Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade
Clic sobre o livro (download gratuito). LEIA E DÊ SUA OPINIÃO

sábado, 7 de abril de 2012

Alfredo Bosi: Ler com a alma


Há muito Alfredo Bosi é reconhecido como um dos mais importantes críticos literários brasileiros. Afeito à linha de leitura pautada pela conjunção de formalismo literário e implicação histórica, o autor de Dialética da colonização é dono de uma obra que resolve com felicidade os impasses instituídos por correntes analíticas refratárias à pluralidade.



Nesta entrevista, concedida a estudantes da pós-graduação da UFRJ (Eduardo Rosal, Heleine Domingues, Luiz Guilherme Barbosa, Marcos Pasche, Mayara Guimarães, Priscila Castro, Roberto Lota e Wellington Silva), no Centro de Estudos Avançados da USP, do qual é coordenador, Alfredo Bosi fala detidamente de seu mais recente livro — Ideologia e contraideologia —, recapitula seu percurso intelectual e destaca a importância do Padre Antônio Vieira para as letras do Brasil.

• Em Ideologia e contraideologia, a crítica literária praticamente não aparece. A escrita de um livro dedicado à análise de idéias sociológicas e filosóficas é fruto de um projeto antigo, talvez possibilitada no momento em que se deu sua aposentadoria, ou fruto de um caminho novo que o senhor pretendeu explorar recentemente?

Alfredo Bosi - Essa pergunta me interessa de perto porque me ajuda a fazer uma auto-análise até de um possível projeto intelectual. Acredito que essa preocupação em definir melhor certas idéias, certos valores culturais, venha de longe. Pelo menos, eu poderia datar da concepção de Dialética da colonização. Quando escrevi Dialética da colonização, no final dos anos 1980, publicado em 1992, já minha preocupação era construir essa ponte entre o universo literário — que é um universo de imaginação, que se projeta evidentemente à subjetividade dos autores — e algo público, uma atmosfera cultural, social, pública.

Fui educado, bem no princípio da minha formação, na leitura das obras de Benedetto Croce, que era realmente o centro dos estudos literários da Itália. Mas fui educado já na Universidade de São Paulo, quando estudioso e depois professor de literatura italiana, em uma estética que insistia na separação, na divisão. Isto é, deixava bem claro que uma coisa era o conhecimento do mundo por meio de idéias e valores — conhecimento de que a filosofia é o centro, mas que depois foi ampliado, na modernidade, mediante as ciências humanas, sociologia, antropologia, ciências políticas, psicologia —, e outra o conhecimento por intuição.

O conhecimento por idéias tem uma relação com o real de fidelidade, em que sensibilidade e imaginação devem conter-se para que o mundo da relação entre idéia e realidade apareça na sua nudez. Ao passo que o conhecimento por imagens, o conhecimento intuitivo, não precisa ter uma correspondência direta com o mundo empírico, histórico. Isto é, quem escreve um romance, mesmo que queira fazer um romance histórico (como acontecia muito no século 19 e continuou acontecendo em grande parte do século 20), mesmo quando deseje realmente ser fiel à historicidade, é claro que não precisa comprovar documentalmente a veracidade dos fatos. Então há, mesmo no romance histórico, uma imbricação do documento com o imaginário. Essa concepção de Croce parece muito radical, como quem diz: “Ciência é ciência, filosofia é filosofia, sociologia é sociologia, arte é arte. Arte é imagem e sentimento. As ciências humanas têm uma relação direta com a realidade, ou procuram ter, e têm obrigação de dar ao seu leitor a veracidade de suas conclusões”.

