Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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domingo, 21 de junho de 2020

Em tempo de pandemia... eles se encontraram.




Morava em uma pequena cidade do interior paulista. Era o terceiro filho de um casal de comerciantes. Os seus 10 anos foram comemorados junto com o nascimento da irmã caçula que, a partir de então, lhe roubou todas as festas e muito mais. Havia momentos em que pensava como faria para sufocá-la. Perdia-se em fantasias tenebrosas.  Trocava o travesseiro – viu um filme em que o ladrão matou a dona da casa com uma almofada – pelo cobertor, depois voltava porque já havia a experiência bem-sucedida do ladrão e ninguém viu, nem ouviu. No dia em que Betinha completou dois anos, ela estava dormindo depois do almoço. Todos da casa preparavam, na cozinha, a festa para mais tarde, com os enfeites e a toalha da mesa cor de rosa. Maurício sentindo muita raiva, decidiu que sua irmã precisava desaparecer imediatamente. Iria perder a comemoração do seu aniversário, mas já não tinha mesmo festa. Era tudo para ela, a gracinha da família.  Foi até a cozinha verificar se estavam mesmo todos lá. Conferida a situação, passou pela sala, pegou uma almofada e subiu para o quarto onde dormia a queridinha da mamãe.

Quando se debruçou no berço, Betinha acordou, olhou para ele e sorriu, levando as duas mãozinhas no rosto do irmão à guisa de carinho. Ela puxou o cabelo dele e ria, gargalhava vendo-o todo despenteado. Ele a pegou no colo, esqueceu de seu propósito – que propósito? - e começou a rodopiar com ela.

Maurício estava no seu quarto, na pensão onde morava, há quatro anos. Escolhera o bairro Butantã por estar perto da USP, estuda lá, terminara o curso de filosofia. Ficou querendo entender o motivo de aquela cena vir à sua cabeça, após tantos anos. A terapia já dera conta de mostrar que ele não era um assassino. Até riu lembrando-se da cena que montara no psicodrama e da farra que Belinha fez quando soube.

Formara-se em dezembro, seu pai foi o único que pôde vir. Os dois foram juntos para casa e depois de um mês de férias, Maurício voltou para continuar as aulas que dava num cursinho e começar o mestrado.

Agora, estava preso naquela casa sem poder dar, nem ter aulas. A quarentena o pegou de calças curtas. Não estava preparado para ficar no isolamento. A pensão lhe fornecia o café da manhã, mas as outras refeições ele as fazia na Universidade. A dona da pensão lhe avisou que iria para a casa da filha e falou que a moça da limpeza ficaria na casa e continuaria a lhe dar o café, mas somente na primeira semana. Então, ele já não tinha nem mais o café, mas a cozinha estava à sua disposição. Grande ironia! Não sabia sequer fritar um ovo. 

Nos três primeiros dias, foi até a padaria e comprou pão e queijo que passaram a ser suas refeições. No quarto dia, seu estômago avisou que não aceitaria mais os dois ingredientes. Ainda titubeou, pois não sabia cozinhar, mas resolveu ir ao supermercado para comprar comida congelada. Ao ver os preços, teve um choque, seu dinheiro não daria para comer durante uma semana. Pensou em frutas e salada. Novo choque, as frutas competiam com os congelados. Comprou arroz, feijão, ovos e alguns legumes. Entre triste e irritado foi para casa. 

No caminho, ao passar por uma pracinha, tropeçou, caiu e suas sacolas com todas as compras se espalharam. Soltou um palavrão e ouviu uma vozinha gritar: - Ih! Não pode dizer nome feio. – Ainda sentado devido ao tombo, viu um garoto vindo em sua direção e logo começar a devolver tudo às sacolas. Quando estava com todas as compras dentro novamente, agradeceu a ajuda e, só então, olhou direito para o menino e viu que estivera chorando. Estava com roupas bem usadas, mas limpinhas.

- Que idade você tem?
- Já tenho 12 anos – Maurício repetiu: - 12 anos, a idade da Betinha, minha irmã caçula. – Pensou que agora sabia porque acordara se lembrando da maledeta cena. 
- Qual o seu nome?
- Marcos.
- O meu é Maurício. Muito prazer, Marcos.
- Muito prazer, Maurício.
- Por que estava chorando?
- Minha mãe foi levada para o hospital. – Maurício ficou assustado e fez um esforço para se lembrar de onde o menino havia colocado a mão e também se afastou um pouco, embora estivesse com máscara e luvas.
- Você mora com quem mais? Seu pai?
- Não. Só moro com minha mãe. Vim para a praça porque fiquei com medo de ficar sozinho. Minha mãe não me deixa sair de casa, nem para ir à escola. Ela diz que é perigoso pegar uma doença feia, mais feia que o Bozo.

Maurício achou graça e perguntou se ele se referia ao palhaço e o menino muito sério respondeu: 
- Não. O tal que roubou tudo dos empregados. Mãe disse que ficou sem emprego por causa dele. Não gosta de gente que nem nós. Também não gosta de mulher, nem de boiola, nem de preto, nem de índio. Você é boiola?
- Não. - Num impulso, Maurício chamou: - vem comigo. Você sabe cozinhar?
- Sei fazer arroz.
- É mesmo?! Então vamos logo porque estou morrendo de fome e você vai me ensinar a fazer arroz.  

