Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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terça-feira, 27 de maio de 2014

O Spritzinc e Machado de Assis



Mauro Donato


O Spritzinc

A que velocidade deve-se ler? E a qual grau de facilidade deve obedecer um texto? Estes dois temas trouxeram alvoroço ao meio literário.

A novidade tecnológica fica por conta do Spritz. Como definir? Um cuspidor de palavras que subverte a maneira como lemos hoje. O leitor não mais corre os olhos pelas linhas e sim cada palavra de um texto pisca isoladamente na telinha que mais se parece com um dial de rádio. O programa promete acelerar seu ritmo de leitura pois, segundo os criadores, perdemos 80% do tempo apenas percorrendo a linha.

Com o Spritz, os olhos ficam parados e as palavras é que pulam na velocidade estipulada pelo usuário. Sim, há esse recurso para ajuste, medido em wpm (sigla em inglês para palavras por minuto).

Testei entre as velocidades 200 e 250. São confortáveis, porém não consegui imaginar-me lendo um livro inteiro daquela forma. Imagino ainda mais rápido, como a 700 palavras por minuto, o que tornaria possível ler aproximadamente 900 páginas em 5 horas. Deve deixar-nos sujeitos a convulsões. Para notícias e notas curtas, curtíssimas, talvez funcione. Há o risco de fazer sucesso na geração que iniciará a leitura com esse ou outros “aceleradores”. A geração millenium tem pressa de tudo.

A segunda polêmica ficou por conta das versões simplificadas das obras de Machado de Assis.

Tudo por conta do projeto da Patrícia Engel Secco (com apoio da Lei de Incentivo à Cultura), que visa, segundo a autora, uma compreensão “mais fácil” por parte dos alunos de ensino fundamental e médio de textos machadianos.

Se não é mais compreensível, se não é mais adequado, se não há mais nenhuma sintonia com os tempos atuais, por que então ainda é exigido? Isso diz muito mais sobre o sistema de ensino do que exatamente sobre literatura. Além de, na minha modesta opinião, dizer muito mais ainda sobre a capacidade dos professores. A simplificação não seria interessante para eles também? Mas isso é tema para outra discussão. Vamos em frente.

A ala progressista entende que venerar textos arcaicos é contraproducente. Que adaptar obras observando as declinações do idioma é na verdade um serviço, que palavras envelhecem, caducam. Para estes, a turma dos puristas não passa de objetos de cristaleira. Sorver um Machado de Assis que tenha atualizado o sistema operacional seria mais palatável.

Subestimar a inteligência e desestimular a curiosidade, a reflexão, é bom?

Se há um grau de dificuldade naquilo que se está lendo, qual o problema em fazer uma pesquisa mesmo que rápida? Melhor ainda se obrigado a levantar a bunda da cadeira e caminhar até a estante para apanhar dois ou três dicionários bem pesados para a consulta. Combateria adicionalmente o sedentarismo.

Não se trata de purismo. Apenas de respeito ao autor. Tampouco se trata de endossar que obras tão antigas, tidas como “clássicos”, permaneçam como obrigatórias em 2014. Não há como conquistar leitores dessa forma.

Se o idioma e as linguagens sofreram mutações, se os argumentos de obras mais antigas nada dizem ao leitor atual, que se escrevam peças novas. Isso fomentaria o mercado e a inclusão de novos autores que hoje moem no aspro para venderem seus livros. Para que distorcer um texto, sobretudo com autorização de quem? Já é de domínio público? Sim, mas com qual direito se interfere dessa maneira?

Submeter Machado de Assis ao minimalismo, ao reducionismo, não ajuda ninguém e ainda tira chance de publicação daqueles que escrevem no “idioma atual”. Até porque, o problema não se resume a repertório e vocabulário. Os temas dos clássicos pouco ou nada são atrativos para a juventude.

O entusiasmo por obras de maior complexidade vem, na maioria dos casos, com a maturidade. O leitor forma-se por si próprio. Ler não pode ser um processo penoso nem irrelevante. O bom leitor sabe que há obras adequadas para cada etapa da vida. Um livro estacionado há muito no fundo da estante pode repentinamente tornar-se um achado maravilhoso.

O desafio dos docentes em língua portuguesa reside numa melhor indicação de leitura, adequada a cada faixa etária. Perpetuar esse sistema, repito, diz muito mais sobre os professores. São eles leitores de fato, a ponto de poderem recomendar um autor novo? Simplificar Machado de Assis não o transforma num autor moderno nem atraente para alguém de 12 anos de idade. Apenas num texto mais pobre.

Ler em alta velocidade um texto facilitado e simplificado é um grande avanço para a humanidade ou estamos caminhando a passos para o emburrecimento?


Sobre o Autor: Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo.
Nossa fonte: DCM

sábado, 24 de maio de 2014

“Não há possibilidade de produzir agroecologia plena onde se predomina o grande capital”


Por Alan Tygel
Da Página do MST
Foto: Fábio Caffé

Durante o III Encontro Nacional de Agroecologia, realizado entre os dias 16 e 19 de maio de 2014, diversos camponeses e camponesas do MST estiveram em Juazeiro (BA) para trocar e compartilhar saberes. A agroecologia foi a força que uniu mais de 2000 pessoas durante os 4 dias de evento, nos quais houve feira, debates, filmes, atividades culturais e, sobretudo, muita luta.

Chicão, coordenador do Setor de Produção do MST, avalia que o momento político é de união na luta pela agroecologia: “Eu sinceramente não acredito que haja grandes mudanças, seja com os atuais candidatos hoje à presidência da república, ou com outros que virão. As mudanças foram feitas pelo povo, nunca vieram da burocracia, dos aparelhos do Estado. O fator mais importante hoje é o povo se unir, se unificar em tornos de propostas claras e ir pra rua defender essas ideias.”
Para ele, agroecologia é mais do que agricultura sem venenos: “É outra filosofia de
vida, não é a filosofia do grande capital aplicada na agricultura, na indústria e no sistema financeiro. ”

Nesta entrevista, Chicão afirma que a agroecologia não será construída somente pelo povo do campo: “Ela tem que ser um sistema que se constrói com a sociedade inteira. Os agrotóxicos não são um problema exclusivo dos camponeses, é um problema de toda a sociedade, porque todo mundo se alimenta. Por isso é que nós precisamos unir as forças para ir construindo um novo sistema de produção, um novo sistema de vida que não seja baseado puramente na criação e acumulação de capital.

O que é que o MST veio trazer ao III Encontro Nacional de Agroecologia?
Aqui se configura como um local aonde a gente aprende muito. Nós trouxemos o nosso aprendizado que nós temos nos assentamentos, as experiências que nós temos de agroecologia sendo desenvolvidas, nossos cursos de formação em agroecologia e assim todo o universo que nós temos trabalhado dentro dos nossos assentamentos na perspectiva de ter um sistema diferente de produção através da agroecologia e produção orgânica.

E daqui a gente também leva muito conhecimento das organizações que estão aqui, em diferentes regiões do país, que desenvolvem em outros biomas, então aqui há obviamente uma grande diversidade, e é um espaço muito grande e interessantíssimo de ponto de vista de aprendizado. De aprender, de conhecer de ver que o mundo não é o assentamento, que não é o estado, não é o bioma. Então aqui é uma possibilidade de ampliar os horizontes, de conhecer e aprender, acho que aqui é um espaço excelente nessa perspectiva.

O agronegócio diz que somos loucos e que queremos matar o mundo de fome. É possível alimentar a humanidade com produção de alimentos agroecológicos?
Eu não tenho dúvida. Nós já desenvolvemos algumas atividades agroecológicas que já indicam isso. Os nossos adversários sempre falam isso, porque eles se acham os únicos. São as contradições que movem o mundo, então os próprio latifúndio criou essa contradição, e ela moveu um novo tipo de agricultura, que se faz nos assentamentos, nas áreas indígenas, quilombolas, ribeirinhos, assim por diante. Nós temos por exemplo assentamentos que são coletivos que têm grande produção de arroz. Produzimos esse ano no Rio Grande do Sul mais de 300.000 toneladas de arroz agroecológico. Mas a gente não pode somente estar fixado na produção do grão.

Esse processo está fazendo com que se garanta a água de qualidade na região da Grande Porto Alegre. Antes, os fazendeiros do agronegócio aplicavam venenos em grandes quantidades na produção de arroz e nós entramos com a produção agroecológica, na qual tiramos um produto, que é o arroz agroecológico, e entregamos uma água de boa qualidade para a população. Acho que esse é o grande legado que os assentamentos do MST estão entregando para as gerações futuras. É importante produzir o produto agroecológico, mas o mais importante de tudo é deixar para as gerações futuras esse conhecimento, e a terra totalmente descontaminada de agrotóxicos que o agronegócio deixa.

Além do não uso de agrotóxicos, quais as outras dimensões da agroecologia?
Nós temos um conceito de agroecologia que é muito amplo. A agroecologia é uma ciência, um conhecimento dos povos tradicionais, e também um conhecimento científico. Nós entendemos que não há um avanço da agroecologia sem pensar na ciência como um todo.

Entendemos também que a agroecologia deve respeitar todo o conhecimento histórico da humanidade. Deve também ser um instrumento de luta política, porque entendemos que o problema não é puramente tecnológico. A agroecologia define um conceito de vida. Que é você viver dignamente, óbvio, e também respeitando o meio ambiente. E fazendo disso uma luta para construir uma sociedade diferente, porque não há possibilidade de produzir agroecologia plena num país onde predomina o grande capital.