Essa foi minha primeira educação estética, pela qual o mundo da imaginação e do sentimento formava um espaço próprio que deveria ser estudado na sua especificidade. Mas as diferenças entre os sujeitos literários, os autores, é que realmente marcam a história da literatura, mais do que os grandes blocos, como o renascimento e o barroco. É preciso que se preocupe realmente com o diferencial individual. Croce chegou a dizer uma coisa que escandalizou os historicistas da época, hoje menos: que a melhor história da literatura seria por autores. Então você pensava: Dante e sua época, Petrarca e sua época, quer dizer, o sujeito em primeiro lugar, enquanto o historicista faz o contrário, não é? Ele primeiro estuda as grandes características dos movimentos e depois situa os autores. Bom, essa posição radical do Croce me ajudou bastante, pois me deu uma base teórica para dar à literatura o que é da literatura, dar à poesia o que é da poesia, mas, ao mesmo tempo, essa posição ficava um pouco marginal em relação à sociologia da literatura, as relações entre antropologia e literatura, entre cultura e literatura. Tudo isso, como se dizia, era interessante, só que não interessava. As pessoas achavam que deveriam fazer a relação, principalmente quem tinha uma formação marxista ou hegeliana, as duas posições sociológicas mais fortes.

Havia um mal-estar: ou se estabelecia uma autonomia da escrita de tudo que ficava em torno, e se focava inteiramente na intuição, na criação, que é a posição croceana; ou então o contrário, colocava-se luz no período todo e tudo era iluminado, e os autores recebiam luz deste universo de valores e idéias, que seria a posição da sociologia da literatura, do marxismo; em geral, das posições culturalistas. O importante é saber o que há de comum em vários autores para flagrar o espírito do tempo, da época. Essa é uma expressão profundamente historicista que vem de Dilthey, filósofo do final do século 19, criador da idéia de que a gente precisa estudar os estilos históricos, pois, por mais que nós sejamos individualizados, personalizados, quem for ver de longe, dirá: “Ele quis ser muito original, mas veja quantos escritores pensaram igual. Então havia uma coisa que os transcendia — os estilos de época”.

• Como o senhor reagiu diante dessas duas possibilidades de história da literatura?
AB - Isso que estou colocando passou a ser um problema para mim, não tinha uma solução. As soluções opostas eram drásticas: ou a autonomia do texto literário, ou o que na Itália se falava “heteronomia”, quer dizer, não há nada que seja específico, tudo tem relação com o outro, que é um outro que o transcende. A primeira posição acabou sendo chamada de idealista, porque ela evidentemente dava o maior crédito possível à originalidade individual. E a segunda posição era realista, ou, no caso, marxista materialista.

Quando eu estudei, essa posição marxista não tinha ainda hegemonia nenhuma, como depois veio a ter em certos momentos da história cultural, sobretudo nos anos 1970. Nós não nos preocupávamos em fazer uma relação fixa com a ideologia da época, nos preocupávamos em entender o autor na sua especificidade. Mas o tempo vai mudando, os acontecimentos históricos vão nos pressionando. Eu escrevi História concisa da literatura brasileira sob o fogo da ditadura militar, portanto, não era possível que me subtraísse à importância das ideologias dominantes — às quais, porém, já naquela época eu contrapunha algo que eu não chamava de contraideologia, mas que sempre procurava mostrar uma intuição que eu tinha, que não era ainda perfeitamente formulada. A intuição era que mesmo nesses períodos tão fechados, como realismo e naturalismo, ou então, voltando atrás, ao barroco, a gente encontraria diferenças internas, que seriam quase tensões internas. Eu sentia que isso era importante, mas não teorizava a respeito. O período é este, mas você encontra barroco e antibarroco dentro do mesmo período; o período é romantismo, mas você encontra quatro ou cinco romantismos na literatura brasileira, e isso é bastante evidente: a primeira, segunda e terceira gerações, muito próximas, que vão dos anos 1840 aos 1870; em 30 anos você tem literaturas conservadoras como Gonçalves e Magalhães até Castro Alves, e tudo é romantismo. Mas então o que é esse romantismo que tem diferenças tão profundas?

Eu sentia que essas teorias de quem faz história literária pagam muito tributo aos estilos e períodos. Evidentemente, ainda mais por vias didáticas, não se pode deixar de pensar nos grandes períodos, como eu pensei à época. Só que à medida que eu escrevia o livro, verificava que era insuficiente só demarcar as características — era muito escolar, naquele sentido menor, “romantismo é a, b, c, d, e”, como faziam os cursinhos antes e ainda fazem; virava uma coisa mecânica. E é assim mesmo, pois há quase que uma imposição de que é preciso entender os grandes períodos. É claro que, por trás disso, num nível alto, havia o pensamento de Dilthey, de que Carpeaux, no Brasil, foi o grande divulgador na História da literatura ocidental. É uma história que acredita profundamente na unidade dos grandes períodos, mas como Carpeaux era um espírito dialético, que tinha lido muito Hegel, e depois Marx, ele foi dialetizando dentro de cada grande período. Foi meu mestre, meu grande mestre, a quem dediquei esse meu livro em 1970, uma época em que ele já estava se afastando da crítica literária e entrando numa militância antiditadura, uma militância que acabava escrevendo em jornais dos estudantes de esquerda. Grande homem, mas cuja História da literatura ocidental foi para mim o paradigma.

