Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade
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quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O arco-íris do fundo do mar da África (1)



     Era uma vez, no fundo do mar que banha a África, uns peixinhos coloridos brincavam de
 arco-íris. Os peixinhos vermelhos formavam uma fila, que logo era acompanhada pela fila
 dos peixinhos cor de laranja, seguida pela dos amarelinhos, depois pela dos branquinhos,
 tendo os roxinhos se posicionado do outro lado dos vermelhinhos, seguidos de outros de 
outras cores até formarem um verdadeiro arco-íris. Ficavam horas nessa linda brincadeira. 
Como era no fundo do Oceano, ninguém os via, mas um cavalo marinho, muito curioso,
 se escondia atrás de uma alga gigante para se deliciar com aquela lindeza.

Numa praia não muito distante dali, um menino construía uma casa na areia. Era uma 
criança de cerca de 10 anos, magra, alta para sua idade, rosto triste, cujos olhos 
desmentiam a tristeza e brilhavam denunciando grandes sonhos. Ouviu um barulho, 
a cabeça e viu seu pai puxando uma grande canoa para o mar. Largou a casa de areia,
 correu para ajudar o homem e, quando a canoa já deslizava na água, os dois pularam 
dentro e a boca do Betinho já quase sorria, acompanhando a do pai que se arreganhava de 
prazer olhando a agilidade do filho.

Zé da Fiica era pescador, um homem de seus 40 anos que conservava o apelido dos seus sete,
 quando, na escola, para distinguir dos outros cinco Zés, a professora, ao apresentá-lo para
 os demais colegas, disse:

-  Este é o Zé, filho da D. Fiica. – Num uníssono o fundo da sala gritou:

- Senta aqui, Zé da Fiica. – O apelido pegou e ficou. D. Fiica morreu, o Zé cresceu, virou
 pescador dos grandes, casou-se, teve cinco filhos e continua Zé da Fiica.

- Obrigado pela ajuda – o pai foi logo falando -. Agora, volta para sua mãe não morrer de
 preocupação e depois me receber com olhos de brasa e nada de beijo. – Betinho deu de
 ombros e ficou como que ignorando a ordem. Zé fechou a cara e disse:

- Vou jogar um menino teimoso no mar. Anda logo se não vai ter que nadar muito, 
já estamos distanciando da praia. – O menino fingindo esforço para não rir, respondeu:

- Mãe sabe. Quando cheguei da aula, falei pra ela que a professora não passou lição e 
ela deixou eu ir pescar com o senhor. – Aí sim riu com gosto da cara do pai. Os dois entraram
 no silêncio da confiança. Betinho era quarto filho, o mais parecido no gênio com o pai. 
Fisicamente era a cara da mãe, mas a alma era filha do pai. Um gostava de estar na 
companhia do outro e não precisavam de muitas palavras.

Chegaram em um determinado lugar, já distante da praia. Zé desligou o motor, pegou 
o remo e ajudou a canoa a deslizar mais alguns metros, então jogou a âncora. Olhou para
 o filho e disse:

- Se quer mergulhar, vai já pra não ficar debaixo d’água depois de escurecer. – Betinho tirou
 a roupa, ficando só com a cueca, pulou na água e sumiu. – Zé ficou meio tenso e pensou alto:

- Que mãe Iemanjá proteja meu filho e não deixe ele ter a dor lá embaixo. 

– Sempre que  Betinho o acompanhava, vivia aquela dolorosa contradição.

 O filho gostava de nadar, mergulhar, sentir-se livre, integrado à imensidade
do mar. Zé sabia o valor da  liberdade – a história de seus antepassados, vendidos
 como escravos, era sua conhecida e  servia de  fundo para seus pesadelos – por outro
lado, o filho tinha umas dores que o transtornavam e elas vinham a qualquer
 momento. Havia, na escola, outras crianças com essas dores e ninguém
sabia curá-las.

Betinho conhecia bem o caminho para achar o cavalo marinho, seu amigo e companheiro
 de apreciar a lindeza daquele arco-íris do fundo do mar. Seu coração batia totalmente
 descompassado. Sua cabecinha temia não encontrar o amigo e não parava de se perguntar:

– Será que o cavalinho está me esperando? Será que está pensando que não venho mais? 
Faz três dias que não apareço... – Pensava com angústia. Ele não se preocupava com a
 respiração. (Ás vezes, Betinho achava que, se quisesse, podia respirava água e já esteve muito
 tentado a experimentar, mas sua mãe ficava muito brava quando acontecia alguma coisa
 com ele e “o pai não ganhava beijo”). Betinho gostava de, às escondidas, ver seu pai jogar
 olhar de bobo pra sua mãe. Era só isto acontecer e sua mãe corria pra se sentar no colo do
 pai e, aí, Betinho, encabulado com vergonha de estar olhando, virada a carinha e saia rindo,
 quietinho para ninguém desconfiar.

Betinho chegou atrás da alga gigante e encostou o dedo indicador na barriga do cavalo
 marinho que se enroscou dando as boas-vindas ao amigo. O arco-íris estava mesmo uma beleza
 e os peixinhos – sabiam que estavam sendo observados? – começaram uma dança lenta,
 ritmada, cuidadosa para não desmanchar a composição das cores, afinal eles eram o 
arco-íris! Betinho ficou de queixo caído e quase fez a experiência sem querer, pois abriu a boca 
que, é claro, ficou cheia de água salgada. Tentava cuspir, porém só pôde evitar engolir. Teve
 mesmo que subir à tona para respirar, pensando que os peixinhos podiam achar ruim com ele
 e irem embora. Respirou, armazenando o máximo de ar que seus pequenos pulmões 
suportavam e mergulhou de novo, sem nem ver a canoa do pai.

Chegando lá embaixo, percebeu que o arco-íris estava se desmanchando e os peixinhos
 tomavam várias direções. Ficou intrigado e chamou, com um gesto enfático, seu amigo, o
 cavalinho, para um papo na superfície. 