Tudo que estamos fazendo é o novo que está surgindo dentro do velho. Esse sistema do agronegócio é um modelo velho que está caindo de podre. E surge o novo, que é a agroecologia. Esse é o elemento importante pra sociedade brasileira, para o mundo todo, que está surgindo o novo. Por isso, o III ENA está acontecendo num momento riquíssimo, do surgimento desse novo, de anunciar esse novo, de que as pessoas tenham conhecimento de como esse novo vai se construindo, e as experiências nos dão um ponto de partida, mas elas não podem parar naquilo que nós estamos fazendo.





Temos que avançar no ponto vista político, agroecológico, filosófico, assim por diante, é outra filosofia de vida, não é a filosofia do grande capital aplicada na agricultura, na indústria e no sistema financeiro.

Falando em construção do novo, como é o processo de transição?

A transição é um momento muito importante, porque ela tem muito a ver com o método que a gente vai trabalhando. Eu sempre digo que a transição é um processo que não dá pra você definir um período de um ano, dois anos, três anos, ela é um processo, onde você construindo, educando, e vai aprendendo.

A principal questão do método é quando começam a aparecer os resultados do ponto de vista da filosofia, da economia, do aprendizado, no qual você vai adquirindo conhecimento. Porque não se pode fazer o que faz o agronegócio, que transfere um pacote tecnológico. Então o período de transição é um período muito importante em função de você fazer a descoberta de muitos conhecimentos.

E acho que aqui está colocada uma questão, nesse período de transição. Não podemos colocar um período definido, porque a agricultura não é como uma indústria, que você coloca matéria prima e sai o produto na frente agroindustrializado.

Vejamos o seguinte: no Nordeste, são três anos de seca, então nesses três anos você teve pouca experiência. Você não teve como ficar conhecendo, buscando resultados. Por isso não pode ser uma metodologia que você aplica em qualquer bioma, em qualquer região.

Nosso país é um continente, de extensão muito grande, e a agroecologia tem que ter essa riqueza, de observar as regiões, os sistemas que se desenvolve ali, os conhecimentos que tem aí, pra você fazer esse processo de transição. Então o processo de transição pode ser totalmente diferente do sul, sudeste, pro centro-oeste, mesmo dentro da própria região nós temos muito microclimas, muitos tipos de solo diferentes, aonde você desenvolve técnicas diferentes, então a agroecologia é essa riqueza de conhecimento. Não é um pacote tecnológico que a gente pensa e elabora e você aplica no país inteiro.

As atividades relacionadas à saúde estão chamando atenção aqui no ENA. Já há uma percepção geral dos problemas na saúde causados pelos agrotóxicos?

O conceito de agroecologia que está sendo elaborado, e ele não está pronto, cada organização pode ir criando seu conceito, vai dando essa diversidade. E entendemos que o problema não é puramente técnico. Ele é também técnico, obviamente, mas ele é essencialmente político, essencialmente filosófico. Então há alguns assuntos que chamam a atenção, e a saúde é uma das questões que chama muita atenção, porque ela é um assunto comum a todos. E a aplicação do agrotóxico na agricultura sempre remete a um problema de saúde, um problema ambiental, então é um problema que é de todos.

E isso é um fator interessante no processo do método que a gente vai fazendo a transição. Porque muitos se sensibilizam pelo econômico, outros se sensibilizam pelo lado ambiental, outros se sensibilizam pelo alimento, e outros pela saúde. Por isso que não pode ter um método único para tudo. Cada um tem suas motivações para entrar a agroecologia, para defender esse tema, tem uns que entram puramente pela filosofia.

Então acho que é interessante o ENA porque ele tem essa diversidade que busca a organização das mulheres, do indígenas, dos negros, dos pequenos agricultores, que é esse universo que existe nas regiões, nos estados, nos biomas. A agroecologia tem então essa riqueza de conhecimento e na transição acho que as pessoas estão junto.

Porque há muitas vezes o conceito de que o homem não faz parte da natureza, a humanidade não faz parte da natureza, se analisa o ser humano fora da natureza. E não é verdade. Então, se nós transformamos a natureza, nós nos transformamos junto com ela. E se nos a envenenamos, nós nos envenenamos junto com ela. O agronegócio, que é o que hegemoniza esse modelo hoje, está envenenando não só a natureza, mas envenenando a humanidade como um todo.

Como você avalia o momento político em que acontece o III ENA?
O modelo de agricultura que está colocado é o que se desenvolve no Brasil há mais de 500 anos, baseado na mão de obra primeiro escrava, e depois no subemprego, e também no grande latifúndio. Hoje no governo e na sociedade essas forças estão presentes, e elas contrapõem a população que quer fazer mudanças e a que quer continuar o velho. Dentro do governo, essas forças políticas estão presentes, nessa aliança que está colocada hoje entre os partidos que dirigem o Estado brasileiro.

Acredito que assim como em todas as revoluções, não se faz revolução sem o povo. Simplificando, não se faz feijoada sem feijão. Então há também uma expectativa da nossa parte de que o governo faça pra gente. É óbvio que seria mais fácil, que o governo tivesse um posicionamento mais alinhado. Mas eu acho que haveria menos participação social. Não quero justificar a posição do governo em favor do agronegócio, mas quero dizer que é importante a participação social. O governo poderia ter feito mais? Obviamente poderia ter feito um universo de outras coisas mais importantes do que o que foi feito. Isso é uma verdade, e ninguém pode negar.

Agora ninguém pode negar que houve mudanças também. Podemos contar a história da sociedade brasileira em antes de 2003 e depois de 2003. Então eu creio que esse momento é muito importante no sentido de que a sociedade tem que pressionar pra esse governo dar um passo a frente. E esse passo a frente não pode ser pela direita. Esse passo à frente que ser dado à esquerda. E isso significa assumir posições que são difíceis de assumir. O povo precisa ir pra rua pra defender essas ideias da agroecologia, não pode ficar restrita às coisas internas, aos posicionamentos. Tem que ir pra rua pra defender isso. Todas as vitórias que houve do povo sempre foi dessa forma.

Eu sinceramente não acredito que haja grandes mudanças, seja com os atuais candidatos hoje à presidência da república, ou com outros que virão. As mudanças foram feitas pelo povo, nunca vieram da burocracia, dos aparelhos do Estado. As mudanças sempre virão pela força do povo. O fator mais importante hoje é o povo se unir, se unificar em tornos de propostas claras e ir pra rua defender essas ideias.

Tivemos neste ano o VI Congresso do MST, agora o III ENA, e mais adiante a Jornada de Agroecologia. A mobilização em favor da agroecologia está crescendo?Como se diz na filosofia, tudo muda. Isso é o fundamental que a gente precisa entender. Nós estávamos vivendo um período de descenso da mobilização social. Embora no ano passado tenha havido diversas mobilizações, umas mais espontâneas, outras mais organizadas. Não há dúvidas de que, na medida em que esse processo de industrialização, de domínio do grande capital aumenta, ele mesmo cria as condições para um novo ascenso da luta de massas.

Então o ENA, o nosso congresso do MST, e outras mobilizações que estão acontecendo demonstram que o povo está querendo fazer luta, tá querendo mudança, tá querendo dar um passo à frente, ou dar dois passos à frente. O importante não é a quantidade de pessoas que se mobiliza. O mais importante é a proposta e a firmeza daqueles que se mobilizam para conquistá-la. Toda sociedade nunca vai se mobilizar, sempre vai ser uma parte dela. E é essa parte que se mobiliza hoje é a parte que está mais organizada na sociedade, do ponto de vista da luta de classes.

Qual é a síntese que a gente tira do ENA?

Esse sistema que estamos lutando para construir não se constrói só com os camponeses. Ele tem que ser um sistema que se constrói com a sociedade inteira. Os agrotóxicos não são um problema exclusivo dos camponeses, é um problema de toda a sociedade, porque todo mundo se alimenta. Por isso é que nós precisamos unir as forças para ir construindo um novo sistema de produção, um novo sistema de vida que não seja baseado puramente na criação e acumulação de capital. Creio que a sociedade está disposta a fazer isso. A grande questão é como ela se articula e se organiza em torno desse processo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

O estranho Mujica no desconcertante Uruguai


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Um escritor espanhol acompanha insólita rotina do presidente e opina: ela só seria possível em seu país particular, que teima em desafiar lógicas do “bom-senso”
Por Juan José Millás | Tradução: Cibelih Hespanhol
[Primeira de duas partes da entrevista. Breve, em "Outras Palavras", a conversa completa com Mujica]
A tempestade se anunciava, em tal estado de exaltação, que mais se parecia às sensações que precedem as piores enxaquecas. Em pleno meio dia, toda a atmosfera tornava-se escura (como se Deus tivesse fechado os olhos), e se levantava por todos os cantos um ar estranho, de tonalidades psíquicas, produtor de uma euforia gratuita. Cada greta das paredes adquiria uma relevância misteriosa, como se em seu interior, ao invés de certamente viver uma barata, vivesse uma libélula.

