Embora membro do PT, presidente da Associação Brasileira de
Reforma Agrária sustenta: pressionado por ruralistas e tecnocratas,
governo ignora declínio da monocultura e aprofunda políticas falidas
Gerson Teixeira entrevistado pela
IHU On-Line
“Lamento o apagão do pensamento estratégico dentro do governo. (…)
Não bastasse, especula-se sobre a proximidade do anúncio de um “pacote
agrário” para ser dado de presente ao agronegócio e, assim, mergulhando
ainda mais o Brasil nas profundezas dos anacronismos da sua estrutura
agrária”, diz o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária –
ABRA.
“Há que se pensar, de imediato, em uma ‘nova agricultura’ no decorrer
do século XXI, sob pena de possíveis crises alimentares globais que
desdobrarão em eventos sociais e políticos imponderáveis”, considera
Gerson Teixeira, ao comentar a atual produção agrícola e a demanda por
alimentos no futuro.
Segundo ele, “o mundo já se depara com processo de redução acentuada
dos níveis da produtividade agrícola (…) e as pesquisas demonstram que a
produtividade dos alimentos básicos declinou de 3% ao ano na década de
1960 para 1% ao ano na atualidade”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o
engenheiro agrônomo avalia que as políticas adotadas no Brasil estão na
“absoluta contramão do que deveria ser feito para habilitar o país ao
enfrentamento do grande desafio da segurança alimentar”. E dispara:
“Tais políticas refletem, portanto, a temerária hegemonia do agronegócio
e têm a pretensão de transformar o Brasil no ‘fazendão do mundo’ sob o
controle do capital internacional”.
Neste caso, vivemos a inacreditável situação na qual o agronegócio,
com o apoio massivo do governo, exporta 100 bilhões de dólares ao ano,
em grande parte para alimentar animais no exterior, e não produz comida
para a população brasileira, inclusive, sendo responsável pela evolução
do IPCA dos alimentos em patamares acima do IPCA geral”.
Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, especialista em
Desenvolvimento Agrícola pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ e
presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.
Confira a entrevista:
Como você avalia a declaração do economista Chris Hurt,
especialista em Economia Rural dos Estados Unidos, sobre o menor
crescimento da demanda alimentar no futuro?
Em entrevista publicada pelo
Valor Econômico de 2 de setembro,
esse especialista defendeu teses que contrariam prognósticos de
instituições internacionais sobre as tendências na produção de
alimentos. Em particular, garante que, doravante, após sete anos de boom
dos preços das commodities agrícolas, teremos uma longa trajetória de
equilíbrio entre demanda e oferta de alimentos, com os preços retornando
à sua trajetória histórica. Segundo Hurt, são equivocadas as previsões
da FAO e OCDE sobre as expectativas superlativas para a demanda
alimentar nas próximas décadas que desafiam a agricultura mundial.
Portanto, não existiria cenário de ameaças para a segurança alimentar, tampouco de riscos de colapso na agricultura.
O economista fundamenta a sua tese no processo de desaceleração da
economia chinesa e no fato de a demanda de milho para a produção de
etanol nos EUA supostamente ter alcançado o seu teto. Então, não haveria
todo esse crescimento da demanda alimentar mundial no futuro. Os
agricultores também não enfrentariam crise com o fim do ciclo de alta
dos preços, vez que teriam capacidade de assimilar margens mais
apertadas.
É possível que essas previsões se confirmem, mas a própria entrevista
revelou pouca convicção do seu autor, uma vez que ao mesmo tempo ele
assegurou que, de todo o modo, a agricultura dominante estaria apta a
responder ao aumento acentuado da demanda alimentar, pois, ainda segundo
o especialista, haveria muita terra e tecnologia a serem incorporadas
ao processo produtivo.
Ora, é verdade que as previsões indicam que a China, o grande motor
dos mercados agrícolas nos últimos anos, continuará ostentando taxas
importantes de crescimento econômico, mas em patamares inferiores à
média das últimas décadas. Mas algumas variáveis deixaram de ser
consideradas na análise do economista. Primeiro, leve-se em conta,
talvez mais que o crescimento demográfico mundial, os expressivos
contingentes populacionais em processo de urbanização e migração rural
que impactam em demanda maior e menor oferta agrícola potencial.
Veja-se o exemplo da própria China, onde segue forte o fenômeno da
urbanização, à taxa de 2,5% ao ano (Bird, 2011), significando que 15
milhões de chineses deixam as áreas rurais a cada ano. De outra parte,
aquele país enfrenta pelo menos mais um gargalo estrutural para manter o
expressivo desempenho agrícola do período recente: as severas
restrições de água em várias regiões.
