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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Fragmentos de discursos: Oswald visto por A.Candido




Antônio Cândido

Antropofagia era “estratégia para construir não apenas a sua visão, mas um outro mundo, o das utopias que sonhou com base no matriarcado”

Por Antonio Candido

Os trechos a seguir foram extraídos de um longo ensaio, “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, escrito em 1970, pelo crítico Antonio Candido, e publicado originalmente no livro “Vários Escritos”.

Na época, o estudo foi saudado por Rudá Andrade, em carta ao ensaísta, pelo fato de “esclarecer certos pontos-chaves da obra-vida do escritor”. Segundo o filho de Oswald, o trabalho constituía-se numa “bela abertura para novos estudos”, assim como revelava o “carinho pelo homem e a objetividade intelectual”.

Por razões diversas, as nossas escolhas recaíram, modestamente, em compor uma espécie de fragmento, no qual fosse possível, ao leitor, obter um retrato próximo da belíssima prosa do ensaísta, ao mesmo tempo em que mantivesse alguns dos elementos mais instigantes do seu significado.

Este foi um dos aspectos pretendidos. No entanto, existe um outro, mais ambicioso. Diz respeito ao fato de imaginar os primeiros contatos de alguém com as digressões do nosso crítico maior. E nesse exato momento, esse leitor anônimo ser estimulado a procurar saber mais ainda sobre o escritor modernista, a sua obra e o seu tempo.(Theotonio de Paiva, editor da seção especial “Oswald 60”)

Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade


Por Antonio Candido

Hoje, sou um pouco mais velho do que ele era quando o conheci, e já me acostumei a ouvir dos moços as mesmas perguntas que eu fazia aos mais velhos. As mesmas não. Os de agora perguntam coisas mais objetivas e mais ligadas ao interesse pela obra, porque hoje é que florescem os verdadeiros chato-boys1. Nós ainda não queríamos deslindar o anedotário que o cercava como garoa singular.

“É verdade que é irmão de Mario de Andrade e brigou com ele?” “É verdade que casou dez vezes em várias religiões?” “É verdade que roubou uma moça na Escola Normal da Praça?” “É verdade que prega o amor livre?” “É verdade que baleou os estudantes de Direito, num tiroteio, do alto de uma escada?” “É verdade que andou com a quadrilha do Pulo dos Nove?”

Nada era verdade, embora nalguns casos houvesse uma semente real do boato inchado em volta. Mas esse Oswald lendário e anedótico tem razão de ser: a sua elaboração pelo público manifesta o que o mundo burguês de uma cidade provinciana enxergava de perigoso e negativo para os seus valores artísticos e sociais. Ele escandalizava pelo fato de existir, porque a sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o meio com a simples presença.
[...]
De um homem assim, pode-se dizer que a existência é tão importante quanto a obra. Pelo menos a nós isto parecia evidente, porque o víamos intervir, vituperar, louvar até as nuvens, xingar até o inferno, aclamar e depois destruir, remexendo sempre com uma paixão em brasa pela literatura. “Admito ofensa pessoal”, dizia, “mas não admito burrice em relação à minha obra”. De fato, só o vi brigar por divergências literárias e, nalguns casos, políticas. É nesta chave que a sua integridade deve ser definida. Quanto ao resto, mandava as normas e os princípios para o devido lugar.

Ele era tão complexo quanto contraditório, que a única maneira de traçar o seu contorno é tentar simplificações mais ou menos arbitrárias. Como explicar, de fato, a coexistência permanente, dentro dele, de um bom e mau escritor? De um passadista e um anunciador do futuro? De um discernimento infalível e áreas da mais completa opacidade? Mas destes choques e outros muitos é que se formava o homem singular, às vezes quase ilhado no seu tempo.

Tomemos, como tentativa, apenas dois traços com generalidade bastante para definir aspectos comuns à sua personalidade humana e literária: devoração e mobilidade.

Devoração é não apenas um pressuposto simbólico da Antropofagia, mas o seu modo pessoal de ser, a sua capacidade surpreendente de absorver o mundo, triturá-lo para recompô-lo. Frequentemente a inteireza da sua visão precisa ser elaborada pela percepção do leitor, pois no seu discurso o que ressalta são os fragmentos da moagem de pessoas, fatos e valores. Daí a sua atitude constante de preensão, traduzida na curiosidade, na insistência em manter contato com os outros, usá-los de todas as maneiras para os transformar em substância de enriquecimento pessoal. A este propósito, lembro um traço característico da sua fisionomia: os olhos arregalados e fixos, a boca aberta, um fácies imobilizado na absorção, que de repente se desfazia na fuzilada de risos, trocadilhos e conceitos. Imaginemos que esta aparência simbolize a abertura sôfrega em relação ao mundo.
[...]
Nisto tudo vejo a confirmação do traço que estou sugerindo: fome de mundo e de gente, de ideias e acontecimentos. Daí a sua devoração não ser destruidora, em sentido definitivo, pois talvez fosse antes uma estratégia para construir, não apenas a sua visão, mas um outro mundo, o das utopias que sonhou com base no matriarcado.