Logo o céu desabava, com a mesma violência com a qual a polícia, à sua maneira, manda abaixo a porta de uma casa de narcotraficantes; e a água começava a cair em grandes jorros. Em quinze minutos, os edifícios já estavam ensopados como uma esponja recém-tirada da água e colocada sobre a borda de uma banheira. Crianças brincavam entre as poças de água, enquanto a realidade permanecia suspensa.
O clima montevideano sofria de transtornos de caráter. No quarto do hotel, onde a janela se abria para um pátio de luzes, era natural sentir-se como um desses personagens de Onetti que, nus sobre a cama, sem parar de fumar, escutam obsessivamente os ruídos vindos do exterior, enquanto tentam compor em sua cabeça uma imagem do mundo.
O mundo, a princípio, eram as ruas que se desdobravam até este estranhíssimo lugar, onde se encontram as águas do Rio Prata com as do Oceano Atlântico, duas monstruosidades naturais a copular sem nenhuma pausa. Às vezes o mar penetra no rio, às vezes é o rio quem se introduz no mar – depende dos ventos, das marés, das chuvas, dos efeitos das mudanças climáticas. Esta sobreposição afeta a fauna: peixes de mar que se precipitam, de súbito, na água doce, e peixes de rio que se encontram de pronto em toda a dimensão do mar salgado.
- Morrem os peixes quando atravessam a fronteira? – perguntei a um pescador.
- Ou saem a tempo, ou se adaptam – disse ele.
- Mas morrem, por vezes? – insisti, em uma preocupação íntima.
- Acredito que ou saem ou se adaptam – insistiu ele também.
O País semanal havia nos enviado ao outro lado do mundo para que escrevêssemos uma reportagem, de modo que ao cair da tarde o fotógrafo Jordi Socías e eu saímos a caminhar, tomando uma das tantas ruas que davam até o estuário.
Já estávamos andando havia uma hora, quando vimos sair um sujeito com uma sacola de uma loja de delicatessen.
- Vendem bons vinhos aí? – perguntou Socías.
- Muitos bons – respondeu o homem – e um pão excelente. Mas já estão fechando.
Era um sujeito de classe alta, aberto a conversas, de modo que perguntamos a ele se estávamos muito longe do mercado.
- Não vá até lá – disse ele – a esta hora estará às moscas.
- E se tomarmos o caminho pela avenida?
- Nem pensar, está fechada também. Subam por esta rua, e a quatrocentos metros encontraram alguns bares, como os de Madrid ou Paris.
- Mas nós não queremos ver Madrid ou Paris. Queremos ver Montevidéu. – disse Socías.
O sujeito nos espiou como se estivéssemos loucos, e se afastou cuidadosamente de nós dois, que continuamos a caminhar na direção proibida. Realmente, estava mesmo às moscas.
- É que aqui você tem que vir pela manhã. – nos avisaram no mercado.
Há lugares de Montevidéu que só são Montevidéu em certos horários: quando é manhã, ou quando é a hora de comer. Logo se transformam em outra cidade, na qual todos os dias são sempre uma tarde de domingo, como acontece na vida de algumas pessoas: na de Felisberto Hernandéz, por exemplo, escritor uruguaio enormemente infeliz, que havíamos lido antes de viajar.
Montevidéu era um estado de espírito.
Retornei ao quarto de hotel já em estado líquido. Tirei a roupa – exceto as meias (porque tenho a superstição de que me mantêm os pés unidos às pernas), enchi a banheira de água fria, entrei nela, acendi um cigarro e abri um romance de Onetti justo no instante em que o personagem dizia: “eu sou um homem solitário, fumando em um lugar qualquer da cidade; a noite me rodeia, vai desdobrando-se como um rito, gradualmente, e nada tenho a ver com ela”.
Larguei o livro em um gesto de defesa. A temperatura do meu corpo já não era febril. Lembrei-me do sujeito que pretendia que, em Montevidéu, ao invés de vermos Montevidéu, víssemos Madrid ou Paris, e então me veio à cabeça uma pergunta: “Uruguai é um país europeu ou latino-americano?”. Era como se eu perguntasse se as águas, no estuário do Rio da Prata, eram mais fluviais que marítimas ou mais marítimas que fluviais.
O aconselhável seria erguer o dedo e levá-lo a boca, comprovando assim se pertencia ou não ao sal. Montevidéu conhecia com intimidade os romances aflitos de Onetti, tanto quanto a prosa indócil de Levrero.
* * *
O que acabo de contar, na verdade, aconteceu em outro momento, mas aqui foi lançado desta forma, não sei por quê. Digamos que seja pela mudança de horário. O que realmente aconteceu tão logo chegamos, com a maleta já disposta sobre a cama do quarto do hotel, foi o seguinte: tocou o telefone, e quem nos chamava era o secretário de comunicação do presidente do Uruguai.
- Às três e meia – disse ele – chegará um carro para pegá-los e levá-los até a chácara de Mujica.
Olhei o relógio: era meio dia.
- Mas havíamos combinado que o encontro seria amanhã – observei, com cautela.
- Amanhã não pode ser – concluiu o secretário.
Desliguei e avisei o fotógrafo. Socías e eu éramos dois senhores já velhos, que nos arrastamos por treze horas de avião, um fuso horário e um salto abismal do inverno espanhol até o verão uruguaio. Estávamos animados, sim, mas justamente por nos sentirmos tão bem é que começávamos a suspeitar do nosso equilíbrio mental.
Quando o carro chegou, chovia com uma inclemência extraordinária – como se quisessem machucar alguém com aquelas águas. E apesar de ainda restarem cinco ou seis horas de luz (de luz escura) porque em Montevidéu, em fevereiro, anoitece tarde, as ruas já se haviam apagado como os corredores de um escritório em um dia de feriado.
O automóvel seguiu navegando. Alcançamos uma zona rural. A chuva havia parado um pouco, e através dos vidros molhados, em meio às terras de cultivos, víamos aqui ou ali, distribuídos de forma irregular, galpões que talvez fossem casas, casas que talvez fossem galpões. E cachorros, muitos deles, que vinham correndo para saudar o carro.
Havia galinhas, também. Neste instante, apareceu no meio do caminho um cachorro morto que, tão logo nos aproximamos, mostrou-se estar vivo. Ainda assim, custou a sair da direção do carro, como se não acreditasse que este realmente existisse, ou tampouco se importasse. Foi quando o condutor parou o automóvel em uma encruzilhada.
- É aqui – disse.
Havíamos chegado em Rincón del Cerro. Descemos do carro e vimos, no meio do campo, uma guarita de vigilância, de estética semelhante à dos banheiros portáteis – o que conferia à paisagem certo ar surreal. E ali mesmo, à direita, um pouco oculta pela vegetação, nos apontaram a casa de José Mujica, o presidente da República Oriental do Uruguai. Diziam que a casa era muito modesta. Mentira. É pobre. Poderíamos dizer que é como um barracão confortável, com telhado de zinco, em cuja porta nos esperava este ancião que já se tornou uma espécie de moda em seu país. Trajava uma calça desgastada e uma camisa azul.
- Senhor presidente – disse, estendendo-lhe a mão.
- Fora, Manuela! – gritou ele a uma cachorra de três patas, que já havia se adiantado a nos dar as boas vindas.
José Mujica Cordano, o dono da cachorra aleijada, contava 80 anos – quinze dos quais passou preso, por pertencer ao Movimento de Liberação Nacional Tupamaros. Possui em seu currículo de guerrilheiro duas fugas e, em seu corpo, seis feridas de bala. Detido pela última vez em 1972, não voltaria a ver a luz do dia até 1985. Entrou, portanto, com 37 anos e saiu com 50. Durante este tempo, conheceu no cárcere da ditadura vergonhas das mais terríveis. Desnudo, com as mãos e os pés atados, aplicavam-lhe choques nas áreas genitais e na língua. O aguilhão elétrico era um dos instrumentos preferidos pelos militares, mas não era o único, nem o mais sofisticado. Outra prática também alcançou sua fama, consistindo-se em obrigar o preso a caminhar pela estrutura externa das janelas, do sexto piso, por exemplo, com uma carapuça tapando a cabeça, fazendo-o sentir apenas o vazio por baixo de seus pés. Havia também a “banheira”, o afogamento com panos embebecidos de água, as simples surras, e, enfim, a fome, o isolamento, os cachorros… Cada prisão tinha a sua especialidade.
Segundo relatado por Walter Pernas, em Comandante Facundo, o então presidente do Uruguai, que havia perdido os dentes devido às surras que recebia diariamente, chegou a comer papel higiênico e sabão – além das moscas que chegavam até sua cela (com frequência, um simples buraco), atraídas pelo forte cheio de fezes que exalava do preso. Havia chupado, com suas gengivas desnudas, em busca de um pouco de cálcio, os ossos que jogavam os carcereiros depois que os cachorros já os haviam devorado. Bebeu de sua própria urina, dormiu durante anos sobre um chão de cimento, exposto a frios intoleráveis e calores asfixiantes. Havia passado semanas ou meses sem ver a luz, anos sem conversar com ninguém que não fossem os ratos ou os insetos que conviviam com ele ou faziam-lhe visitas. Perdeu a noção do espaço e do tempo, delirou, emagreceu até ser capaz de contar cada um dos ossos de seu esqueleto. Defecava-se e mijava-se constantemente, pois, fruto das surras, das balas e da alimentação, sofria de problemas renais e digestivos.
Conta Walter Pernas que ele já não podia caminhar erguido, como um homem, e nos momentos de maior deterioração física e psíquica os militares levavam seus filhos até a prisão para que vissem a besta e a insultassem. Viajou, enfim, várias vezes até o limite da morte, de onde regressava alucinado, com os olhos desvairados e praticamente sem massa muscular sobre a qual se sustentar. Levavam-no de uma prisão a outra, de um buraco a outro, como um saco de mercadoria suja, jogando-o sem cerimônias sobre o caminhão militar e de lá o tirando a pontapés e socos.
Conhecedores de sua diarreia crônica e seus problemas urinários, os carcereiros não prestavam atenção às suas súplicas para usar o banheiro. Mas, através de sua própria constância, e da de sua mãe, conseguiu com o passar dos anos que o deixassem possuir um urinol do qual não se separava, e que se converteu, com o tempo, no símbolo de uma pequena vitória sobre seus sequestradores. Abandonou o cárcere abraçado a ele, já convertido em um vaso de flores. Apenas quatro dias após sua soltura, pronunciou um discurso político no qual era impossível encontrar qualquer vestígio de ressentimento. A natureza, disse então, pôs nossos olhos na frente do rosto, para que sempre possamos olhar adiante.
- Fora, Manuela! – voltou a gritar Pepe Mujica à cachorra de três patas.
Manuela foi embora e entramos na casa, que cheirava a umidade.
- O Uruguai está se tropicalizando – disse Mujica – não sei como ainda pode ter gente negando a mudança climática.
Sentamo-nos no “hall” da entrada, que também era a sala de onde se distribuíam os outros cômodos da casa (um dormitório, um banheiro e a cozinha: quarenta ou quarenta e cinco metros no total). E percebi com horror que ele esperava que eu o entrevistasse. Dirigi-me a ele, então.
À primeira de minhas perguntas me respondeu que os governantes já não mandavam nada.
- Quem manda, então? – perguntei.
- Os grandes poderes financeiros. Já não é o cachorro que abana a cauda, mas a cauda que balança o cachorro.
- E você diz isso aos chefes de Estado e aos presidentes com os quais se reúne?
- Sim.
- E o que eles dizem?
- Me dão razão, mas olham para o outro lado. Cultivam a ilusão de voltar a serem presidentes, não se atrevem a enfrentar o inimigo. Dissimulam, mas a verdade é que somos marionetes.
- E como pôde governar por quase cinco anos sendo consciente destas limitações?
- Este é um paisinho muito especial. Mais de 50% do movimento bancário está na mão do Estado. Os uruguaios nos ensinam que, quando temos um peso, devemos ir até o Banco da República, que é o banco do Estado. E não que nos trate bem, mas temos confiança nele. O sistema bancário privado é débil.
- Todos os setores estratégicos do Uruguai estão nacionalizados.
- Não ponha a culpa em mim. Quando eu nasci já estava tudo assim. É uma construção da história.
Enquanto conversávamos, e como a porta havia ficado aberta, devido ao calor, entra Manuela, entra um galgo coxo, entra outro cachorro de raça indefinida, e todos nos miram, uivam, pedem carícias, creio que entra também um gato e se enrosca entre minhas pernas, as moscas zumbem excitadas… Lá fora, junto ao barulho da chuva se escuta, de vez em quando, uma profusão de cantos de galos. Observo Mujica, e me parece que vai e vem dentro de si mesmo, como se tivesse uma gangorra dentro da sua cabeça. Quando regressa, se junta ao mundo com uma pitada de cortesia e outra de malícia. Pergunto a mim mesmo que interesse podemos despertar nele, este par de espanhóis dentro de sua casa. Pergunto-me também se suas respostas são tão mecânicas como minhas perguntas. Ele diz que o Uruguai é um país menos rico, que adormeceu a partir da década de 60, depois de ser campeão do mundo no Maracanã.
- Cinquenta anos de nostalgia – acrescenta.
Diz que se burocratizaram, que encheram de gente as propriedades do Estado, que tinham um teatro (o Solís) com um empregado para subir o telão e outro para baixá-lo. Diz que ainda tem um problema com a burocracia estatal. Reconhece que os sindicatos dos funcionários, muito poderosos, lhe torceram um pouco o braço. Diz que tem paciência, que é preciso seguir lutando e semeando, e que já pensou muito, pois no cárcere tinha bastante tempo para pensar, e aprendeu que tudo muda, mas sempre devagar.
Diz que quando jovem andava sempre “muito apressado”, que passou entre 25 e 30 anos de sua vida, a metade preso, a metade mais ou menos livre, ou “prisioneiro de meus próprios esquemas”. Diz que há 20 ou 30 anos atrás era possível discutir se havia guerras justas ou não, e que justas eram aquelas que significavam um processo de liberação nacional ou tentativa de liberação de nações que se sentiam submetidas, mas que hoje, do jeito que estão as coisas, todas as guerras são para que os mais fracos sofram ainda mais. Diz que é preciso tratar de mudar as coisas através da paz, que é preciso levar a cabo políticas de Estado e estas são as em que, a partir de posições distintas, buscam-se pontos de acordo. Diz que têm aparecido problemas que nenhum país pode resolver por si mesmo, que ou governamos a globalização ou a globalização governará a todos nós.
Diz que a democracia e o socialismo são compatíveis, mas com a condição de que um não engula o outro. Diz que o que mais importa destacar de seu mandato é a luta contra a pobreza e a indigência, e o crescente clima de estabilidade política e confiança que vem atraindo os investimentos estrangeiros. Pergunta se queremos um uísque, diz que não teremos outro remédio senão voltar à economia produtiva, e que neste terreno o Uruguai está muito bem situado, pois tem uma excelente produção de lácteos, de carne, de cereais. Diz que produzem trigo, soja, que exportam arroz, que são bons vendedores de carne de vaca, que exportam peixes pois comem muito pouco, que possuem um mar precioso mas têm vivido de costas para ele já que são descendentes de galegos. Diz que fala muito com os chineses, que são seu principal cliente, que compram toda sua soja e estão aumentando sua presença, que nas campanhas eleitorais as bandeiras são todas chinesas. Diz que o problema da Europa é ter-se descuidado da economia produtiva, subordinando-a a engrenagem financeira, e daí a imagem da cauda que move o cachorro, quando o importante é o cachorro…
Vem-me à cabeça que o secretário de comunicação nos disse que teríamos uma hora ou uma hora e meia, e que Jordi Socías também precisa de um tempo para tirar as fotos. Então sou invadido por um gesto de impotência, apago o cigarro, e digo a Mujica, ao presidente do Uruguai, ao Pepe, como o chamam:
- Olha, eu não sei fazer entrevistas, não sei fazer isso que estou fazendo.
Mujica se retira um momento até a gangorra que tem dentro de si (e fecham-se um pouco os seus olhos), volta (abrindo-os), e me observa através das fendas pelas quais observa o mundo, como se ainda continuasse dentro de uma célula, como se o corpo todo fosse uma célula e os olhos aquele olho mágico das portas.
- O que eu sei – continuei – é contar o que me acontece. Se o senhor me permitir vir tomar café da manhã em sua casa, te acompanhar até o trabalho, ver como se move, como age, enfim, então eu contaria tudo isso…
Como a situação, aparentemente, tornou-se um pouco difícil (afinal nem Mujica nem seu secretário de comunicação poderiam entender que enviaram a eles, do outro lado do mundo, um sujeito que não sabe fazer entrevistas), interveio Socías:
- O que Mirás quer dizer é que tudo o que ele saber fazer é contar histórias.
- Vamos tomar um trago – conclui Mujica.
E vamos até a cozinha, onde nos serve um uísque. Jordi começa a fazer as fotos. Não parece, de forma alguma, que estamos com um presidente ou algo parecido. Então me lembro de que este homem doa 87% de seu salário a um projeto de moradias para pobres, e pergunto a ele se ainda lhe resta dinheiro suficiente para viver. Ele me diz que sim, e que ele e sua senhora, depois de se juntarem ao partido, ainda possuem 45000 pesos – uns dois mil euros.
Nota da tradutora: uns seis mil reais.
Nossa fonte:Outas Palavras

