se escolher entre 2 pílulas prenhes de significado recoloca de forma muito vigorosa o papel de marx e do marxismo na discussão hoje no mundo ao associar questões fundamentais relacionadas às questões do dinheiro, do mercado, do fetichismo da mercadoria, da ecologia e contrapô-las a pontos de vista oriundos da defesa da sociedade de consumo, do sistema financeiro e a uma certa variedade de marxistas europeus entre os quais se destaca a figura simpática de Slavoj Zizek, metralhando argumentos e pensamentos numa língua que não é a sua, num produtivo esforço para interpretar o complexo presente contemporaneo.   
[5] Na mesma sessão da 42.aMostraCineSP houve um filme sobre Engels (UM JOVEM CHAMADO ENGELS) de 1970, feito pela República Democrática Alemã  uma animação realizada a partir de cartas e desenhos do jovem Friedrich (1820-1894) Engels  produzidos entre os anos 1838 e 1842, ou seja, entre seus 18 e 32 anos). No filme, o locutor narra a carta que aquele jovem escreveu mencionando as numerosas línguas que lê, fala e escreve. Mostra também facetas pouco conhecido para quem se aproxima de Engels como o 2.o violino de Marx, como ele mesmo se intitulava. O filme mostra facetas do Responsável pelas Compras da Empresa Textil, em Bremen, do jovem Artilheiro Real, do polemista em universitário que não quis ser Doutor, escritor precoce que experimenta com vários generos e de uma origem aristocrática que lhe permitiu uma educação e refinamentos que ele dedicou sua vida a repartir entre todos os humanos.
[6] Na mesma 42.a Mostra exibou-se CARO MOHR – LEMBRANÇAS PESSOAIS DE KARL MARX POR PAUL LAFARGUE, uma animação de 1973, feita pela Repíblica Democrática Alemã, que mostra passagens da vida de Karl Marx e Friedrich Engels pela visão do médico Paul Lafargue, que frequentou a casa de Mohr —apelido que o filósofo alemão ganhou dos filhos— em Londres.
Lafargue se casou com uma das filhas de Marx e traduziu diversos de seus textos para o espanhol e para o francês
[7] O acima referido filme sobre Engels confirma-o entediado com as situações de trabalho, um mal necessário, e de outras fontes temos que sabia-se emprestador de última instância para a família Marx da qual foi parte querida desde o primeiro momento.
[8]  Pensamento: “...forma superior de matéria ...”, conceituação de Engels em “Dialética da Natureza”
[9] O ótimo filme “O jovem Marx” apresenta o início da colaboração de Marx e Engels e retrata algumas das dificuldades com credores e com a falta de dinheiro. Uma boa resenha online do filme está em:
https://gz.diarioliberdade.org/mundo/item/193181-o-jovem-karl-marx.html.