Especialistas do Ministério da Agricultura, na edição mais recente da
Revista de Política Agrícola, apresentam estudo demonstrando que a
China continuará com a segurança alimentar altamente dependente do
exterior. Tanto que o Departamento de Agricultura dos EUA prevê que, em
praticamente dez anos, contados do ano de 2011, os consumos de milho,
soja e carne bovina na China terão aumentado em taxas notáveis de,
respectivamente, 44,5%, 58,3% e 23,4%. As previsões de Hurt também
ignoram os desdobramentos na oferta agrícola das mudanças climáticas e
da questão da produtividade.
Então como avalia as previsões da FAO e OCDE, de que a
agricultura enfrentará dificuldades para alimentar nove bilhões de
pessoas até 2050? Haverá crise estrutural para o agronegócio no futuro?
São organizações respeitáveis que conhecem o assunto, portanto, devemos
nos orientar pelas suas previsões, segundo as quais a demanda alimentar
em 2050 deverá ser 70% maior comparativamente à posição de 1996. De
fato, trata-se de um enorme desafio para a agricultura que poderá ser
enfrentado. Contudo, não acredito nessa possibilidade com a manutenção
do padrão dominante de agricultura, de larga escala, geneticamente
homogêneo e intensivo em químicos e energia de um modo geral.
Por quê?
Há alguns anos, com todos os riscos e limitações, tenho me somado às
análises de outros profissionais nos assuntos agrários indicando essas
dificuldades. Mas até os especialistas das Nações Unidas que
participaram do Informe da Conferência da Unctad sobre Comércio e Meio
Ambiente/Revisão 2013, lançado no dia 18 de setembro, alertaram, no
documento, sobre o imperativo para a humanidade de uma mudança rápida da
produção baseada em monocultura e intensiva em químicos para uma
diversidade de sistemas de produção sustentáveis, que melhorem a
produtividade dos pequenos agricultores. Advertem que a transformação
fundamental da agricultura pode ser um dos maiores desafios, inclusive
para a segurança internacional, no século XXI.
O fato é que fatores econômicos e técnicos próprios da organização do
agronegócio, combinados com os efeitos da evolução da crise climática
sobre a agricultura (uma das principais fontes de emissão e, ao mesmo
temo, cada vez mais afetada pelo aquecimento global) sinalizam
dificuldades nada triviais para a subsistência futura da grande
exploração agrícola capitalista sob qualquer forma de organização.
Tentando resumir, diria que razões diversas impuseram trajetória de
declínio dos níveis reais dos preços agrícolas desde o final da década
de 1970. Nos últimos sete anos, a constante volatilidade da oferta
alimentar derivada da competição dos agrocombustíveis e da maior
frequência e intensidade de fenômenos climáticos, perpassada pelos
movimentos especulativos com commodities agrícolas pelos fundos de
hedge, em particular, provocaram a inflexão nesse processo.
No geral, esse fenômeno não resultou em rentabilidade mais elástica
na base primária à medida que os custos de produção também dispararam
notadamente daqueles relativos aos inputs químicos. Ademais, parte do
ganho adicional derivado do aumento dos preços passou a ser apropriada
pelas corporações que controlam o comércio agrícola. Confirmada ou não a
avaliação do economista americano sobre o retorno dos preços à sua
curva histórica, continuará o aperto das margens ‘dentro da fazenda’.
Os orçamentos nacionais para apoio à agricultura serão cada vez mais
robustos, o que implica considerar que se a variável econômica fosse a
única determinante, somente os países ricos teriam condições de
sustentar a atividade agrícola enquanto setor econômico estruturado.
Contudo, devemos agregar que o mundo já se depara com processo de
redução acentuada dos níveis da produtividade agrícola (Revista
Science – março/2010,
The Economist
– 23/03/2011 e estudos do USDA). As pesquisas demonstram que a
produtividade dos alimentos básicos declinou de 3% ao ano na década de
1960 para 1% ao ano na atualidade.
Assim, o fenômeno histórico de compressão das margens na fazenda, já
num contexto de declínio da produtividade, tende a assumir graves
proporções no futuro, posto que, com as mudanças climáticas, o IPCC/ONU
estima em um terço a queda dos níveis de produtividade. Isto, caso o
aquecimento global não ultrapasse os 2o C.
Essas projeções foram confirmadas recentemente pela 5ª Revisão sobre
as mudanças climáticas (reunião do IPCC na Suécia) e pelo 1º Relatório
do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Vale assinalar que os
eventos da pesquisa na tentativa de adaptação/mitigação a esses desafios
estão limitados à busca de variedades mais resistentes às situações de
déficit hídrico e de temperaturas mais altas e, mesmo assim, no limite
de 2oC.