terça-feira, 20 de maio de 2014

"Dia D" do Grito da Terra contará com mobilizações em todo o país

Nesta terça-feira (20), é o “Dia D” do Grito da Terra Brasil. A 20ª edição da maior ação de massa dos trabalhadores rurais contará com uma estratégia de mobilização diferenciada. Ao invés de realizar uma marcha na capital federal, serão realizados atos em todo o país, mobilizando entre 40 e 50 mil agricultores em todas as ações.



ContagCerca de 50 mil agricultores devem participar do Grito da Terra em todo o país

No entanto, as negociações com o governo federal continuam. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) coordena uma Comissão Nacional de Negociação em Brasília, com cerca de 150 pessoas, entre elas representantes das 27 Federações Estaduais de Trabalhadores na Agricultura (Fetags).

Nesta segunda-feira (19), foi realizada uma audiência com a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Ideli Salvatti e negociações com áreas técnicas de alguns ministérios. A presidenta Dilma Rousseff deve receber a comissão para dar resposta à pauta de reivindicações do 20º Grito da Terra Brasil entre 20 e 22 de maio. Enquanto isso, os trabalhadores rurais seguem mobilizados.

“Esse é o 20º Grito da Terra Brasil, realizado ainda nas comemorações dos 50 anos da Contag e no Ano Internacional da Agricultura Familiar. Portanto, esperamos avançar ainda mais, coroando essa história de lutas e conquistas para o campo”, acredita Alberto Broch, presidente da Contag.

Pauta

A pauta de reivindicações, entregue à presidenta Dilma Rousseff em 3 de abril, conta com 23 pontos centrais, que tratam da reforma agrária, fortalecimento da agricultura familiar, meio ambiente, juventude e sucessão rural, assalariamento rural, Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), políticas sociais, relações internacionais e organização e enquadramento sindical.

Ao todo são mais de 300 reivindicações, entre elas: assentamento de 150 mil famílias; e um montante de R$ 51,4 bilhões para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar, sendo R$ 30 bilhões para crédito de investimento e custeio do Pronaf e R$ 21,4 para as demais políticas e programas.

