Ao lançar no Brasil novo livro, “Matteo perdeu o emprego”, escritor
português aposta na escrita como meio de revelar impasses e intervir na
cidade
Por Bruno Lorenzatto
“Qualquer hábito, qualquer repetição de um ato por mais absurdo que
seja,
rapidamente é absorvido: o excepcional transforma-se em poucas semanas;
em certas circunstâncias bastam dias para que o monstruoso
e o informe se faça normalidade e hábito.
No limite: fato que não se dá atenção, paisagem.”
Gonçalo M. Tavares, leitor de Jorge Luis Borges
rapidamente é absorvido: o excepcional transforma-se em poucas semanas;
em certas circunstâncias bastam dias para que o monstruoso
e o informe se faça normalidade e hábito.
No limite: fato que não se dá atenção, paisagem.”
Gonçalo M. Tavares, leitor de Jorge Luis Borges
Desde sua primeira publicação, Livro da dança (2001), o
escritor português Gonçalo M. Tavares tem se destacado na literatura
contemporânea. Seus procedimentos são múltiplos; transita com facilidade entre
o ensaio, a poesia e a prosa, criando ressonâncias entre literatura e
filosofia. Hoje o autor possui 30 livros publicados e obras traduzidas para
mais de 30 línguas, em 46 países. José Saramago, no discuso de atribuição de um
prêmio literário a Tavares em 2004, disse: “Gonçalo M. Tavares não tem o
direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!”
Seu estilo assim poderia ser descrito: o mínimo de palavras produzindo o
máximo de efeito estético – escassez de signos que engendra excesso de
sentidos. Uma bomba prestes a explodir ou o oposto: um destroço. O que resta
depois da explosão, matéria despedaçada e enigmática que fascina. A destruição
de uma realidade e a construção de outra possível.
Elaborar um “mapa da desordem” – aquela que permanece sob as diversas
ordens já pensadas (cartografar a desordem é sempre criar uma ordem possível).
Mudar a velocidade com que se olha ao redor. Eis algumas definições da
literatura, segundo Gonçalo Tavares. “A literatura é perversão”, diz o
escritor. Perversão no sentido de que o gesto literário significa percorrer o
verso, o lado contrário das coisas: fazer ver justamente aquilo que não está à
mostra.
Assim, a literatura pressupõe uma crítica dos lugares-comuns e do
pensamento bem-estabelecido. Por trás das evidências e dos consensos, ela
descobre problemas e impasses. Diz respeito também à política, mas não no
sentido tradicional. Para o autor português, “a literatura deve interferir na
política através do aumento da lucidez individual das pessoas. Pessoalmente,
não me interessa uma política partidária, mas uma política no sentido de
intervenção na cidade, na pólis, na forma como os homens vivem, e penso que aí
a literatura é essencial, por ser o espaço da reflexão, de uma certa distância
em relação aos acontecimentos e às circunstâncias do mundo.*”
Em Matteo perdeu o emprego (2013), último livro de
Tavares publicado no Brasil, o alfabeto aparece como sistema de classificação
cuja lógica é absurda.
A história começa com Aaronson e quase termina com Matteo (pois há ainda
Nedermeyer), entre eles personagens que são apresentadas por ordem alfabética.
Um critério simples, mas que nada pode ordenar de forma coerente dada sua
arbitrariedade. Após ler o posfácio do livro – belo ensaio que vem como espécie
de suplemento à história, escrito pelo próprio Gonçalo – dá-se conta de que a
ficção faz ver algo de absurdo no mundo real. É preciso então fazer um recuo.
