Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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sábado, 9 de novembro de 2013

De Arrimo a Estorvo

“...que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja a nossa própria substância.” (Simone de Beauvoir)



Dona Pandá foi visitar a amiga Bastiana que está fazendo as malas para uma grave mudança. Esteve por lá algumas horas e voltou silenciosa, não quis comer, nem andar com os cachorros. Tomou uma chuveirada e se retirou para seu quarto. Passou uma semana com meias palavras. Parecia estar trancada. Seu rosto ficou marcado por rugas novas, vincando sua expressão numa carranca feia, pura máscara de um sofrimento da alma. Agora, disse precisar escrever. Como é seu hábito, contou-me o quê e como quer escrever. Ela praticamente dita, mas sua paciência desta vez está pequenininha e foi logo embora, dizendo:
            - você sabe o que é para escrever, depois eu olho. –

Lá vamos nós nesta tentativa difícil. Não tenho certeza de que conseguirei dar o tom certo. Embora eu tenha sentido a tristeza imensa de Dona Pandá por sua amiga, há também uma revolta, uma raiva, uma impotência diante do inexorável. Pareceu-me que a Bastiana está com um sentimento diferente. Nela a tristeza tomou conta, não dando lugar a outros sentimentos. Dona Pandá teme sentimentos negativos, como descrença e perda da vontade de vida.

Bastiana acaba de fazer 70 anos. Sua preocupação com a saúde praticamente se resume ao esqueleto, é portadora de osteoporose. Tem uma vitalidade ignorante de preguiça. Desde os 17 anos é responsável por sua vida física, financeira, emocional e mental. Liberdade e privacidade são dois valores relevantes e defendidos com muito zelo. Reconhece que seus três casamentos tiveram os laços desatados, sobretudo, por ela, dando poucos créditos aos respectivos companheiros nas separações. Mora numa chácara que comprou há 17 anos. Transformou um terreno inóspito no lugar do seu retiro, onde convive com o que plantou em toda sua vida. Continua plantando, mas acha que seu tempo agora é mais de colheita. Cuida de seus cachorros, de plantas e escreve. As duas atividades – o cuidar e o criar – são colheitas do terreno preparado nesses anos por suas opções. Gosta e cultiva a solidão. No entanto, Bastiana me corrigiria, dizendo que gosta de estar só, mas não é solitária e quando sente vontade de papear com determinado amigo, rapidinho corre atrás do objeto de sua saudade. Cultiva algumas amizades antigas, preciosas. Poucos vêm visitá-la. Todos estão bem presentes, com intensa troca de mensagens e telefonemas. Há também, quando a estrada está intransitável para os carros urbanos dos amigos, alguns almoços no meio do caminho.

Dona Pandá é uma dessas amizades de muitos anos. Gosta de dizer que já comeu, pelo menos, dois sacos de sal junto com a amiga. Bastiana pediu demissão de seu último emprego e veio morar na chácara, convencendo Dona Pandá a fazer o mesmo. Tornaram-se vizinhas e parceiras em algumas atividades. Bastiana é escritora e ajuda a amiga em suas incursões literárias. O caminho inverso é feito mais na área da terra. Dona Pandá gosta de descobrir novos tratamentos para as plantas. Gosta mais ainda de repassar suas descobertas e a amiga-vizinha é sua principal receptora.

As duas amigas têm muitas afinidades, além de uma história de vida semelhante. Acham que Bastiana possui um diferencial privilegiado. Tem uma família muito especial. Suas irmãs, que moram nas terras goianas, são pessoas de qualidades excepcionais, unidas, solidárias, generosas. Além de ter o filho e a nora que pediu ao Universo. Dona Pandá confessa despudoradamente que, neste aspecto, inveja a amiga. Ambas são mulheres que batalharam muito pela liberdade. A vida que têm, hoje, é fruto dessas batalhas. Planejaram suas vidas para desfrutarem uma velhice tranquila no meio do mato, o lugar de origem. Ao se mudarem para suas chácaras, trabalharam duro para conseguir a emoção do cheguei ao meu lugar. Esta é a expressão que usam ao falar de suas moradas.

Dona Pandá encontrou sua amiga bem esquisita. Bastiana não estava de mau humor, mas tinha dificuldade de falar. Abria a boca e gaguejava. Começava a falar emboladamente, como se quisesse e, ao mesmo tempo, não contar algo grave. Ao final, como era de se esperar, tratava-se do filho. Ele chegara para o almoço semanal. Sentara-se à mesa, enquanto a própria dona da casa, gentilmente acompanhada da nora, apreciava o almoço. O rapaz começou, então, a se mostrar preocupado com a segurança da setentona. Disse que iria colar alguns pedaços de lixa na calçada ao redor da casa para evitar escorregões. Como ele é muito criativo, sobretudo quando se trata de desenhos e música, já estava bolando recortes que deixariam as calçadas bonitas. Depois outras preocupações foram explicitadas: as varandas precisavam ser reformadas, a escada demandava uma grade. Bastiana estava achando até engraçado tantos cuidados desferidos pelas sete dezenas de seus bem vividos anos. Estranhando o fato de não ser consultada, pensou, em determinado momento, como seria se resolvesse dar uma faxina na casa do filho.

O final do dia foi a frase que expressou a preocupação máxima do rapaz com a segurança da mãe. Ela deveria se mudar para junto das irmãs, retornar a Goiás. Bastiana enfatizou o desconforto de sua nora com todas as observações do marido. Quanto à sua própria emoção, teve dificuldades de expressá-la. Lembrou-se do pai que se sentia extremamente culpado por ter, seguindo o conselho médico, tirado o avô da fazenda onde ele morava. O avô viveu (?!) até os 90 anos na cidade. Não teve o enfarto vaticinado caso continuasse a trabalhar na fazenda, mas perdeu a memória, a alegria. Passou anos sentado, alheio à vida preservada.

Bastiana ficou surpresa por não ser compreendida em suas convicções, em sua maneira de viver e de valorar a vida. O sentimento maior é a tristeza e junto foi apresentada à solidão.

Dona Pandá se revoltou, ficou com muita raiva do inexorável. De um lado, a velhice com suas exigências, sua desarmonia entre o físico e o emocional-intelectual e do outro, a juventude desmemoriada, ignorante e presunçosa. Bastaria a lembrança honesta de uma época quando os cuidados com a fragilidade da idade eram dados com a observância da primazia emocional.

Já é desgastante para o idoso o enfrentar dos mais variados procedimentos da sociedade. Alguns, embora reconhecidamente necessários, não conseguem deixar de humilhar pela distinção negativa. Na fila do banco, os olhares e resmungos impacientes; na carteira de motorista, o aviso pleonástico de que se trata de maior de 65 e, em tantos outros lugares, onde a idade é vista com irritação e, muitas vezes, intolerância e preconceito. Os velhos, como as outras pessoas, não são todos iguais.

Neste instante, chegam atrás de mim, para ler este texto, as duas amigas. Bastiana, depois da leitura, sorri e, procurando minimizar o acontecido, explica que, curada a ressaca, está mesmo fazendo as malas. A acolhida das irmãs, quando lhes foi contada a possibilidade de sua ida para as terras goianas, foi tão gostosa, quanto estimulante. Acrescenta que, como só se lembra de seus 70 quando diante do espelho, estará mais atenta a eles.