Fonte: CTB

sábado, 17 de maio de 2014

Gonçalo Tavares: a literatura para percorrer o verso

Ao lançar no Brasil novo livro, “Matteo perdeu o emprego”, escritor português aposta na escrita como meio de revelar impasses e intervir na cidade 
Por Bruno Lorenzatto
“Qualquer hábito, qualquer repetição de um ato por mais absurdo que seja,
rapidamente é absorvido: o excepcional transforma-se em poucas semanas;
em certas circunstâncias bastam dias para que o monstruoso
e o informe se faça normalidade e hábito.
No limite: fato que não se dá atenção, paisagem.”
Gonçalo M. Tavares, leitor de Jorge Luis Borges
Desde sua primeira publicação, Livro da dança (2001), o escritor português Gonçalo M. Tavares tem se destacado na literatura contemporânea. Seus procedimentos são múltiplos; transita com facilidade entre o ensaio, a poesia e a prosa, criando ressonâncias entre literatura e filosofia. Hoje o autor possui 30 livros publicados e obras traduzidas para mais de 30 línguas, em 46 países. José Saramago, no discuso de atribuição de um prêmio literário a Tavares em 2004, disse: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!”
Seu estilo assim poderia ser descrito: o mínimo de palavras produzindo o máximo de efeito estético – escassez de signos que engendra excesso de sentidos. Uma bomba prestes a explodir ou o oposto: um destroço. O que resta depois da explosão, matéria despedaçada e enigmática que fascina. A destruição de uma realidade e a construção de outra possível.
Elaborar um “mapa da desordem” – aquela que permanece sob as diversas ordens já pensadas (cartografar a desordem é sempre criar uma ordem possível). Mudar a velocidade com que se olha ao redor. Eis algumas definições da literatura, segundo Gonçalo Tavares. “A literatura é perversão”, diz o escritor. Perversão no sentido de que o gesto literário significa percorrer o verso, o lado contrário das coisas: fazer ver justamente aquilo que não está à mostra.
Assim, a literatura pressupõe uma crítica dos lugares-comuns e do pensamento bem-estabelecido. Por trás das evidências e dos consensos, ela descobre problemas e impasses. Diz respeito também à política, mas não no sentido tradicional. Para o autor português, “a literatura deve interferir na política através do aumento da lucidez individual das pessoas. Pessoalmente, não me interessa uma política partidária, mas uma política no sentido de intervenção na cidade, na pólis, na forma como os homens vivem, e penso que aí a literatura é essencial, por ser o espaço da reflexão, de uma certa distância em relação aos acontecimentos e às circunstâncias do mundo.*”
Em Matteo perdeu o emprego (2013), último livro de Tavares publicado no Brasil, o alfabeto aparece como sistema de classificação cuja lógica é absurda.
A história começa com Aaronson e quase termina com Matteo (pois há ainda Nedermeyer), entre eles personagens que são apresentadas por ordem alfabética. Um critério simples, mas que nada pode ordenar de forma coerente dada sua arbitrariedade. Após ler o posfácio do livro – belo ensaio que vem como espécie de suplemento à história, escrito pelo próprio Gonçalo – dá-se conta de que a ficção faz ver algo de absurdo no mundo real. É preciso então fazer um recuo.
No conto “O idioma analítico de John Wilkins”, de Jorge Luis Borges, descobrimos uma impensável enciclopédia chinesa em que os animais são classificados do seguinte modo: “(a) pertencentes ao Imperador; (b) embalsamados; (c) amestrados; (d) leitões; (e) sereias; (f) fabulosos; (g) cães vira-latas; (h) os que estão incluídos nesta classificação; (i) os que se agitam feito loucos; (j) inumeráveis; (k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo; (l) et cetera; (m) os que acabaram de quebrar o vaso; (n) os que de longe parecem moscas.” Uma taxonomia que desconcerta por sua impossibilidade, pelo fracasso lógico que a estabelece e a impede de classificar. Não é a estranheza das descrições (que estabelecem as semelhanças e diferenças) de cada item que arruína a ordenação. Estes seres reais e imaginários poderiam se encontrar perfeitamente numa ficção, desde que um elo os ligasse – um espaço comum possível em que seriam justapostos ou enumerados; por exemplo, uma floresta imaginária. Mas, na enciclopédia chinesa, o espaço desse encontro é impossível: a sequência das letras do alfabeto. Como observa Michel Foucault, sobre o texto de Borges, “o que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas categorias**” (p. 10).
Voltando ao livro de Gonçalo Tavares, nele tomamos conhecimento de histórias e personagens que remetem ao realismo fantástico de Borges, tais como: um improvável homem que lava e restaura meticulosamente restos de objetos que resgata do lixo e secretamente os coloca como se fossem novos nas prateleiras de um supermercado; um professor e seus alunos que resistem ao prolongado e progressivo acúmulo de pilhas de sacos de lixo – devido à greve dos funcionários responsáveis pela coleta – que invadem a sala de aula (é assim que os estudantes, quando adultos, poderão suportar o mau cheiro e ser indiferentes ao que fede em suas vidas civilizadas); ou ainda, os últimos homens sensatos – que restam numa ilha de loucos – resolvem fugir e enlouquecem na “barca da razão”.
Mas se o espaço borgiano da impossível taxonomia dos animais é exclusivamente o vazio do alfabeto, aquilo que impossibilita a relação de uma coisa com a outra, a ordenação de Gonçalo fixa no espaço possível dos acontecimentos aleatórios nomes que seguem a ordem do alfabeto e nomeiam esses acontecimentos.
Na evolução do texto de Matteo perdeu o emprego, não há nenhum elo significativo que possa justificar ou dar consistência causal à combinação segundo a qual são ordenadas as personagens. Estas constituem pequenas narrativas praticamente independentes na medida em que através de um detalhe totalmente casual o leitor é obrigado a passar de Aaronson a Boiman, de Boiman a Camer e assim por diante. Experimenta-se certo desconforto nessa distribuição, constatado o caráter fortuito dos fatos que no interior da história ligam um nome a outro. O critério que faz o romance avançar e que fixa a sequência das personagens é a ordem alfabética.
Como um professor que recita a chamada em sala de aula ou um aluno que espera o momento de sua letra inicial para responder a chamada, para que alcancemos Matteo é necessário percorrer a inútil série do A até o M. “Como se os personagens entrassem em cena não devido ao que fazem, mas à primeira letra do seu nome. O alfabeto é algo que domina, e muito, a civilização ocidental, não é apenas algo que usamos para escrever, é algo que nos organiza.” E aqui chegamos a uma questão fundamental deMatteo perdeu o emprego – a literatura sempre exige uma reflexão sobre o mundo: tomamos consciência de uma ordem que não possui nenhuma lógica – a não ser a arbitrariedade e o acaso que a domina – como um sistema que opera no real, que interfere decisivamente na vida dos homens. Combinação abstrata, simplória, vazia de materialidade, mas que produz efeitos absolutamente objetivos. “Importa isto: o alfabeto como hierarquia, elemento aleatório que dá uma ordem que nos parece sensata. Eis um milagre” (p. 144).
Pelo sentimento de irrealidade que nos causa a ordem alfabética como princípio ordenador da narrativa de Gonçalo, somos jogados de volta à vida, onde antes não percebíamos esse poder surpreendente, quase injusto, das letras; e em sentido mais amplo a arbitrariedade de toda forma de classificação (toda ordenação pressupõe critérios específicos de semelhancas e diferenças). “Sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”, afirma Borges.
Pode-se dizer então que o real não existe sem as ficções que o engendram. É preciso que acreditemos em determinadas ficções para que a realidade seja vivida, mas também transformada, quando passamos de uma ficção a outra.
Estranho pensar que por ordem alfabética, somente por ela, podemos juntar no sistema escolar aleatoriamente as pessoas: Ana e Ana Carolina, se não possuem nada em comum, se veem na escola ligadas pelo alfabeto. Também no dicionário as palavras se misturam ao bel-prazer da tirania das letras: lá asno e astro estão mais próximos do que nunca serão no mundo real. Embora isso nos faça rir, há também as consequências perturbadoramente trágicas, “como na escolha dos judeus que seguiriam do gueto para o campo de extermínio. Uma escolha que, certas vezes, seguiu precisamente a ordem alfabética. Se o nome começava por F e a chamada ia já no G, o homem com o nome começado por F estava salvo – pelo menos temporariamente” (p. 157).

*Trecho extraído da entrevista de Gonçalo Tavares disponível em: http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2014/02/09/goncalo-m-tavares-o-meu-trabalho-e-iluminar-palavras/
** Trecho extraído do prefácio de As palavras e as coisas, de Michel Foucault. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2007.
Bruno Lorenzatto: Licenciado em história e mestre em filosofia pela PUC-Ri


terça-feira, 13 de maio de 2014

O recurso de Dirceu a uma corte internacional pode apressar a reforma do sistema jurídico nacional


por : Paulo Nogueira



Uma corte mais política que jurídica

Por causa de Joaquim Barbosa, a Justiça brasileira vai sofrer um vexame internacional.

A decisão de Zé Dirceu de recorrer à Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH) contra a decisão de Barbosa de negar-lhe acesso a trabalho sob estapafúrdias alegações é uma bofetada – merecida — na Justiça.

Mais especificamente, no STF e no próprio Barbosa.

A CIDH não tem poder para mudar decisões como a ausência de dupla jurisdição para os réus do Mensalão.

A impossibilidade de recurso é indefensável. O fato de sob acusação idêntica ter sido concedido direito de recorrer a um réu do chamado Mensalão Mineiro mostra o caráter político do julgamento.

Mas, mesmo sem poder de mudar decisões, a CIDH pode deixar claro que o Supremo, sob Barbosa, fez muito mais política do que justiça.

É provavelmente o que ocorrerá.

Os juízes da CIDH não estarão sob o assédio implacável da mídia, e isso faz muita diferença. Não temerão aparecer em 30 segundos demolidores do Jornal Nacional, ao contrário dos juízes do STF, e nem aspirarão a ser capa da Veja.

Isso faz toda a diferença.

O veredito da CIDH poderá ser o marco zero para uma coisa essencial ao avanço social brasileiro: uma reforma vigorosa, profunda e urgente no patético sistema jurídico, a começar pelo Supremo Tribunal Federal.