Em suma, quando consideramos o contexto de erosão da biodiversidade
no mundo, fruto da “agricultura moderna”; a progressiva restrição da
disponibilidade de água para a continuidade dessa atividade no futuro;
os desequilíbrios ambientais sistêmicos previstos, há que se pensar, de
imediato, em uma “nova agricultura” no decorrer do século XXI, sob pena
de possíveis crises alimentares globais que desdobrarão em eventos
sociais e políticos imponderáveis.
O governo brasileiro está atento a estes cenários?
Certamente têm quadros no governo atentos a esses riscos. Mas uma
combinação de fatores, como a correlação de forças, a contaminação da
burocracia por neoliberais com “tucanos de carteirinha” nos mais altos
escalões da administração federal e as contingências imediatas do quadro
de transações correntes, dita políticas na absoluta contramão do que
deveria ser feito para habilitar o país ao enfrentamento do grande
desafio da segurança alimentar. Tais políticas refletem, portanto, a
temerária hegemonia do agronegócio e têm a pretensão de transformar o
Brasil no “fazendão do mundo” sob o controle do capital internacional.
Neste caso, vivemos a inacreditável situação na qual o agronegócio,
com o apoio massivo do governo, exporta 100 bilhões de dólares ao ano,
em grande parte para alimentar animais no exterior, e não produz comida
para a população brasileira, inclusive, sendo responsável pela evolução
do IPCA dos alimentos em patamares acima do IPCA geral.
A propósito, de forma lúcida, a presidente Dilma recentemente
garantiu que, com o pré-sal, não deixará o Brasil sucumbir à “maldição
do petróleo” (uma alusão aos efeitos macroeconômicos maléficos de
economias centradas em recursos naturais – tese da ‘maldição dos
recursos naturais’).
Mas o governo deveria voltar a atenção também para a “maldição
instalada do agronegócio”, pois, neste caso, tem o agravante de um
“apagão estratégico”, com consequências políticas e socioeconômicas
potencialmente desastrosas para o futuro do Brasil. Aliás, vivemos
também a “maldição do ferro”, que recairá com maior intensidade ainda
sobre os interesses nacionais caso venha a ser aprovado o texto da
proposta do novo código mineral enviada pelo governo ao Congresso.
Como ficam a reforma agrária e a agricultura familiar nesse debate?
De plano, me alinho às recomendações dos cientistas da Unctad sobre o
imperativo de uma “nova agricultura”, fundada na biodiversidade, menor
escala e em sistemas ambientalmente amigáveis como caminho para
enfrentarmos o grande desafio da segurança alimentar em décadas futuras.
Assim, a iminência de um colapso do agronegócio no futuro oferece
oportunidade histórica inusitada para a agricultura familiar e camponesa
no presente. Esta reúne atributos congênitos que lhe proporcionam maior
capacidade de resiliência aos efeitos das adversidades econômicas e
ambientais comentadas.
Mas, como afirmei, as políticas caminham no sentido oposto. A atual
política para a agricultura familiar, não obstante os méritos
inclusivos, induz à erosão dos fundamentos da economia camponesa,
nivelando-a às bases técnicas e organizativas da agricultura do
agronegócio e, assim, submetendo-a aos mesmos riscos de colapso.
Até mesmo a vocação para a produção de alimentos pelos agricultores
familiares tem sido interditada com a imposição da pauta de produtos do
agronegócio. Enquanto isso, o capital internacional, especulativo ou
não, investe em terras, também para alimentos, pois sabe que
rigorosamente se trata de um ‘negócio da China’ no presente e, mais
ainda, no futuro.
A reforma agrária, cuja importância na atualidade ultrapassa os seus
objetivos clássicos para assumir estratégia de proteção das futuras
gerações contra as incertezas e armadilhas deste século, simplesmente
foi sepultada.
Como petista que reconhece e comemora os avanços do país em várias
áreas desde 2003, lamento o apagão do pensamento estratégico dentro do
governo e obviamente sinto enorme frustração com o fato de, nos últimos
três anos, terem sido publicados apenas 86 decretos de desapropriação de
latifúndios improdutivos.
Não bastasse, especula-se sobre a proximidade do anúncio de um
“pacote agrário” para ser dado de presente ao agronegócio e, assim,
mergulhando ainda mais o Brasil nas profundezas dos anacronismos da sua
estrutura agrária. Entre outras medidas, constariam do “pacote”
mecanismos para a transferência, para o mercado, de áreas dos
assentamentos; a homologação das posses nas áreas de fronteira; e nada
sobre a regulação efetiva do acesso a terra por pessoas estrangeiras. A
ver!
Como avalia a proposta de Márcio Matos, um dos líderes do MST, de que o governo feche o Incra diante da inoperância?
Um efeito colateral esperado do sentimento de frustração que também acometeu o companheiro.