O cavalo marinho contou que os peixinhos não eram daquelas águas. Moravam em lugares
 distantes e diferentes. Um dia, um deles percebeu que havia no oceano peixinhos de várias
 cores e vários lugares. Ele começou a nadar por onde não era seu costume e foi encontrando
 os peixinhos azuis, vermelhos, amarelos. Depois de algum tempo, ele já conhecia muitos deles, 
então, marcou com eles um ponto de encontro e deu início à troca de experiências e de sonhos.
 A dança do arco-íris foi um desafio que um peixinho branquinho, que se julgava muito sem
 graça, fez para todos. Ensaiaram durante muito tempo. Chegaram a quase desistir, pois erravam muito, não sabiam a própria cor e entravam em filas erradas. Alguns moravam muito longe e chegavam cansados, outros não conseguiam acertar o ponto de encontro e se perdiam. Foram resolvendo os problemas um a um. 

O peixinho desafiante chegou a consultar uma velha baleia que demorou para ouvir a voz

 fraquinha do pequenino e até entender os problemas foi outro tempo. Como todos estavam interessados em executar o arco-íris, a  velha  baleia se sentiu também desafiada a mostrar seus conhecimentos, tiveram muita paciência e perseverança.
 A conselheira indicou outras criaturas  do mar que, com suas diferentes especialidades,
podiam colaborar nos mais diversos obstáculos.

 Assim, com a ajuda de muitos, os peixinhos conseguiram, enfim, definirem a coreografia e os
 ensaios passaram a ser diários. Daí, outro problema surgiu,  houve um acidente e vários
peixinhos morreram. Nesse momento, até o branquinho fraquejou, achando que deveria retirar o desafio, não valia a pena tanto esforço.

 A velha baleia, na sua sabedoria vivida, perguntou:
- Não vale a pena o quê? Vocês vão parar de se esforçar para  ver seu sonho virar verdade e
 vão fazer o quê? Vão voltar a ter sua vidinha sem graça? Se é isto que preferem, então, fiquem
 em suas tocas. Vou dar minha sabedoria para quem merece, para quem queira nadar pra 
frente e ver coisas novas e belas.

- Todos foram embora, bem murchinhos. 


No dia seguinte, sem qualquer combinação e uma hora antes do horário de costume dos ensaios,

os peixinhos foram chegando e se posicionando  sem que alguém desse um pio. Foi o primeiro
 ensaio geral.
Depois foi só beleza. Todos os dias  o fundo do mar apresenta o espetáculo que maravilha seus habitantes e os deixa felizes.

Chegou o instante de a  velha baleia  partir para seu lugar de repouso e o grupo dos peixinhos
 mais  todos aqueles que ajudaram na solução dos vários problemas se juntaram para a despedida
 da grande conselheira. 

O cavalo marinho terminou dizendo:
- Isto aconteceu há alguns bons anos. Meu avô foi quem me contou e me passou o lugar de onde
 eu assisto a todos os arco-íris do fundo do mar.

Betinho, comovido, agradeceu ao amigo a bela estória e foi nadando para a canoa que
 continuava no mesmo lugar. Lá chegando, encontrou o pai sentado, suado e a seus pés um peixe bastante grande para acabar com a pesca daquela noite.

O pai contou o trabalho que teve  e concluiu que era hora de encerrar a pescaria. Voltaram em
 silêncio até que Zé da Fiica quis saber o que havia perturbado tanto o filho.

- Conta o que aconteceu. Você parece que viu uma sereia.

 – O menino contou e perguntou:
- Pai, será que se agente procurar uma velha baleia ela não ensinaria como tirar minhas dores?

 – A que Zé respondeu:
- Se vamos achar uma velha baleia não sei, mas acabo de saber que devemos procurar. Vamos achar quem tenha a sabedoria da velha baleia e queira nos ajudar. Com certeza , vamos precisar de
 muitas pessoas com seus diferentes saberes. Vamos achar.

Comovido, puxou Betinho para seu colo e lhe deu um beijo na cabeça.







(1) Esta estorinha foi contada pela coordenadora do projeto ANINHA, a médica pesquisadora 
Milza Cintra Januário, durante a comemoração dos 25 anos da Associação de Pessoas com 
Doença Falciforme, em Belo Horizonte, MG.  O ANINHA - um exemplo de trabalho, 
envolvendo pesquisa, assistência e muita humanização, trata de gestantes com DF
e  é um filhote do Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias, cujo responsável
é o médico Dr Jose Nelio Januário. O Cehmod já é referência internacional, embora pouco conhecido no nosso País. Sua origem é uma parceria entre o Nupad e a Hemominas.
 O primeiro é o programa de triagem neonatal de Minas Gerais. Faz o teste do pezinho, 
que  diagnostica os bebês nascidos com doença falciforme (DF). Trata-se de doença 
genética, portanto, incurável. Cursa com várias alterações que promovem durante a 
vida da pessoa, situações muito difíceis. Em geral, é detectada em negros (a doença veio 
da África), mas pela miscigenação há pacientes de várias etnias. A dor (crise álgica) é
 terrível para quase todos os pacientes.Muitos chegam a desejar a morte. Como a 
doença ainda não é conhecida em sua totalidade pela equipe de saúde (tão pouco pela sociedade), nem sempre esta dor é valorizada, somente quem está muito perto consegue mensurá-la. Para conhecer esse trabalho, visite: www.cehmob.org.br .







sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Por uma esquerda capaz de disputar a subjetividade

170208-Munch
Neoliberais acenam com empreendedorismo e competição. Direita propõe restaurar projetos autoritários e xenófobos. Que nos cabe: exaltar, nostálgicos, a imagem do trabalhador?

Tatiana Roque,

Meritocracia e empreendedorismo são as palavras da moda, com todo o léxico que as acompanha: capacitação, coaching, diferenciação, profiling e por aí vai. Ideias e valores derivados dos princípios da concorrência que estruturam o projeto neoliberal. Sabemos que o neoliberalismo não se reduz a um sistema econômico. Em escala pouco visível, atuam mecanismos para instalar a concorrência em todas as relações sociais e, por isso, as subjetividades viraram alvos do governo neoliberal. Governar não significa apenas deter o poder político, significa organizar, facilitar e estimular a concorrência nos mais diversos âmbitos da vida social, como resume Foucault¹ .