Neste sentido, Dirceu — e registre-se a ironia de ele se defender no exterior de um Estado comandado pelo PT — pode estar prestando um histórico serviço ao Brasil ao bater na porta da CIDH.

Sobre o AutorO jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo (nossa fonte)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O desabafo de Ney Matogrosso

por : Paulo Nogueira



Vítima da mídia

Animada controvérsia em torno de uma entrevista para uma emissora portuguesa na qual Ney Matogrosso faz um retrato desalentador do Brasil.

Me pedem que analise a entrevista, e aqui vou eu.

Primeiro, é necessário entender Ney Matogrosso. É um homem sensível, de consciência social, a quem a desigualdade claramente incomoda.

Ele não é, portanto, um fanfarrão como Lobão ou Roger do Ultraje, para ficar no universo dos cantores.

Ney Matogrosso diz, a certa altura, que gostaria de poder traçar um quadro mais alegre do Brasil, e deve-se acreditar nisso.

Ele fala sentido de Amarildo e dos desvalidos brasileiros removidos de suas casas humildes por conta de obras da Copa.

Como discordar aí?

O custo social da Copa, expresso nos removidos e nos operários mortos nas obras em razão de condições precárias de trabalho ou excesso de pressa por causa do mau planejamento, bem, este custo haverá de nos assombrar por muito tempo.

Quando algumas pessoas afirmam que a hora de protestar contra a Copa era quando ela foi anunciada, ignoram que ninguém sabia, então, da dimensão do custo social.

Onde começam os problemas do desabafo de Ney?

Quando ele envereda pelo campo da corrupção. Vê-se, aí, que ele sofreu e sofre uma brutal lavagem cerebral da mídia. Ele, essencialmente, reproduz colunistas e editorialistas do Globo, da Folha e do Estadão. Provavelmente seja vítima, também, do veneno da Globonews.

Ao longo da história, a mídia – que sempre representou os privilégios – invariavelmente recorreu à corrupção, não raro inventada, para sabotar administrações populares.

Foi assim com Getúlio e seu mar de lama. Foi assim com Jango, objeto de copiosas acusações de corrupção. E tem sido assim com Lula e Dilma.

A classe média, historicamente, se comove quando o assunto é corrupção. É relativamente fácil manipulá-la dizendo que você vai acabar com a corrupção.

O PT só não foi derrubado – pelas urnas – em 2006, com o uso calculado da corrupção para minar Lula, porque brasileiros simples entenderam, do seu jeito, que os moralistas estavam tentando bater sua carteira. Se dependesse da classe média, Lula não teria sido reeleito.

Ney Matogrosso é um dos brasileiros massacrados pela mídia. Isto ficou claro.

Um fator que agrava o quadro é a idade de Ney Matogrosso. Ele não é um homem da era da internet. A mídia digital é um formidável contraponto ao jornalismo das grandes empresas jornalísticas.

A geração de Ney Matogrosso é a geração do papel – jornais e revistas – e da televisão.

Para conhecer o outro lado das coisas, Ney Matogrosso tem apenas um caminho: a internet.

Fora disso, ele vai continuar a repetir as coisas que a mídia tradicional impinge a tantos brasileiros. E se autocondenará a agir como um clássico “analfabeto político”.

Sobre o Autor: O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo (nossa fonte)

domingo, 11 de maio de 2014

O desperdício de alimentos no Brasil


 Entrevista especial com Walter Belik

“Precisamos ter uma medida exata do desperdício, porque existe um certo pânico quando se trata dessa questão”, adverte o engenheiro agrônomo.

Por Patricia Fachin)

Qual é o tamanho do desperdício de alimentos no Brasil? Não há resposta para essa pergunta, alerta Walter Belik em entrevista concedida à IHU On-Line, pessoalmente, em ocasião da sua participação no XV Simpósio Internacional IHU. Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que ocorreu na Unisinos entre os dias 5 e 8 de maio. Belik explica que as pesquisas realizadas para identificar qual a porcentagem dos alimentos desperdiçados no país não seguem metodologias “compatíveis com a realidade brasileira”. “O que é o desperdício, afinal de contas?

Muitas pessoas que fazem pesquisa de desperdício vão ao varejo ou à feira e perguntam para o feirante quanto ele perdeu. Então, como ele calcula isso? Se ele vende a banana por R$ 3,00 à dúzia e no fim da feira vende por R$ 1,50, ele calcula que perdeu 50%. Nesse caso, ele fez uma conta em valor, ou seja, desperdício para ele é isso. No caso do peso, é complicado também fazer uma avaliação, porque, afinal, como você pesa as coisas? A melancia, por exemplo, tem bastante peso por causa da casca, e consumimos muito pouco dela, embora os nutricionistas insistam para utilizarmos a casca da melancia para diversas coisas. Nesse sentido, se você pesa o que está jogando fora, o peso é a maior parte do componente alimentar daquele alimento. Então, essas estatísticas são muito enviesadas por conta disso”, assinala.

Segundo ele, é possível ter uma evidência maior dodesperdício de alimentos na fase de produção e de transporte. Contudo, “o desperdício no consumo é baixo, porque a população brasileira é pobre e pobre não joga fora a comida; come tudo, tenta aproveitar tudo, até resto de alimentos para uma nova refeição”. Nesse cenário de desperdício, acentua, o modelo físico adotado pelas CEASAs“não funciona mais”. “As centrais de abastecimento não se atualizaram. Então, ainda se tem um sistema de centrais de abastecimento que perderam a sua identidade e a sua função. No passado, elas foram criadas para aproximar o produtor do consumidor, então tinham justamente a função de atacado. À medida que as cidades foram crescendo e os supermercados se desenvolvendo, as centrais perderam essa função.”

Belik também chama atenção para a discussão acerca do padrão de consumo adotado em relação aos alimentos, no qual o “consumidor valoriza o aspecto cosmético da fruta, da verdura. (...) Se ela está com uma manchinha, ou feia, enrugada, ou se a cenoura não tem aquele tamanho ou formato exato, ela já não serve para o consumo. Então, como o consumidor rejeita, o varejo acaba rejeitando, e o produtor nem colhe”. Isso está mudando na Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos, mas, principalmente na Europa, existem campanhas públicas para consumir alimentos que não são perfeitos, bonitos, mostrando que a qualidade nutricional está nessa diversidade. As pessoas são diferentes, por que os vegetais têm de ser iguais, todos exatamente iguais?” E dispara: “O consumo é ditado pelo mercado, sim, porém o mercado se move em função da consciência das pessoas. Por isso, tem de conscientizar as pessoas para o consumo diferenciado”.

Walter Belik é graduado e mestre em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. Possui ainda pós-doutorado na University of London, na Inglaterra, e no Department of Agricultural & Resource Economics da Universidade da Califórnia, Berkeley, nos Estados Unidos. Em 2000, recebeu o título de professor livre-docente pelo Instituto de Economia da Unicamp, universidade onde está vinculado desde 1985. De uma trajetória de pesquisas relacionadas à avaliação da política agrícola e agroindustrial, concentrou as atenções nos aspectos do processamento e da distribuição de alimentos. Atua principalmente na discussão das alternativas de políticas de segurança alimentar, analisando o papel do abastecimento alimentar e a logística da distribuição.

Confira a entrevista.

IHU On-line- Em que medida o desperdício de alimentos, seja na produção, no transporte ou no consumo é um dos implicadores da fome?

Walter Belik – Em primeiro lugar, precisamos ter uma medida exata do desperdício, porque existe um certo pânico quando se trata dessa questão, uma vez que se utilizam muitas medidas para avaliá-la, as quais não são compatíveis com a realidade brasileira. Então, é preciso, primeiro, definir qual base de dados está se usando para calcular o que vem a ser o desperdício: se considera o desperdício em termos de valor, se considera o peso, se consideram as calorias. O que é o desperdício, afinal de contas? Muitas pessoas que fazem pesquisa de desperdício vão ao varejo ou à feira e perguntam para o feirante quanto ele perdeu. Então, como ele calcula isso? Se ele vende a banana por R$ 3,00 à dúzia e no fim da feira vende por R$ 1,50, ele calcula que perdeu 50%. Nesse caso, ele fez uma conta em valor, ou seja, desperdício para ele é isso. No caso do peso, é complicado também fazer uma avaliação, porque, afinal, como você pesa as coisas? A melancia, por exemplo, tem bastante peso por causa da casca, e consumimos muito pouco dela, embora os nutricionistas insistam para utilizarmos a casca da melancia para diversas coisas. Nesse sentido, se você pesa o que está jogando fora, o peso é a maior parte do componente alimentar daquele alimento. Então, essas estatísticas são muito enviesadas por conta disso.

A identificação do desperdício por caloria também é complicada. Ou seja, têm alimentos que são muito mais calóricos, porém não quer dizer que sejam bons. Então, eu estou jogando fora bolacha recheada, mas isso não serve para nada, é uma caloria absolutamente vazia.

Então há um alarmismo generalizado com relação ao tamanho do desperdício. Por isso, a primeira coisa que devemos fazer antes de responder à pergunta é avaliar qual o tamanho do desperdício no Brasil, e nós não temos essa informação. Nós sabemos que o desperdício, na fase de produção e transporte, é grande, mas o desperdício no consumo é baixo, porque a população brasileira é pobre, e pobre não joga fora a comida; come tudo, tenta aproveitar tudo, até resto de alimentos para uma nova refeição.

Então, voltando à produção: o que é uma perda normal e uma anormal? Por exemplo, uma mudança climática — o caso de seca — é perda, ou seja, um evento climático que causa uma perda de alimentos. Esse evento poderia ter sido evitado? Sim, poderia, se houvesse irrigação, por exemplo. Então, as técnicas de produção não são adequadas ao que se imagina. Também há muita perda em função dos preços. Se o preço caiu muito, o agricultor não colhe determinado produto. Isso poderia ser evitado através de uma política pública na qual o agricultor poderia ser remunerado de alguma forma, ou o Estado poderia comprar esses alimentos e montar estoques reguladores, etc.