Apesar de muito patriarcal nos gostos e na conduta, o que havia de ruim no mundo lhe parecia vir do patriarcalismo, causador da propriedade, da sociedade de classes, da exploração do homem, da mutilação dos impulsos. A sua atividade política se entroncava neste pressuposto e era uma espécie de técnica devoradora (aí sim, em sentido arrasador) do mundo burguês oriundo da supremacia imemorial do pai. O seu comunismo foi profundamente vivido – comunismo do decênio de 1930, romântico e libérrimo, significando não apenas anticapitalismo e anti-imperialismo, mas aceitação da arte moderna, ataque desabrido às coisas estabelecidas, desafogo dos costumes. Foi o tempo do jornal O Homem do Povo (1931) e da militância intensa com a admirável Patrícia Galvão (Pagu)2.
[...]
No fundo, o seu timbre era um certo era um certo anarquismo, que permite vislumbrar a liberdade total pela dissolução das amarras. No prefácio de Serafim Ponte Grandeafirmou que o seu modo de ser inicial, católico e burguês, fora compensado por este anarquismo espontâneo de boêmio, que depois teria superado pela adesão ao marxismo. Engano. Felizmente nunca o superou, porque ele foi o segredo da sua elasticidade e um dos fatores da sua mobilidade sem fim.

E aqui chegamos a este grande princípio da sua personalidade, vida e obra. Quando é boa, a sua composição é muitas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo a certas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse, a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo, pressupondo tanto o elemento ausente quanto o presente, tanto o implícito quanto o explícito, obrigando a nossa leitura a uma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe ao fluxo da composição tradicional. Frequentemente a sua escrita é feita de frases que se projetam como antenas móveis, envolvendo, decompondo o objeto até pulverizá-lo e recompor numa visão diferente.

Também na sua visão da sociedade avulta o senso do que é móvel, a miragem de uma transição necessária ao matriarcado redentor, sob a percussão dos movimentos ideológicos que dissolvem as estruturas. E em sua vida procurou sem cessar a renovação em todos os campos, para evitar o pecado maior da esclerose, da parada que lhe parecia negar a própria essência da liberdade e portanto do seu ser. Até o gosto pela viagem, a variação dos lugares, a mudança de casas e alianças, a sucessão dos contactos humanos e de uma certa volubilidade manifestavam esta lei da sucessão vertiginosa e reconstituinte.

(Extraído de Vá)rios Ensaios)

1Manuel Bandeira, em nota explicativa, no livro de correspondências entre ele e Mário de Andrade, escreve o que essa expressão significou. Ela aparece em momento próximo à inauguração da revista Clima, para onde convergiram “universitários na faixa dos 20 anos, ligados à USP, entre os quais despontavam Antonio Candido de Mello e Sousa, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Rui Coelho e Gilda Rocha”. E detalha: “Eclética, ideologicamente heterogênea, mas consistente em seus fundamentos intelectuais, a revista, iniciada em maio de 1941, parecia personificar o ideal de introspecção e convivência desejados por MA. Oswald de Andrade mimou essa sisudez, apelidando esses jovens de ‘chato-boys’”.Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp: IEB, USP, 2ª. ed., 2001, p. 657. (Nota do Outras Palavras)

2Neste ano, Oswald encontra-se com o líder comunista Luís Carlos Prestes e funda o jornal, de divulgação da causa operária. É dessa época a sua filiação ao PCB. Em 1945, abandona o partido, segundo Candido, “decepcionado por se sentir posto de lado, e querer ser mais do que um instrumento no campo intelectual”. (Nota do Outras Palavras).

Nossa fonte: Outras Palavras

Auto-retrato de escritor “quase inverossímil”



“Dentro de mim, debatem-se trabalhador e aristocrata, o homem da rua e o enlevado”, escreveu Oswald de Andrade, em texto de 1950

Por Oswald de Andrade | Imagem: Lauro Monteiro

Oswald de Andrade foi o maior inventor de si mesmo. Havia tanto dele nas suas obras de ficção, nos romances, nas peças de teatro, quanto havia de ficcional nos seus textos memorialistas, nos artigos, nos manifestos.