Todo esse projeto, que parecia viver seu auge nos anos 1990, está em crise. Ainda assim, o tipo subjetivo que o sustenta – o empreendedor de si – permanece surpreendentemente sedutor. Além de bastante difundido, trata-se de um tipo subjetivo que facilita a adesão às formas de sociabilidade contemporâneas, fundadas na concorrência e no sucesso individual. No momento de crise em que estamos vivendo, a solução neoliberal para manter a hegemonia é tentar um passo adiante, explorando as fragilidades do estado de bem-estar social e buscando submeter todas as suas instituições à lógica da concorrência. Pierre Dardot e Christian Laval² sugerem que essa ofensiva visa os instrumentos que tornavam possível – até aqui – alguma sobrevida livre de concorrência, como os serviços públicos e a aposentadoria. O sucesso da empreitada depende da capacidade das formas de governo neoliberais para continuar convencendo a população que o empreendedor de si é atraente, bem como são suportáveis as relações sociais que o sustentam. Nessa dimensão se dará a disputa de corações e mentes. Por não estar sendo capaz de enfrentar essa disputa no terreno das subjetividades, a esquerda não tem conseguido adesão às suas propostas. Logo, a tarefa mais urgente para um novo projeto de esquerda será propor modos de vida alternativos à subjetividade empreendedora fundada na concorrência. Precisamos calibrar as lentes, focar nas subjetividades e buscar figuras capazes de substituir o self empreendedor, elemento-chave da racionalidade neoliberal.

Empreendedorismo é um modo de gestão social que mobiliza desde os empresários propriamente ditos até o setor de serviços e a economia informal, ou seja, enseja modos de vida que tocam a maior parte dos trabalhadores atualmente. Quando Jessé de Souza traça os perfis do novo “batalhador brasileiro”, inclui o batalhador do microcrédito, a empreendedora que vende doces e quitutes, as redes informais, o feirante, a família ampliada e a igreja neopentecostal³.  Uma grande parcela dos antigos assalariados, moradores de periferias, dedica-se hoje a um pequeno negócio, como lanchonete, corte e costura, salão de cabeleireiro ou oficina mecânica. A maior parte dessa população empreendedora atribui qualquer melhoria de vida ao esforço pessoal e quem ainda não tem seu próprio negócio, gostaria de ter4.  Das grandes corporações às igrejas neopentecostais, é a subjetivação empreendedora que mobiliza o engajamento. A ética da empresa – a partir da qual as pessoas se autogovernam no neoliberalismo – não envolve somente a competição, mas também exalta a autoestima, o pensamento positivo, a luta pelo sucesso, as habilidades pessoais, o vigor e a polivalência. Por isso, engloba todas as esferas da vida, desde o casamento, os filhos e os amigos até a família ampliada das igrejas – todos participam do networking necessário ao sucesso dos negócios. Mas nem tudo são flores. A conta não tarda a chegar, pois o self empreendedor sobrecarrega o indivíduo, que deve ser o único responsável por todos os riscos, tendo que assumir sozinho a culpa quando não consegue garantir o básico para si e seus próximos. O endividamento crescente só aumenta a culpabilização, gerando uma insatisfação cada vez maior com os dispositivos de subjetivação neoliberal. Os ideais de emancipação, mobilidade e liberdade, prometidos nos anos 1990, foram desmascarados pela multiplicação de sujeitos endividados; e a subjetivação neoliberal deu lugar à Fábrica do Homem Endividado 5.

Diante da falência de perspectivas, qual a alternativa proposta pela esquerda? A direita estilo-Trump acena com a restauração dos projetos nacionais autoritários, cujos modos de subjetivação – centrados no macho-adulto-branco – são velhos conhecidos. Enquanto isso, na esquerda, aprofunda-se a dicotomia entre as lutas identitárias e classistas. A única figura subjetiva invocada sem hesitação nos projetos de esquerda é a do trabalhador. Mas essa figura está em crise, devido às transformações profundas do mundo do trabalho. O crescimento do setor de serviços faz com que a figura do trabalhador se aproxime do empreendedor. Além disso, o pacto do bem-estar social, que sustentava o mundo do trabalho, está se dissolvendo em escala mundial. Seus termos fundadores dependiam da separação entre as esferas da produção e da reprodução da força de trabalho: era preciso garantir condições mínimas de existência ao trabalhador para que fosse possível extrair valor de sua produção na fábrica. Como manter um pacto desse tipo diante das configurações atuais do mundo do trabalho? Trabalho que vem sendo expandido para diferentes âmbitos da existência, com um papel cada vez mais preponderante de todas as esferas da vida nas relações de trabalho, como mostram o setor de serviços e a economia do conhecimento. Em todos esses casos, para continuarem produtivas, as pessoas precisam realizar um investimento contínuo sobre si mesmas, precisam empreender-se. Só que esse esforço já não traz o retorno necessário, levando à descrença e à depressão. Num ambiente social degradado, são os valores reacionários que têm conseguido suplantar a fragilização institucional generalizada. São justamente as mudanças no mundo do trabalho que explicam o crescimento das religiões neopentecostais; a cegueira das esquerdas para compreender o avanço dessas religiões só confirma sua dificuldade em recolocar o problema do trabalho no mundo atual.