Voltando, portanto, à pergunta inicial: nós sabemos que temos uma perda, porém não sabemos de quanto é nem onde ela está, como se fosse uma “entidade fantasma”, e também sabemos que precisa haver políticas públicaspara fazer isso aí. Essa perda, que seria aproveitada de fato, poderia alimentar muita gente, porém, às vezes, isso não interessa muito para o mercado.

IHU On-line- Essa perda é muito determinada pelo mercado, pelo consumo, porque alguns agricultores já selecionam o produto durante a colheita? 

Walter Belik – Essa é uma discussão enorme que está acontecendo, mas que ainda não chegou ao Brasil; nós ainda vivemos certa imitação do padrão de consumo, que não tem nada a ver com a realidade. Então, o consumidor valoriza o aspecto cosmético do produto, da fruta, da verdura, se ela está bonita, etc. Se ela está com uma manchinha, ou feia, enrugada, ou se a cenoura não tem aquele tamanho ou formato exato, ela já não serve para o consumo. Então, como o consumidor rejeita, o varejo acaba rejeitando, e o produtor nem colhe. Isso está mudando na Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos, mas, principalmente na Europa, existem campanhas públicas para consumir alimentos que não são perfeitos, bonitos, mostrando que a qualidade nutricional está nessa diversidade. As pessoas são diferentes, por que os vegetais têm de ser iguais, todos exatamente iguais? Então, o consumo é ditado pelo mercado, sim, porém o mercado se move em função da consciência das pessoas. Por isso, tem de conscientizar as pessoas para o consumo diferenciado.

A questão do preço também tem muito a ver; muitas vezes, se o preço está ruim, o produtor não colhe, mas algumas empresas podem imaginar que se o produto for colhido e for colocado no mercado, o preço pode cair ainda mais, porque aí vai se atender uma demanda em situação de preço elevado. Então, tem de ter política para isso também. OEstado está aí para manter estoques reguladores de forma que não se faça essa oscilação tão grande dos preços. Por exemplo, veja o que aconteceu com o tomate: no começo do ano, o preço dele disparou, ficou em torno de R$ 12,00 ao quilo. Um mês depois já havia baixado de preço, pois o Brasil é grande, diversificado, tem uma quebra num lugar, mas em outro já está produzindo. Mas o que acontece? Esse preço de R$ 12,00 acabou sendo incorporado no índice de preço dos alimentos, gerou pânico e especulação de que a inflação iria disparar. Todos começaram a reajustar os preços em função disso, sendo que, no momento seguinte, o tomate e outros gêneros alimentícios baixaram de preço.

Se tivesse uma política de regulamentação dos estoques para o bem e para o mal, a situação seria outra, ou seja, se o preço cai muito, então o governo compra, se o preço está alto, o governo vende. Mas o Brasil não tem isso.

IHU On-line - Como avalia as centrais de abastecimento do país? Esses são locais de grande desperdício de alimento?

Walter Belik – As centrais de abastecimento não se atualizaram. Ainda se tem um sistema de centrais de abastecimento que perderam a sua identidade e a sua função. No passado, elas foram criadas para aproximar o produtor do consumidor, então tinham justamente a função de atacado: vinha o produtor e vendia diretamente para alguém que iria depois colocar os alimentos no varejo ou ia consumi-los diretamente. À medida que as cidades foram crescendo e os supermercados se desenvolvendo, as centrais perderam essa função.

Hoje, os supermercados fazem muito melhor essa função: eles compram muito melhor, colocam o preço muito mais barato e concorrem diretamente e com vantagens com a feira livre e com outras estruturas. São Paulo, por exemplo, é uma cidade de feira livre, mas, mesmo assim, é mais caro comprar na feira do que no supermercado. Então, elas perderam o sentido. As CEASAs teriam de repensar a sua forma de trabalhar, por um lado, trabalhando com produtos comoditizados de uma forma virtual. Hoje é possível ter um sistema de classificação de produtos em que as negociações e a logística são feitas virtualmente. Isso evitaria o passeio da mercadoria.

O papel das CEASAs é cada vez mais de organizador de mercado. Não funciona mais essa atividade num espaço físico de compra e venda, com pessoas circulando com dinheiro para lá e para cá, com alimento caindo no chão. Os alimentos viajam dois dias para chegar ao lugar, aí ficam expostos fora de uma câmara frigorífica. Imagina o custo disso? No mundo todo não está mais assim, mas no Brasil nós temos estruturas obsoletas. Por outro lado, é preciso desenvolver a produção. Então, normalmente as CEASAs têm interpostos regionais, que poderiam se transformar em centros de organização da produção familiar para a venda regional. Não tem sentido a produção de batata de uma região ter que viajar até Porto Alegre, por exemplo, para ser vendida. A CEASA também perdeu, por exemplo, os compradores de pequeno varejo, porque eles não vão comprar em Porto Alegre, vão acabar comprando dos pequenos produtores da sua cidade.

IHU On-line – Ainda há muitas pessoas passando fome no Brasil? O problema da fome no mundo não está ligado à produção de alimento e sim ao desperdício?

Walter Belik – As estatísticas mostram que tem aproximadamente 8% da população brasileira em situação de subnutrição. O Brasil tem 200 milhões de pessoas, então, são 16 milhões de pessoas passando fome. É um número grande, mas ele já foi muito maior, e caiu bastante, porque reduzimos para mais da metade, ou seja, em 60-70%, o número de famintos. Esse é um problema sério, mas que começa a clarear no sentido de perceber exatamente qual a dificuldade dessas famílias em ter acesso à alimentação. Temos alguns casos que são bastante claros, por exemplo, os indígenas e os quilombolas são comunidades específicas que estão muito isoladas, são pobres e não foram “encontradas” pela política pública.

Hoje, o Bolsa Família tem um cadastro de 20 milhões de famílias, mas o Ministério estima que existem 24 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade. O Ministério não consegue encontrar essas pessoas; as estatísticas mostram que elas estão lá, mas você não sabe onde. Quer dizer, o sujeito está tão desassistido, tão fora do mundo, tão pobre, tão ignorante, que não consegue procurar uma assistente social; está absolutamente à margem da sociedade. Então, tem muita família rural perdida aí no Nordeste.

O problema da obesidade também é sério. Então se estima que há mais obesos hoje no Brasil do que desnutridos. Muitos usam isso para dizer que o problema da fome não é tão importante e que o problema maior é a obesidade. Porém, a obesidade é uma forma também de vulnerabilidade, muitas vezes de desnutrição de alguns micronutrientes que a pessoa não tem. Ela é gorda, tem uma alimentação supercalórica, mas o sujeito não foi instruído de como se alimentar, ele come porcarias, etc.

IHU On-line - Quais são as políticas públicas realizadas no Brasil para resolver esse problema do desperdício?

Walter Belik – A política que existe no Brasil — que não é bem uma política — são os bancos de alimentos. Essa política está no topo da agenda e não é política porque ela tem pouco a ver com o Estado, pois quem desenvolve a política do banco de alimentos normalmente é a sociedade civil. Então, o SESC tem uma rede excelente, o Mesa Brasil; diversas organizações, as igrejas, conseguem recuperar uma parte dos alimentos que são desperdiçados. Mas está faltando uma legislação, uma regulamentação do Estado para que essas iniciativas pudessem aumentar em mil vezes.

Eu gosto de falar, pois sou militante de banco de alimentos, e faço coleta de banco de alimentos no final de semana no mercado municipal de São Paulo. As pessoas vão lá para comer, beber. É lá que têm as melhores frutas, as melhores verduras. Os chefes de cozinha vão lá se abastecer. Então, nós passamos no mercado municipal e os donos dos boxes doam toneladas de alimentos que se perdem, alimentos que você come em um restaurantechique de São Paulo porque o sujeito não vendeu, porque ficou mais frio e ele vendeu menos abacaxi, por exemplo, então vai ter que se livrar daquilo porque não tem onde colocar. Nós também coletamos junto aos agricultores. Tem um cinturão verde em São Paulo, em Cotia, que doa alimentos para nós. Se houvesse uma legislação, isso seria potencializado, mas as pessoas têm medo de doar.

IHU On-Line – Em restaurantes, inclusive, é proibido.

Walter Belik – Exato. Já que a segurança sanitária não tem competência para fiscalizar, então é melhor proibir. De fato, tudo bem, restos de comida, alimentos preparados, é complicado de doar; você não vai doar sobras dos pratos das pessoas. O buffet por quilo é visto como um bom exemplo de redução de desperdício, porque a pessoa põe no prato apenas aquilo que ela irá comer. Mas e o buffet? A comida que não tem saída acaba sendo descartada. Poderia perfeitamente ter um sistema de coleta, mas no Brasil é proibido. Em outros lugares do mundo, por exemplo, nos Estados Unidos, o pessoal é mais consciente: numa festa de casamento, com um buffet enorme, as pessoas que têm consciência já colocam no convite da festa que “as sobras serão doadas ao banco de alimentos ‘x’”. Eu sou filho de imigrante e em casa não podia sobrar comida. É comum minha mãe ir a uma festa e perguntar: “O que farão com a comida que sobrar?”.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

FAO: comércio de alimentos passará por mudanças na próxima década

FAO projeta mudanças no comércio de alimentos

por Luciano Máximo

Para o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o brasileiro José Graziano, a corrente internacional de comércio de alimentos passará por uma reconfiguração nos próximos dez anos. Com os países desenvolvidos, principalmente na Europa, ainda se esforçando para superar a crise econômica, a tendência é que os grandes exportadores de alimentos e commodities sejam afetados caso não priorizem a agregação de valor nas cadeias produtivas.