Essa condição traz em si a necessidade de olharmos com uma visada dupla, multifacetada, que contemple esse personagem quase inverossímil de tão real.

Nesse sentido, não é difícil avançar na compreensão que o crítico Antônio Candido desenvolve acerca do escritor. Num ensaio famoso, Candido procura dar conta das profundas intersecções entre vida e obra do líder modernista, na medida em que “a sua existência é tão importante quanto a obra1”.

Esta talvez seja uma das chaves mais decisivas para chegarmos perto de um melhor entendimento de sua produção literária e artística. Em vários textos, o poeta vai procurar falar de si, das suas memórias, das suas dores, alegrias, iras, e da incompreensão por seus contemporâneos.

Daqueles diversos textos, provavelmente o mais ambicioso seja o projeto de memórias que ele desenvolve em “Um homem sem profissão sob as ordens da mamãe”.

No entanto, existirão outros. E talvez o mais significativo, em sua notável síntese, seja o auto-retrato que publicamos a seguir.

O texto saiu inicialmente no “Diário de Notícias”, em 1950, reaparecendo muitos anos depois, já em 1964, no Suplemento Literário do jornal “O Estado de São Paulo”.

Posteriormente, retornaria, em 1967, aparecendo como um dos destaques do programa da peça “O Rei da Vela”, de autoria do próprio Oswald de Andrade.

Vale insistir que a famosa encenação de Zé Celso, com o Grupo Oficina, teria selado aquele movimento iniciado pelos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos na redescoberta antropofágica do escritor modernista. (Theotonio de Paiva, editor da seção especial “Oswald 60”)

Auto-retrato de Oswald de Andrade

Quando digo a você que foi povo quem desceu em São Vicente, é porque seus antepassados também desceram lá, há quatrocentos anos. E eu sou povo. Do lado materno venho de uma descendência faustosa de guerreiros, os “Fidalgos de Mazagão”, a quem D. José I mandou dar de presente um pedaço do Amazonas.

Esses senhores meus avós, segundo me informou Gilberto Freyre, eram de uma indolência desoladora para a colonização. O contrário dos açoreanos, donde veio meu ramo paterno. É natural, pois, que dentro de mim se debatam o trabalhador e o aristocrata, o homem da rua que atravessa na frente dos automóveis para não parar e o enlevado que quer ficar em casa escrevendo ou lendo.

Nasci em São Paulo, na atual avenida Ipiranga, nº 5 (primitivo), ao meio dia de 11 de janeiro de 1890. Bacharel em Ciências e Letras pelo Ginásio de São Bento, onde ouvi um velho professor, que se chamou Gervásio de Araújo, que ia ser escritor. Isso decidiu em 1907 a minha vocação e a minha carreira. Passei a comprar livros, a ler e escrever, a estudar. Logo que pude, entrei para um jornal. O “Diário Popular” publicou em 1909 o meu primeiro artigo. “Penando” – uma reportagem da excursão do presidente Afonso Pena aos estados do Paraná e Santa Catarina.

A muito custo, bacharel de Direito pela Faculdade de São Francisco de São Paulo em 1919. Orador do centro acadêmico 11 de agosto. Nunca advoguei. Continuei jornalista. Publiquei, com Guilherme de Almeida, o meu primeiro livro em 1916. Duas peças em francês. Foi representado um ato de “Leur Âme” por Susanne Desprès, no Teatro Municipal de São Paulo. Com a maior e mais justa indiferença do público e da crítica. Em 1922 tomei parte na Semana de Arte Moderna e publiquei “Os Condenados”, meu primeiro romance. Fiz uma conferência na Sorbonne e outra no Sindicato dos Padeiros, Confeitarias e Anexos.

Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, casei, enviuvei, casei, divorciei, viajei, casei… Já disse que sou conjulgal, gremial e ordeiro. O que não me impediu de ter brigado diversas vezes à portuguesa e tomado parte em algumas batalhas campais. Nem ter sido preso 13 vezes. Tive também grandes fugas por motivos políticos. Tenho três filhos e três netos e sou casado, em últimas núpcias, com Maria Antonieta d’Alckmin. Sou livre-docente de Literatura na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.

(Publicado originalmente no “Diário de Notícias”, 8/1/1950)

1Cândido, Antônio. “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”. In: Vários Escritos. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 50.

Nossa fonte: Outras Palavras