Insistir na figura do trabalhador não fornecerá o elã subjetivo necessário para que novas pessoas possam aderir aos projetos da esquerda. Por isso, mesmo com todos os riscos que implica, a figura do empreendedor segue tendo mais apelo, mesmo nas classes populares. Que modos de vida, que suplantem a promessa desgastada de um trabalho assalariado na fábrica, conseguirão mobilizar corações e mentes? Que perspectivas de emancipação serão capazes de nos tirar do impasse atual? Sem enfrentar essa disputa no terreno das subjetividades, a esquerda continuará perdendo, mesmo reiterando a denúncia da dissolução dos ideais de universalidade, igualdade e justiça. Calibrar as lentes e enxergar o problema na escala das subjetividades é um passo incontornável para qualquer projeto

Tatiana Roque é professora de filosofia na UFRJ

Fonte: Outras Palavras, Publicado inicialmente em Le Monde Diplomatique | Imagem: Edvard Munch, Trabalhadores na Neve (1913)

1 Nascimento da Biopolítica. Martins Fontes, 2008. Aulas de 14, 21 e 28 de março de 1979.
2 A Nova Razão do Mundo. Boitempo, 2016.
3 Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Editora UFMG, 2010.
4 Indicam pesquisas, como a citada em:
https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2016/11/01/Como-a-substitui%C3%A7%C3%A3o-do-%E2%80%98trabalhador%E2%80%99-pelo-%E2%80%98empreendedor%E2%80%99-afeta-a-esquerda
5 Título de um livro de Maurizio Lazzarato disponível em francês: La fabrique de l’homme endetté: Essai sur la condition néolibérale. Éditions Amsterdam, 2011.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Aonde vamos parar?

Mino Carta
Diego Padgurschi/Folhapress


O destino do Brasil depende da Lava Jato, ao menos de imediato. É dependência pior que incômoda. Ao contrário do que trombeteou a propaganda da mídia nativa, a República de Curitiba não veio para erradicar a corrupção, e sim para demolir um partido e um setor industrial vital para o País.

Projeto bem-sucedido, e a gravidade maior da situação criada está na paralisação de empresas até ontem fundamentais. Em momento algum se cogitou de salvá-las, sem deixar, está claro, de punir os culpados.

No Brasil, a corrupção é endêmica. Os governos tornaram-se reféns do poderio das empreiteiras, ao sabor da antiga regra pela qual “é dando que se recebe”, desde o mandato de Juscelino Kubitschek. A ditadura não deixou por menos, bem como os governos da chamada redemocratização, proclamada em um país que nunca foi democrático, sempre e sempre domínio da casa-grande, ressalvada a ousada tentativa de Lula para romper o círculo mágico de uma hegemonia de 500 anos.

As empreiteiras foram avalistas do poder, o que é evidência acessível até ao mundo mineral, e da mesma forma é a corrupção na Petrobras, também decisiva para o desenvolvimento do País, onde começa no tempo do ditador Ernesto Geisel.

Foi ele quem entregou a empresa petrolífera estatal a um predador chamado Shigeaki Ueki, o qual cobrava 1 dólar sobre cada barril produzido ou comprado, em proveito dos seus próprios bolsos. Isso é também do conhecimento do mundo mineral, conquanto caiba admitir que quartzo e feldspato dispõem de memória mais apurada, sem contar a total ausência de hipocrisia, da maioria dos integrantes da sociedade nativa. E, ao dizer sociedade, excluo o povo que vive no limbo.

Aos tucanos foi reservado um tratamento especial. Há uma lógica na operação: o PSDB é perfeito representante e intérprete dos interesses da casa-grande, haja vista, por exemplo, o comportamento do chanceler José Serra.

O governo de Fernando Henrique Cardoso foi o mais corrupto de todos os tempos, tudo indica, entretanto, que até aí a República de Curitiba não chega, ou o faz com extrema cautela, na ponta dos pés. Uma foto recente, a colher Sergio Moro e o delatado Aécio Neves a se rirem em amistosa sintonia às costas de Michel Temer, deslumbrou os crédulos e os espertos, embora justificasse espanto.

O juiz Moro, de todo modo, cumpriu sua missão com empenho total e a assessoria de especialistas eméritos, como CIA, FBI e DEA, por cujos escritórios o nosso herói circula mensalmente. E não esqueçamos o desempenho, também missionário, de um grupo de promotores milenaristas, discípulos de Pedro, o Eremita, a pregar cruzadas de inspiração divina. A atuação da turba acusadora é exemplar da penúria intelectual destes nossos tristes trópicos, como diria Lévi-Strauss.

Uma estranha contradição, a seu modo cômica, emerge da Lava Jato, por tempo largo a contribuir para o cerco a Dilma Rousseff e ao PT e agora a colocar em campos opostos os golpistas de 2016. Trata-se de um conflito anunciado, de desfecho imprevisível e certamente de efeitos deletérios, quaisquer forem. Quem é contra e quem é a favor da Lava Jato? Fácil identificar muitos dos envolvidos, de um lado e de outro, sem exclusão de Gilmar Mendes e Rodrigo Janot, cujas posições transcendem o óbvio.

Ambígua a mídia, em cima do muro, pronta apenas a engrandecer tudo quanto prejudica Lula e seu partido. Em meio ao combate, que haveria de ser surdo e não é, pois seus ruídos transbordam, Temer vai em frente com os programas nefastos desejados pela casa-grande, mas não dissipa a incógnita: aonde vamos acabar? A risco todos os envolvidos, e a primeira vítima é o Brasil.

Sabemos que o propósito final da Lava Jato é eliminar Lula da corrida presidencial de 2018, e este objetivo reúne todos aqueles que se digladiam pelo poder. Condenar o ex-presidente por ser dono de um apartamento que não lhe pertence, como está fartamente provado, talvez fosse estopim de agitação social. Decerto, seria a prova definitiva de que no Brasil a Justiça não existe.

Fonte: Carta Capital

domingo, 29 de janeiro de 2017

Paulo Kliass: Trump, Temer e o Itamaraty


Wilson Dias/Agência Brasil
   
Um dos principais instrumentos programáticos utilizados para legitimar a operação do golpeachment foi o documento “Ponte para o Futuro”, elaborado pela Fundação Ulysses Guimarães, vinculada ao PMDB. O material foi divulgado em outubro de 2015, em operação coordenada pelo presidente da entidade e amigo pessoal de Temer, Wellington Moreira Franco.

Consumada a deposição inconstitucional e ilegítima de Dilma, o responsável pelo texto foi convidado para ocupar uma Secretaria toda especial no interior da Presidência da República. Ficou encarregado pelo programa de parcerias para investimentos com o setor privado, com o objetivo de levar adiante os processos de privatização e concessão de toda a parte da infraestrutura do País. Nunca é demais lembrar que pesa contra ele um conjunto de denúncias e processos de corrupção contra o político carioca, inclusive no âmbito da Operação Lava Jato.