• O desenvolvimento do conceito de contraideologia passa também por Dialética da colonização?
AB - Nos anos que antecederam a concepção da Dialética da colonização, eu estava diante desse problema a ser resolvido, e já tinha escrito uma história literária e várias coisas sobre poesia, mas ainda não tinha centrado na história das ideologias do Brasil. Então, ao escrever esse livro, uma reunião de ensaios de períodos diferentes, realmente precisei enfrentar o problema das ideologias, que são pontos de vista quase grupais, coletivos. Quando se lê um romance, procura-se o ponto de vista do autor, primeira pessoa, terceira pessoa, e isso está sendo cada vez mais aprofundado com a crise da idéia do autor e do sujeito, mas é o ponto de vista que se procura flagrar. Agora, quando se pensa num conjunto grande de obras, não só literárias, mas extraliterárias, qual seria o ponto de vista? A ideologia, de alguma maneira, é o termo genérico que corresponde ao específico ponto de vista da literatura. O ponto de vista está para o romance assim como a ideologia está para o conjunto de obras literárias e extraliterárias de um período.

Antes de chegar em Ideologia e contraideologia, eu já tinha enfrentado de algum modo essa problemática. Quando estudei Anchieta, Vieira, Gregório de Matos, fui saltando para Alencar e Antonil, e então você vê que para mim era muito importante ler estes autores num embate com o tempo, e cada um deles, de alguma maneira, absorvia o seu tempo, mas respondia ao seu modo. Eu voltava ao Croce, que estava lá escondido, para mostrar que havia ideologia, mas que diferença entre eles! Entre Antonil e Vieira, por exemplo. Os sonhos de Vieira, as quimeras de Vieira, não eram as de Antonil, que foi seu secretário (má idéia, pois Antonil o traiu). Enfim, sabemos o quanto Vieira debateu-se contra o seu tempo, mas acho que seria muito complicado tirá-lo do barroco, quando tantos de seus tópicos são barrocos. Então, esse livro, que chega até Castro Alves, Lima Barreto, vai sempre acompanhando os estilos de época e essas reações individuais, até chegar o momento em que eu realmente dei as costas ao universo especificamente literário e fui estudar a ideologia positivista do Rio Grande do Sul.

Esse foi um momento em que estava preocupado com a história da colonização no Brasil antes e depois da independência, com a maneira como as idéias aqui frutificaram, entraram fundo na nossa vida política. Então, o estudo sobre o positivismo, que é a arqueologia do Estado por evidência, é uma espécie de germe do que viria a ser Ideologia e contraideologia, isto é, um estudo específico de uma determinada ideologia, a positivista, tão importante na formação da República, sobretudo dos militares da república, depois dos gaúchos, e que vai dar em Getúlio Vargas e na modernização autoritária, que é uma modernização progressista.

Mais tarde isso continuou dentro de mim, e nos anos 1990 fiquei preocupado, porque se entra em polêmicas com outras correntes. Há o marxismo ortodoxo, do qual me afastei, ficando mais próximo da Escola de Frankfurt, de Adorno, sobretudo, que dá enorme importância à subjetividade, do ponto de vista individual, mesmo sendo um escritor e filósofo de origem marxista. Adorno diz especificamente que a grandeza do poema é aquilo que a ideologia esconde. É uma frase muito significativa, poderia ser até um lema do que eu escrevi. Não conhecia esta frase quando escrevi Poesia e resistência, mas dava uma bela epígrafe.

Clique aqui para ler a entrevista na íntegra

Fonte: Rascunho / Gazeta do Povo