Foram andando e Marcos quis ajudar a levar as sacolas, mas Maurício agradeceu. Ele já estava achando que se deixara levar pela fome e não sabia o que fazer com o menino, cuja mãe podia estar com o Corona vírus. Na medida em que andava, ia pensando em como sair daquela situação. Percebeu que não conseguiria retirar o convite e deixar o menino ao deus dará. Ele próprio estava com muita fome, sabia que Marcos deveria também estar. Ao chegar na pensão, retirou o sapato e pediu para seu companheiro fazer o mesmo. Deixou as sacolas na entrada e foram ambos para o banheiro no apartamento onde Maurício morava. Lá tirou a roupa que separou e fez o garoto também ficar nu e entrar para debaixo do chuveiro. Pegou uma camiseta sua e deu para ele se vestir.

Foram para a cozinha. Parece que o menino sabia mesmo fazer arroz e, como não alcançava o fogão, foi dando a receita e Maurício fazendo. Enquanto o arroz cozinhava, trocaram ideias de como poderiam comer os ovos. Chegaram ao consenso de que o mais fácil era cozinhá-los. Maurício colocou a água no fogo com meia dúzia de ovos.  A fome era grande demais, comeram uma banana cada um e um copo de leite.

Com a fome um pouco aplacada, Maurício foi lavar as roupas do menino. Contente por saber como fazer já que suas roupas, quando o bolso está vazio, o que significa a maior parte dos dias, ele lava suas roupas e a dona da pensão não disponibiliza a máquina.

- Maurício, Maurício – Era um chamado urgente. – O arroz está queimando! 
- Com o fogo desligado, Marcos falou que precisava provar para ver se devia pôr mais água. Maurício, cuja fome voltara maior ainda, quis ignorar o aviso, mas a voz da mãe falou mais alto e Marcos: - Mãe fala que precisa provar. – Deu a colher para o rapaz e insistiu: - prova.
Com um grande suspiro, a prova foi feita e ignorada, porque o arroz ainda estava meio duro, mas os ovos já estavam no ponto. Resolveram comer.

Depois que comeram, Maurício lavou os teréns e Marcos falou que a mãe punha roupa para secar atrás da geladeira. Foi pegar sua roupa no varal, mas não alcançou e os dois riram da figura do menino com a camiseta que quase chegava a seus pés. O rapaz ajudou e o menino copiou o que vira a mãe fazer.

Maurício falou que precisava conversar sério com o garoto que foi logo falando:
- quando minha roupa secar, é pra mim se mandar? – Maurício ficou penalizado, mas aproveitou os erros para aliviar a tensão: - Olha aqui, minha professora me ensinou que mim só come capim. – O menino olhou assustado e perguntou: -sua professora te ensinou o quê?! Maurício riu e falou: - você está achando que ela me ensinou a comer capim?!  - Foi?!

- Não. Você disse pra mim se mandar. O mim não faz nada quem faz é o eu. Então o certo é dizer para eu me mandar. – Notando que os olhos do garoto se enchiam de lágrimas, Maurício continuou: -  ah! Não precisa ficar chateado, eu entendi o que você falou e vamos conversar para nos conhecer melhor.

Os dois se acomodaram ao redor da mesa da cozinha, que, agora, era só deles já que não havia mais ninguém na casa. Maurício ficou emocionado com o que ouviu. Marcos mora com a mãe que vende sacos de aniagem para uma fabriqueta de ninhos de passarinhos. Ela busca os sacos em lojas de atacado que recebem os sacos embalando algumas mercadorias e os cortam ao meio para facilitar a retirada do que está dentro e os descartam. Luzia – é seu nome – ela os costura e vende bem mais barato do que os sacos inteiros, não usados.

Marcos explicou que a mãe, muitas vezes, fica doente e a bombinha que usa não adianta, ela vai ficando com falta de ar. Desta vez, Marcos correu e pediu para a vizinha ir ajudar porque a mãe estava ficando roxa e ele, muito assustado.  Outro vizinho que tem um caminhãozinho levou Luzia.

Maurício, depois de muitas perguntas, acabou sabendo que alguém que mora perto da Luzia tem um celular. Ligou e quase entra em colapso, soube que Luzia havia morrido na porta do hospital “Também – disse a dona do tal celular – não iriam deixar ela entrar. Ainda bem que o filho não apareceu por aqui, porque um fulano que diz que é tio dele quer levá-lo para pedir esmola.”  Marcos estava no banheiro e Maurício, em pânico, completamente desarvorado. Pelo que o menino falou, ele e a mãe eram muito pobres, mas ela o cuidava com muito carinho. Não tinham mais ninguém. Não conhecia seu pai. A mãe contou que fugiu de casa para se casar e o pai morreu quando ele tinha só três meses. Não sabe nada dos avós. Nestes últimos dias, a mãe não deixou ele ir à escola e ela não podia ir buscar os sacos por que as lojas estravam fechadas, mas ela não deixava ele passar fome. 

Quando Marcos voltou, Maurício só sabia de uma coisa, os dois passariam a tal pandemia juntos.