As propostas ali contidas compõem um verdadeiro programa de governo, com sugestões que apontavam exatamente na direção contrário do que havia sido defendido pela candidata que venceu as eleições naquele mesmo mês. Em todas as áreas que abordava, os parágrafos da “Ponte” refletiam o pensamento da direita conservadora tupiniquim, com diagnósticos e proposições a respeito da política econômica, dos programas sociais, das reformas (previdenciária e trabalhista, entre outras) e também da política externa.

A ponte vira pinguela


As pinceladas que Moreira Franco oferecia como alternativas estratégicas para o Itamaraty significariam uma ruptura significativa com o que vinha sendo implementado em termos de relações externas desde 2003. Isso implicava a reorientação das articulações Sul-Sul, o abandono do fortalecimento do Mercosul e das iniciativas no âmbito da América Latina, o bombardeio das articulações em torno dos BRICS. Enfim, tratava-se de uma mudança drástica na performance de um projeto de Itamaraty dinâmico, em busca de um maior protagonismo e autonomia do Brasil no cenário internacional. De acordo com tal leitura tacanha, o caminho passava por colocar abaixo tudo o que havia sido realizada durante os governos de Lula e Dilma. Afinal, aquilo não teria passado de aventura populista e bolivariana.

E assim foi feito. A indicação do senador tucano José Serra para ocupar o posto de chanceler atendeu exatamente a esse propósito. Temer consolidou uma aliança estratégica com o PSDB e nomeou dirigentes e simpatizantes desse partido para cargos de relevância em seu governo. A concentração de poderes no Ministério das Relações Exteriores veio com a transferência da área de comercio externo para essa pasta, retirando tal atribuição e respectivas instituições da área do Ministério da Indústria e Comércio. Por outro lado, a ascendência de Serra sobre Temer lhe confere autonomia para promover o enorme desastre que vem caracterizando sua gestão até o momento.

A diretriz mais geral de sua orientação pode ser resumida no binômio liberalização-submissão. A obsessão desse setor do financismo com o desmonte do Estado e a implantação de um reino idealizado de um liberalismo impossível é a marca do Itamaraty sob nova direção. Além disso, a necessidade de fazer “tabula rasa” da administração anterior destrói as articulações protagonizadas pelo Brasil no cenário internacional e estabelece a diretriz da sujeição passiva à política externa norte-americana e demais atores do centro do capitalismo contemporâneo. Essa foi a recomendação para esvaziar a presença de nosso País como fator agregador do Mercosul e também como agente importante no âmbito dos BRICS.

Trump prega peça nos adeptos da submissão

Não bastasse a irresponsabilidade de levar a cabo tais medidas sem nenhuma discussão mais ampla na sociedade, faltou aos dirigentes recém chegados uma avaliação a respeito dos cenários futuros. Por exemplo, introduzir a variável relativa às realização das eleições presidenciais nos Estados Unidos e a eventual vitória de Donald Trump. O fato concreto é que os resultados daquele pleito e a recente posse no novo inquilino da Casa Branca deixam o Ministro do Itamaraty e a estratégia do governo de brocha na mão. Foi retirada a escada de uma aliança com os democratas ianques e as mudanças anunciadas pela nova direita radical por lá vêm recheadas de muito protecionismo e bastante nacionalismo.

O governo por aqui tenta passar a imagem de que as mudanças ocorridas em Washington não comprometem em nada a estratégia de Serra. Pelo contrário, alguns analistas mudam o foco e chamam a atenção para as oportunidades que se apresentariam para o Brasil, caso Trump consiga mesmo convencer o Congresso e a sociedade norte-americana a respeito das supostas vantagens desse verdadeiro passo atrás no protagonismo histórico de seu País na cena comercial internacional.

O milionário presidente radicalizou seu discurso de campanha e começa a anunciar medidas mais duras, a exemplo do muro a fronteira com o México, da redução das medidas no âmbito do NAFTA e polêmico Decreto retirando seu país do protagonismo do Acordo Comercial Transpacífico (TPP). É forçoso reconhecer que tais iniciativas podem realmente trazer benefícios indiretos para a própria economia brasileira, em função do vácuo gerado por essa postura mais defensiva dos Estados Unidos nas relações econômicas internacionais.

No entanto, a situação é totalmente outra quando se discute a questão da estratégia brasileira de inserção diplomática e sua política de alianças no plano global. A intenção de se colar na traseira dos Estados Unidos para servir como farol de orientação não tem mais como prosseguir. O cavalo de pau que vem sendo colocado em ação na política externa tradicional dos EUA desestrutura o desejo de uma orientação marcada pela submissão aos desejos daquele país. O sonho conservador de parcela de nossas elites entreguistas, em perfeita sintonia com a nata intelectual do tucanato, ruiu depois da posse do novo presidente em 20 de janeiro.

O Itamaraty deverá redefinir sua estratégia de forma urgente, pois o Brasil continuará a ser solicitado a contribuir com uma maior presença e intervenção na cena internacional. A postura passiva, retraída e de lambe botas dos desejos de Washington não mais bastará. Deverá ser retomada a iniciativa de articulação regional com nossos vizinhos e parceiros. Será necessária uma retomada de nosso protagonismo mais geral no espaço mundial, uma vez que ganham relevância os “novos” atores como a Rússia e a China.