"Depois do crescimento brutal do Mercosul como exportador de grãos, cereais, carnes e ovos, está ocorrendo no mundo uma reação a essa commoditização dos alimentos. Na Europa, há uma tentativa de reforçar a agricultura regional e recuperar o consumo de produtos tradicionais. Eles não querem mais ter um produto padrão para importar. O maior objetivo disso é incrementar o comércio regional", afirmou Graziano na manhã de ontem, antes da abertura da 33ª Conferência Regional da FAO para América Latina e Caribe, que acontece em Santiago, capital chilena.

"Isso vai resultar em uma reconfiguração importante do comércio internacional. O Brasil, por exemplo, já está sendo afetado na demanda por sucos, a começar pelo suco de laranja. Na Europa, o consumo de suco já está sendo substituído por outros produtos, locais ou regionais. Então o comércio mundial de alimentos vai experimentar uma reconfiguração de sua cadeia. Países que apostaram na agregação de valor de suas cadeias produtivas estão e estarão em melhores condições de competir internacionalmente", complementou.

José Graziano disse ontem, ainda, que não descarta o uso de práticas de modificação genética na agricultura e na produção de alimentos para combater a fome no mundo. O ex-ministro do governo Lula disse que a presença de transgênicos hoje não é relevante, exceto no milho e na soja, e que a discussão sobre alimentos transgênicos é simplista, focada apenas na questão do monopólio das sementes.

"Não descarto nenhuma arma contra a fome. A luta contra a fome é sem trégua e sem quartel. Podemos erradicar a fome se usarmos todos os esforços. Se os transgênicos são uma possibilidade futura não temos que descartá-los agora", disse Graziano. "No momento estamos alimentando o mundo sem transgênicos. Exceto em alguns produtos, como milho e soja, não são relevantes. Mas não sabemos o que vai acontecer no futuro. É muito importante continuar acumulando conhecimento para avançar [nessa área]", afirmou

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A sociedade e os grandes criminosos segundo Balzac

Camila Nogueira


Ele


Balzac é Balzac. Sendo assim, é compreensível que tenha sido convocado, mais uma vez, pelo Diário para a série “Conversas com Escritores Mortos”. As frases abaixo foram extraídas do livro “Código dos homens honestos”.

Monsieur Balzac, o senhor é considerado um dos maiores romancistas de todos os tempos – e também é conhecido por ter criado personagens excelentes. Vautrin é, particularmente, meu favorito. O que tem a dizer sobre ele?

Vautrin é um canalha – ou antes, um ladrão.

Isso quer dizer que o senhor o desaprova?

É claro que não. Os ladrões constituem uma classe especial da sociedade: contribuem para o movimento da ordem social; são o lubrificante das engrenagens e, como o ar, penetram em qualquer lugar; os ladrões são uma nação à parte, no interior da nação.

Estou confusa. Então o senhor aprova os ladrões?

Acho que é necessário, antes de tentar desvendar as astúcias dos ladrões, tecer sobre eles algumas considerações imparciais; talvez ninguém mais possa analisá-los sob todos os ângulos e com total sangue-frio. Mas certamente não serei acusado de querer defendê-los, pois isso seria mais que injusto. Afinal, não posso defender aqueles que podem, a qualquer momento, me roubar.

E quais seriam suas considerações imparciais?

O ladrão é um ser raro; a natureza o concebeu como uma criança mimada e despejou sobre ele toda sorte de perfeições: um sangue frio imperturbável, uma audácia a toda prova, a arte de aproveitar o momento exato, tão fugaz e tão lento, a agilidade, a coragem, uma boa constituição física, olhos penetrantes, mãos ágeis, fisionomia aberta e expressiva, todas estas qualidades não são nada para um ladrão e, no entanto, são consideradas como a soma das capacidades de um Aníbal, de uma Catarina, de um Mário, de um César.

Mas nem todos os ladrões são audaciosos, corajosos ou têm esse sangue frio imperturbável. Podemos, então, dizer que não estamos falando de todos os criminosos, e sim dos mais notáveis entre eles?

Há uma grande diferença entre um ladrãozinho qualquer e os grandes criminosos. O pequeno roubo é, mais exatamente, o seminário onde se recruta para o crime, e os ladrões de galinha não passam de maus atiradores do grande exército dos profissionais sem patente.

Há alguma diferença crucial entre eles?

O ladrão banal irá roubar sua carteira e sair correndo; o grande criminoso não se contenta com isso – seus métodos são sofisticados e elegantes, e consequentemente seu lucro é muito maior.

Então basta ao grande criminoso ter uma boa fisionomia, audácia, sedução e sangue frio? Não precisa ter um conhecimento da natureza humana, por exemplo?

Ele deve conhecer os homens, seu temperamento, suas paixões; tem que mentir com habilidade, prever os acontecimentos, avaliar o futuro, ser dono de um espírito ágil e agudo; tem que ter um raciocínio rápido, encontrar boas saídas, ser um bom comediante, bom mímico; tem que saber captar o tom e as maneiras das diversas classes sociais (imitar o funcionário, o banqueiro, o general, conhecer seus hábitos e suas características). E, acima de tudo, tem que ter imaginação, uma brilhante imaginação. Ele não é forçado a estar sempre inventando novos recursos? Para o ladrão, o fracasso equivale a uma condenação.

Mas, monsieur Balzac, levando em conta tudo o que o senhor disse, esse criminoso notável é um ser fora do comum, a quem pouco faltou para ser um grande homem. E o que impediu que isso acontecesse?

O resultado de tantos dons é, em geral, uma extrema propensão à indolência. Entre o objeto cobiçado e a posse, não vêem mais nada, entregam-se felizes ao mal, nele se instalam, a ele se habituam.

E como podemos reconhecer esses grandes criminosos?

Nunca desconfie de seu vizinho da esquerda, que usa uma camisa de tecido grosso, uma gravata branca e uma roupa limpa, mas de tecido barato; ao contrário, acompanhe com muita atenção os movimentos de seu vizinho da direita, de gravata fina e elegante, muitos berloques, suíças, ar de gente honesta e próspera, maneira desenvolta de falar; é este camarada quem vai roubar seu lenço ou seu relógio.

E o que fazer quando somos roubados por eles?

Oh, infelizmente não há nada a fazer. Se o seu brilhante desapareceu, não perca tempo em pedir contas a esse senhor. Inútil revistá-lo, nada vai encontrar; ele irá se fazer de ofendido e você acabará se humilhando à toa.

Mas e aqueles que entram no crime por gosto?

Estes são aqueles que Dr. Gall descreveu como infelizes cujo vício decorre de sua organização mental. Há, naturalmente, grandes criminosos que amam o vício e que o abraçam efusivamente; acho que estes entram na lista daqueles que entram no crime por gosto.

E os que não amam o vvício, e nem se sentem confortáveis com ele? Não sentem remorso?

Em alguns deles há remorsos crescentes antes que a voz da consciência se apague. A multidão, ao ver um homem no banco dos réus, o vê como um criminoso, o abomina; no entanto, esquadrinhando sua alma, um padre pode ver nascer o arrependimento. Que grande tema para a reflexão! A religião católica é sublime quando, em vez de virar o rosto com horror, abre os braços e chora com o pecador.

Seria certo afirmar que os ladrões sempre existiram e sempre existirão?

São o produto necessário de uma sociedade constituída. Na verdade, em todos os tempos, os homens sempre estiveram enamorados da fortuna. Todos dizem: “Hoje em dia, o dinheiro é tudo, quem tem dinheiro tem tudo.” Ah! Evitem repetir essas frases banais, passarão por tolos. Desde que o mundo é mundo, o dinheiro foi adorado e buscado com o mesmo ardor.

Para terminarmos nossa conversa, eu gostaria de perguntar se o único ladrão é aquele que rouba explicitamente.

Ora, todos procuram uma maneira de fazer uma fortuna rápida e sólida, porque todos sabem que, depois de adquirida, ninguém se lamentará; ora, essa maneira é através do roubo, e o roubo é coisa comum.

Como assim?

O comerciante que ganha cem por cento, rouba; também rouba o fornecedor que paga a trinta mil homens dez centavos por dia, anota os ausentes, estraga o trigo misturando farelo para render mais; outro queima um testamento; outro adultera os impostos; outro inventa uma caixa de pensões: há mil maneiras de roubar. O verdadeiro talento consiste em ocultar o roubo sob uma aparência de legalidade: que horror que é apoderar-se do bem alheio, só o que vem de nós nos pertence, eis a grande astúcia. Os ladrões espertos são recebidos pela sociedade, passam por pessoas de bem.

Algo a acrescentar?

Os ladrões são como uma perigosa peste das sociedades: mas não se pode negar sua utilidade para a ordem social. Se compararmos uma sociedade a um quadro, veremos que são necessárias zonas de zombra e zonas de luz, não? Que seria de nós se o mundo fosse povoado exclusivamente de pessoas honradas, ricas, de bons sentimentos, tolas, piedosas, políticas, simples, dissimuladas? Seria um tédio mortal, não haveria mais nada picante. A humanidade entraria em luto no dia em que já não houvesse fechaduras.
Sobre o Autor
Camila Nogueira, nossa correspondente de literatura, tem a impressionante capacidade de ler romances de 600 páginas em dois dias -- e depois citar frases inteiras da obra. Com apenas 16 anos, ela já leu as obras completas dos maiores mestres da literatura - como Balzac, Dumas, Fitzgerald e Dickens.
Nossa fonte: DCM