Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade
Clic sobre o livro (download gratuito). LEIA E DÊ SUA OPINIÃO

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

As Cartas que Dona Pandá não Mandou

Hoje foi um dia esquisito para Dona Pandá. Na realidade, há algum tempo que ela está mais reflexiva. Seu silêncio parece ameno, quase amoroso, como se tivesse tomando cuidado, seus passos ficaram silenciosos, sua voz baixa, seu riso escasso, substituído por um sorriso envergonhado. Às vezes, vai para a mata, acompanhada de perto, mas não tanto, pelos cachorros que sentem seu momento, não a largam, sem, contudo, chegar muito perto, repeitando o que não entendem.

Esteve mexendo em uns papéis, lendo, anotando e me chamou para dizer que há algumas cartas que não mandou. Algumas por terem caducado, assuntos vencidos, emoções superadas, outras por serem tão desinteressantes que não valem a pena nem guardá-las, nem ainda oferecê-las à leitura do destinatário. No entanto, duas são testemunhas de amor e não vão passar. Seus destinatários são  pessoas tão queridas: uma se foi e a outra, felizmente, está em momento diferente daquele que inspirou a carta – assim Dona Pandá espera -, mas o amor permanece.

I- A Saudade dói e não mata

Hoje é seu aniversário. Hoje seria seu aniversário, mas você foi embora. Se tinha que ir, foi bem, da melhor forma. Primeiro se sentou na terra, embaixo da jabuticabeira no quintal da filha caçula, chupou suas frutas prediletas e discretamente, sem qualquer alarde, se foi. Falei com você um pouco antes, mas o bom de lembrar é seu último abraço quando, após 10 dias juntos, nos despedimos para eu voltar à minha morada, na Chácara Xury, que você me ajudou a formar.

-  Para de plantar árvore, você vai ficar sem Sol. – Ouço seu alerta. E quando de minha próxima visita em sua casa, em Belô, sua fala foi:
 
 - Fiz umas mudas para você levar para plantar. – Lá vinha eu carregada de  mudas de lichia, cabeludinha, jabuticaba e tantas outras que, agora, moram no meu pomar e me dão seu gosto misturado com a saudade.

As lembranças me povoam, me arrancam soluços e risos, sem ordem, misturados. Você chega e a saudade derrama minhas lágrimas que, em seguida, são acompanhadas de sorrisos vindos dos carinhos, ternura que chegam trazidos por você.  Não há cronologia. Sou a criança que está em cima de um belo cavalo e escuto seu grito:

- Não deixa o garrote passar. – Estamos na fazenda levando o gado de um pasto para outro. Estas imagens são fortes, é minha infância, a melhor de todas as infâncias: cavalos, leite no curral, carro de boi ... felicidade, âncora de toda minha vida.

Tento ir atrás dessa época, mas já estou mulher, perguntando-lhe:

- Vou vender esta chácara (era minha primeira) e torrar o dinheiro em Paris. O que você acha? – Sua resposta, sua cara:

- Foi você que trabalhou para comprá-la, ponha o dinheiro onde achar que vale a pena. –

 Agora quero ir a Paris, mas você chega de cara amarada – ai, tão você – comigo no cartório, em Ibiraci, para me dar a emancipação de que precisava para lecionar. Eu quero trabalhar e você finge estar muito chateado por isso. Contradição esclarecida  quando escuto, sem você perceber, sua conversa com um amigo contando de seu orgulho por “sua menina” querer a independência.

E lá está você mudando sua fisionomia com a dor da perda de suas fazendas e a culpa de nos deixar pobres, sem escutar o que tínhamos a lhe dizer e, que bom, você logo volta à primeira chácara para me ensinar a fazer um aterro:

- Mexer com terra é sempre complicado. Pensa que vai um caminhão e acaba precisando de cinco. –

 A próxima aparição é à beira da cama de mamãe que está se despedindo , com tanto sofrimento. Sua companheira de vida se foi e eu fui tentar lhe cuidar. Tempo difícil, tristeza invasora.

Lá está de novo seu riso me trazendo alívio. E a eterna pergunta: - Precisa de dinheiro?

Gostaria de acreditar, como minhas irmãs, que ainda nos veremos, em outro patamar. Sei que sua presença em minha vida está em tudo que sou. Gostaria de escrever sobre você, sobre o homem forte, carismático, líder regional, contraditório, casmurro, doce, amargo, vaidoso, honesto, íntegro, amoroso e tão MEU PAI.

 II- A dor que é sua

 
Deixei você com sua dor, mas ela me acompanhou, forte, lancinante me inundou e, na minha cara,  mostrou minha impotência. Você ficou com sua dor, mascarada em impaciência, beirando a raiva, desejando a solidão Os incômodos dos galhos secos, malformados.
Alguns poucos dias separavam você da despedida final do seu companheiro, inesperada naquele momento. As descobertas e os tormentos das medidas necessárias ao enceramento de uma vida só maltrataram, não basta a dor da perda. Uma sociedade organizada, como a nossa, cobra providências imediatas. Documentos que antecedem documentos. Providências a priori que só conseguem vir depois. Contradições inexplicáveis, porém exigentes. E a dor firme, acompanhando, grudada na  mão que assina sem vontade, nas pernas que caminham com passos firmes, balançando a alma, na cabeça que é demandada a pensar, resolver, tomar decisões. A exaustão abate e vem a vontade de dormir, não o sono, apenas o querer apagar, se não a situação, o sofrer, então, a si mesma, numa fuga anestesiante que não vem.

Antes de pegar o avião, ainda fiquei uma noite  nas Alterosas, mas longe – e tão junto – de você, minha querida. Quando cheguei de volta ao meu ponto, tive momentos de grande alívio na recepção de meus bichos, das minhas árvores. Um vaso de belas e coloridas flores me esperava e, grata, respirei.  Na segunda noite, a dor foi sufocante, assustaram-me sua intensidade e indefinição até perceber que era a sua dor que eu sentia. A compreensão de sua necessidade de eu não estar perto me impedia de tentar uma comunicação. Comecei a fazer o que sempre faço em momentos doídos, procurar a companhia de minhas árvores e com elas me acalmar para enviar a você o que podia de paz e, sobretudo,  todo o meu amor. Saber você forte não amenizava a dor compartilhada e não dividida. Impotência.
Agora, você me telefona preocupada com minhas condições materiais! Ah! Minha tão querida, quanto caminho ainda terá que percorrer para se livrar das burocracias burras, exigentes e incompetentes e das pessoas, amigas, e eu com elas, que querem ajudar só fazem trazer, mais uma vez, as lembranças tétricas. Você, na sua generosidade, vai percorrer todos os caminhos duros e acabará chegando a um lugar seu. Lá estará você, inteira, íntegra, maior, bela, dona de si e das flores.