Itamaraty necessita de rumos


Assim, soam cada vez mais vazias de sentido as palavras no interior do documento do PMDB, ao ponto que até mesmo o aliado de todas as horas não se conteve em desqualificar. Sim, pois até o ex-presidente Fernando Henrique reconheceu que o atual governo está mais uma pinguela do que para ponte. Vejamos aqui o que diz o parágrafo dedicado à política externa:

(...) “o Estado deve cooperar com o setor privado na abertura dos mercados externos, buscando com sinceridade o maior número possível de alianças ou parcerias regionais, que incluam, além da redução de tarifas, a convergência de normas, na forma das parcerias que estão sendo negociadas na Ásia e no Atlântico Norte” (...) [GN]

O discurso oficial de Temer é que as inciativas do Estado só atrapalham a suposta maior eficiência do capital privado. Tanto que a equipe econômica trabalha pelo desmonte de toda e qualquer presença pública na economia, em nome da supremacia do mercado. Por outro lado, o sonho liberal de promover uma amálgama com o principal agente do Atlântico Norte se revelou um verdadeiro devaneio de uma noite de verão. Ao contrário do que é apregoado por nossos liberais de botequim, a recuperação do setor exportador brasileiro passa, sim, por um maior protagonismo do governo federal no assunto. E a busca de uma intervenção no cenário de multilateralismo será uma exigência da realidade internacional, com a redução da presença norte-americana.

A novidade proporcionada pela entrada em cena de Trump choca o mundo inteiro. Desde seus vizinhos México e Canadá até os distantes países do Oriente. Desde os antigos parceiros da União Europeia até as indefinições relacionadas à Rússia e à China. O Brasil aguarda uma autocrítica de Temer e Serra, bem como a necessária redefinição da estratégia de inserção internacional do Brasil.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Fonte: O Vermelho

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Direito à cidade, luta proibida?

Guilherme Boulos

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Guilherme Boulos, coordenador do MTST detido hoje pela polícia paulista, explica por que o capitalismo contemporâneo não tolera metrópoles sem cercas

Trecho do livro Por que ocupamos? (Autonomia Literária, editora parceira de Outras Palavras no Outros Quinhentos). Foto da Mídia Ninja no despejo de 700 famílias da ocupação Colonial

O Brasil tem tantas mazelas sociais que às vezes não conseguimos ter a dimensão da gravidade de cada uma delas. A falta de moradia é um dos problemas mais sérios. Estamos entre os países com maior déficit habitacional do mundo, ao lado de Índia e África do Sul.

Déficit habitacional” é o nome que se dá para a quantidade de casas que faltam para atender a todos aqueles que precisam de um teto. Existem dois modos de definir este déficit: o quantitativo (número de famílias que não tem casa) e o qualitativo (número de famílias que moram em situação extremamente inadequada). Estes dois dados, juntos, formam o panorama do problema habitacional brasileiro.
O último estudo feito pela Fundação João Pinheiro, publicado em novembro de 2013, que é utilizado oficialmente pelo governo federal, mostra que o déficit habitacional quantitativo no Brasil é de 6.940.691 famílias. Isso significa que cerca de 22 milhões de brasileiros e brasileiras não têm casa. Os sem-teto são, portanto, mais de 10% da população do país. Como vive toda essa gente?
É preciso, primeiramente, deixar de lado a visão equivocada de que sem-teto são somente aqueles que moram na rua, em situação de extrema miséria e mendicância. Esse grupo é aquele que chegou ao limite da degradação causada pela falta de moradia, pelo desemprego e outros males do sistema capitalista. A maioria dos sem-teto, no entanto, não está em situação de rua e trabalha, ainda que muitas vezes na informalidade e sem direitos assegurados.
O mesmo estudo da Fundação João Pinheiro mostra que, destas 22 milhões de pessoas, cerca de 43% vivem em situação de coabitação familiar, isto é, moram de favor na casa de parentes, onde ocupam algum pequeno cômodo. Outros 31% gastam dinheiro demais com aluguel, ou seja, deixam de consumir o básico para sobrevivência pelo peso que o aluguel representa na renda familiar. Há ainda uma parte que vive em casas absolutamente precárias e outra, em cortiços. Estas são as condições de vida em que se encontram os sem-teto no Brasil.
Como dissemos, o problema se completa com o chamado déficit habitacional qualitativo, que se refere à falta de condições básicas para uma vida digna. Este número é maior que o anterior: são 15.597.624 famílias nesta situação, isto é, cerca de 48 milhões de pessoas.
Que condições são essas?
Segundo dados oficiais, o maior destes problemas, que afeta mais de 13 milhões de famílias, é a falta de infraestrutura e serviços básicos a uma moradia decente: luz elétrica, água encanada, esgoto e coleta de lixo. Para que se tenha uma ideia da gravidade do problema, mais da metade (63%) das famílias da região Norte do país vive na carência permanente de pelo menos um destes serviços básicos. Mesmo nas partes mais ricas do país, o problema é alarmante. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro tem mais de 700.000 famílias nesta condição.
Outro problema grave relacionado à inadequação de moradias é o adensamento excessivo de pessoas numa única residência. Cerca de 1,6 milhão de casas abrigam mais de três pessoas por cômodo, em geral cômodos pequenos. E uma de cada quatro dessas casas superpovoadas encontra-se no estado mais rico do Brasil: São Paulo. A este problema ainda se soma, no país, mais de 1 milhão de moradias que simplesmente não têm banheiro.
Quem são os brasileiros que fazem parte destes números assustadores?
Será que não há coleta de lixo e água encanada nos condomínios de luxo da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro? Será que falta banheiro em alguma mansão do bairro do Morumbi, em São Paulo? É claro que não.
Os brasileiros que sofrem com o problema de moradia – seja pela falta ou pela inadequação das casas, seja pela ausência de serviços básicos – são os trabalhadores mais pobres, em especial aqueles que vivem nas periferias urbanas. Os dados mostram: 67% das famílias que não têm casa no Brasil vivem com renda menor que 3 salários mínimos por mês.
No caso dos serviços básicos, a desigualdade é incrível. O Estado deveria garantir a todos as mesmas condições, independentemente de onde moram ou quanto ganham. Não é isso que eles dizem? Mas a realidade é bem diferente… Veja a tabela a baixo.
No Nordeste, 82% das famílias que ganham menos que dois salários mínimos sofrem com a carência de serviços, mas, no caso das que ganham mais que dez salários, o número desce para 2%. Quem acha que isso só ocorre no Nordeste está enganado: na Região Metropolitana de São Paulo as coisas não são muito diferentes: 67% das famílias com menos de dois salários sofrem com essa situação; no caso das famílias com mais de dez salários, o número é 1,7%.1
Vemos com isso que o problema da moradia reflete uma desigualdade social profunda. Quem sofre com o déficit habitacional tem nome e endereço: são os trabalhadores mais pobres, que moram nas periferias das cidades. Essa lógica da desigualdade se mostra nua e crua quando vemos o número de imóveis vazios no país.

Muito para poucos, pouco para muitos

Ao contrário do que parece, não faltam casas no Brasil. Há quase tantas casas quanto famílias para morar nelas. Mas, como vimos, existem milhões de pessoas sem-teto. Estranho isso, não é?
Vamos relembrar: são 6.940.691 famílias que não tem casa no país. Problema muito grave, principalmente quando a mesma pesquisa nos mostra que existem 6.052.000 imóveis vazios, sendo que 85% deles teriam condições de ser imediatamente ocupados. Ou seja, há praticamente tantas casas sem gente do que gente sem casa. Em tese, precisariam ser construídos poucos imóveis para resolver o problema habitacional brasileiro.
Apenas em tese, porque a maior parte dessas casas vazias – sem falar nos terrenos ociosos, onde não há edificação – está nas mãos de um pequeno grupo de grandes capitalistas, que ganham muito deixando as coisas do jeito que estão. No capítulo seguinte, veremos como eles atuam e a força política que têm.
É importante lembrar que esses milhões de imóveis vazios não incluem a chácara ou o apartamento da praia, que algumas famílias de renda média conseguiram adquirir por meio de seu trabalho. São apenas os imóveis permanentemente desocupados, em sua grande maioria usados para especulação imobiliária.
A contradição é gritante. E, se pensarmos bem, vemos que ela não ocorre só em relação ao problema da moradia. O Brasil é um dos maiores produtores de alimento do mundo e, no entanto, milhões passam fome. Poderíamos pensar muitos outros exemplos de uma lógica em que o direito dos ricos se impõe sobre o direito dos trabalhadores. Em nome do direito à propriedade de alguns poucos, se nega o direito à moradia para milhões. 
 
Moradia: direito ou mercadoria?

Todo cidadão tem direito à moradia digna. Pelo menos é o que diz o artigo 6° da Constituição Federal do Brasil.
Direito significa algo que deveria ser garantido de maneira igualitária a todos, sem distinção. A responsabilidade de garantir direitos é do Estado, que, para isso, cobra impostos e realiza (ou deveria realizar) investimentos.
Se a moradia digna fosse tratada de fato como um direito, ela deveria ser garantida a todos pelo Estado, sem distinção de renda ou região. Isso significaria garantir moradia “gratuita” – ou melhor, subsidiada – aos que mais precisam.
Vemos, porém, que não é bem isso o que ocorre. A falta de moradia e a precariedade dos serviços básicos afeta apenas os trabalhadores, em especial os mais pobres. A distinção entre direito para o rico e direito para o pobre é evidente.
Entender a moradia como direito significa pensá-la a partir da necessidade e do uso. Ao contrário, a lógica capitalista dominante trata a moradia – e todos os direitos sociais – a partir do valor medido em dinheiro, o valor de troca. Para o capital, pouco importa se há gente precisando de moradia: importa se há quem possa pagar por ela e trazer lucro às construtoras e donos de terra.
Tudo é transformado em mercadoria, independente das necessidades sociais. Se não fosse assim, seria inexplicável haver tantas casas vazias ao lado de tanta gente sem-teto. A moradia, além disso, é uma “mercadoria” muito cara para a maioria dos trabalhadores brasileiros. Durante muito tempo, foi quase um item de luxo.
O mercado habitacional brasileiro caracterizou-se historicamente por ser muito elitizado. Voltou-se para atender a chamada classe média e os ricos das grandes cidades. Esses segmentos sociais sempre encontraram créditos bancários e empreendimentos mais ou menos compatíveis com seus bolsos. Aos trabalhadores, restava o eterno aluguel e, principalmente, os loteamentos e ocupações nas periferias urbanas.
Esta mercantilização do direito realiza os lucros de importantes grupos econômicos. No caso da moradia, se o Estado cumprisse seu dever de garanti-la a todos, os especuladores de terra e as grandes construtoras perderiam dinheiro. O mesmo se passa com outros direitos. Se o Estado garantisse educação pública de qualidade a todos, as escolas e faculdades privadas deixariam de existir. A mesma coisa ocorreria aos planos de saúde se o serviço público de saúde fosse como deveria ser.
Enfim, transformar o direito em mercadoria prejudica a maioria, mas favorece a classe mais rica. E o Estado, que deveria garantir os direitos, o que faz em relação a isso?

BNH: primeiro programa habitacional do Brasil

Os programas habitacionais do Estado brasileiro não representaram jamais um contraponto à lógica de eliminação da moradia como direito. Ao contrário: aprofundaram o caráter excludente e mercantil desta lógica.
Na realidade, o Estado brasileiro desenvolveu apenas dois programas habitacionais relevantes ao longo de toda sua história: o Banco Nacional de Habitação (BNH), durante a ditadura militar; e o tão falado Minha Casa Minha Vida, a partir do governo Lula. Vejamos brevemente o significado destes programas.
O BNH pretendia ser, no início, uma forma de dar legitimidade ao governo dos militares depois do golpe de 1964. A proposta, expressa inclusive em documentos, seria transformar o trabalhador em proprietário (de um imóvel) e, assim, ganhar a simpatia dos mais pobres ao regime repressivo e antipopular dos generais.
Mas nem isso fez. As iniciativas do BNH voltadas aos mais pobres – seja no caso dos projetos de desfavelização no Rio de Janeiro ou no caso das Cohabs – resultaram em fracassos estrondosos.
Isso ocorreu por conta da lógica bancária e empresarial do BNH. Não havia praticamente nada de subsídio, isto é, o valor completo do imóvel tinha que ser pago pelo mutuário do programa. Além disso, as prestações eram elevadas e seguiam as normas do crédito bancário privado. O que isso quer dizer?
Quer dizer que o BNH não fez nada diferente de um banco privado ou de uma grande empreiteira. Seu objetivo sempre foi o lucro com a produção e financiamento de moradias. A moradia, tratada pelo próprio Estado como mercadoria, permaneceu sendo privilégio dos que podiam pagar alto por ela.
Das cerca de cinco milhões de casas financiadas pelo BNH, apenas 25% (uma em cada quatro) foram destinadas a famílias com renda menor que cinco salários mínimos. E isto correspondeu a somente 12% do total de recursos aplicados pelo banco. É muito pouco.
Ou seja, o BNH financiou casas para a classe média e não para os trabalhadores mais pobres, que, como vimos, representam 90% do déficit habitacional. Seu maior objetivo sempre foi dar lucro, nunca garantir o direito à moradia.
Depois da falência do BNH, em 1986, o país ficou mais de vinte anos sem ter qualquer política habitacional importante. Até que, no governo do presidente-operário, veio o Minha Casa Minha Vida, com a promessa de resolver todos os problemas.
Será? Vamos ver passo a passo como as coisas aconteceram.

Minha Casa Minha Vida: quem ganha com isso?

O programa foi lançado em fevereiro de 2009, alguns meses depois da explosão da maior crise econômica deste século, em 2008, nos Estados Unidos. O estouro desta crise teve como pavio exatamente o mercado imobiliário norte-americano. Foram vendidas muitas casas nos Estados Unidos a crédito, com valores excessivamente altos, por conta da especulação imobiliária. Com o valor dos terrenos lá em cima, muitas empresas e bancos viram aí uma oportunidade de engordar mais ainda seus lucros: emprestavam dinheiro a quem queria comprar uma casa, tomando o próprio imóvel como garantia de pagamento. Como o valor das casas crescia cada vez mais, o negócio era atraente aos capitalistas.
O problema é que muitos destes compradores, em geral trabalhadores norte-americanos, não tinham como pagar as prestações. Por isso, algumas empresas e bancos – que já tinham ganhado muitos milhões de dólares – decretaram falência. As casas deixaram de ter compradores. Muitas famílias foram despejadas, já que a casa era a garantia do empréstimo. E a crise se alastrou.
É claro que o buraco desta crise é muito mais embaixo. Se formos mais a fundo, veremos que ela está longe de ter acabado. Ainda ouviremos falar muito de crise nos próximos anos. Mas o que nos interessa aqui é que, depois de 2008, os investimentos na construção civil caíram brutalmente no mundo todo. Os bancos deixaram de oferecer crédito e, sem crédito, nem as empresas capitalistas produzem, nem os trabalhadores compram.
O que isso tem a ver com o Minha Casa Minha Vida? Ora, por estas razões, 2009 caminhava para ser um ano com poucos lucros – provavelmente com prejuízos e até falências – para grandes empreiteiras do Brasil. E neste ponto chegamos ao grande fator que motivou a proposta do Minha Casa Minha Vida pelo governo federal.
O programa foi desenvolvido com o objetivo central de salvar o capital imobiliário, injetando, em sua primeira fase, R$ 34 bilhões em recursos públicos na iniciativa privada. Neste ponto deu certo: as empresas do ramo puxaram a alta da Bolsa de Valores de São Paulo em 2009 e atraíram interesses no mundo todo. Hoje, 75% das ações das maiores construtoras do país estão nas mãos de investidores estrangeiros.
Assim, as empreiteiras receberam o presente de R$ 34 bilhões para aliviar sua crise. O sistema é simples: o governo dá o dinheiro, a empreiteira constrói e o governo apresenta os compradores. Ou seja, não há nenhum risco para o capitalista nem necessidade de gastos com a venda – corretores, propaganda etc. E tudo com dinheiro público.
Mas alguns companheiros poderiam questionar: M esmo que favoreça as empreiteiras, está construindo moradia para quem precisa e resolvendo o déficit habitacional, não é? Isso foi o que afirmou o então presidente Lula, ao falar que o Minha Casa Minha Vida representava uma “reconciliação entre o capital e o trabalho” – ou seja, atenderia aos interesses de todos, sem conflitos.
O problema é que, como dizia o jornalista Joelmir Beting, na prática a teoria é outra. Na verdade, ao definir como meta central atender os interesses do capital, o programa manteve a mesma lógica que vimos no caso do BNH. Cerca 75% dos recursos e 60% das habitações do programa foram destinados a famílias com renda maior do que três salários mínimos, exatamente porque – em se tratando de imóveis mais caros – as empreiteiras ganham mais.
Apenas 40% das moradias da primeira fase do programa são para famílias com renda menor do que três salários mínimos, o que representa menos de 10% do déficit habitacional nesta faixa de renda. É um filão que interessa menos às construtoras.
Além disso, ao deixar nas mãos das empresas todo o processo de projeto e construção, surgiram as piores aberrações. Os conjuntos habitacionais são construídos em regiões muito periféricas, com pouca infraestrutura, já que os terrenos aí custam menos para as empreiteiras. A qualidade e tamanho das moradias são também os piores possíveis. Para as famílias com menos de três salários, o parâmetro do tamanho das casas é de 39 metros quadrados. São as conhecidas “caixas de fósforo” populares.
Por outro lado, é fato que o programa representou um avanço importante em relação à quantidade de subsídio para a aquisição da casa, especialmente para famílias com menos de três salários: um volume de subsídios expressivo e inédito. Mas isso, como vimos, se combina com localização ruim, qualidade precária e quantidade muito insuficiente de moradias para os mais pobres.
O ex-presidente Lula não conseguiu conciliar o capital com o trabalho. Assim como nem o mais hábil desenhista pode fazer um círculo quadrado. Mas conseguiu outra conciliação, a que realmente pretendia com o programa: conciliou a garantia de impressionantes doações de campanha das empreiteiras para sua sucessora nas eleições de 2010, com milhões de votos de trabalhadores, que acreditaram na propaganda de que seria sua vez de morar dignamente.
Os dados deste parágrafo referem-se ao estudo realizado pela Fundação João Pinheiro em 2009, já que o estudo de 2010 não incluiu a tabela de inadequação de moradia por faixa de renda.