No conto “O idioma analítico de John Wilkins”, de Jorge Luis Borges,
descobrimos uma impensável enciclopédia chinesa em que os animais são
classificados do seguinte modo: “(a) pertencentes ao Imperador; (b)
embalsamados; (c) amestrados; (d) leitões; (e) sereias; (f) fabulosos; (g) cães
vira-latas; (h) os que estão incluídos nesta classificação; (i) os que se
agitam feito loucos; (j) inumeráveis; (k) desenhados com um pincel finíssimo de
pelo de camelo; (l) et cetera; (m) os que acabaram de quebrar o vaso; (n) os
que de longe parecem moscas.” Uma taxonomia que desconcerta por sua
impossibilidade, pelo fracasso lógico que a estabelece e a impede de
classificar. Não é a estranheza das descrições (que estabelecem as semelhanças
e diferenças) de cada item que arruína a ordenação. Estes seres reais e
imaginários poderiam se encontrar perfeitamente numa ficção, desde que um elo
os ligasse – um espaço comum possível em que seriam justapostos ou enumerados;
por exemplo, uma floresta imaginária. Mas, na enciclopédia chinesa, o espaço
desse encontro é impossível: a sequência das letras do alfabeto. Como observa
Michel Foucault, sobre o texto de Borges, “o que transgride toda imaginação,
todo pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d) que
liga a todas as outras cada uma dessas categorias**” (p. 10).
Voltando ao livro de Gonçalo Tavares, nele tomamos conhecimento de
histórias e personagens que remetem ao realismo fantástico de Borges, tais
como: um improvável homem que lava e restaura meticulosamente restos de objetos
que resgata do lixo e secretamente os coloca como se fossem novos nas
prateleiras de um supermercado; um professor e seus alunos que resistem ao
prolongado e progressivo acúmulo de pilhas de sacos de lixo – devido à greve
dos funcionários responsáveis pela coleta – que invadem a sala de aula (é assim
que os estudantes, quando adultos, poderão suportar o mau cheiro e ser
indiferentes ao que fede em suas vidas civilizadas); ou ainda, os últimos
homens sensatos – que restam numa ilha de loucos – resolvem fugir e enlouquecem
na “barca da razão”.
Mas se o espaço borgiano da impossível taxonomia dos animais é
exclusivamente o vazio do alfabeto, aquilo que impossibilita a relação de uma
coisa com a outra, a ordenação de Gonçalo fixa no espaço possível dos
acontecimentos aleatórios nomes que seguem a ordem do alfabeto e nomeiam esses
acontecimentos.
Na evolução do texto de Matteo perdeu o emprego, não há
nenhum elo significativo que possa justificar ou dar consistência causal à
combinação segundo a qual são ordenadas as personagens. Estas constituem
pequenas narrativas praticamente independentes na medida em que através de um
detalhe totalmente casual o leitor é obrigado a passar de Aaronson a Boiman, de
Boiman a Camer e assim por diante. Experimenta-se certo desconforto nessa
distribuição, constatado o caráter fortuito dos fatos que no interior da
história ligam um nome a outro. O critério que faz o romance avançar e que fixa
a sequência das personagens é a ordem alfabética.
Como um professor que recita a chamada em sala de aula ou um aluno que
espera o momento de sua letra inicial para responder a chamada, para que
alcancemos Matteo é necessário percorrer a inútil série do A até o M. “Como se
os personagens entrassem em cena não devido ao que fazem, mas à primeira letra
do seu nome. O alfabeto é algo que domina, e muito, a civilização ocidental,
não é apenas algo que usamos para escrever, é algo que nos organiza.” E aqui
chegamos a uma questão fundamental deMatteo perdeu o emprego – a
literatura sempre exige uma reflexão sobre o mundo: tomamos consciência de uma
ordem que não possui nenhuma lógica – a não ser a arbitrariedade e o acaso que
a domina – como um sistema que opera no real, que interfere decisivamente na
vida dos homens. Combinação abstrata, simplória, vazia de materialidade, mas
que produz efeitos absolutamente objetivos. “Importa isto: o alfabeto como
hierarquia, elemento aleatório que dá uma ordem que nos parece sensata. Eis um
milagre” (p. 144).
Pelo sentimento de irrealidade que nos causa a ordem alfabética como
princípio ordenador da narrativa de Gonçalo, somos jogados de volta à vida,
onde antes não percebíamos esse poder surpreendente, quase injusto, das letras;
e em sentido mais amplo a arbitrariedade de toda forma de classificação (toda
ordenação pressupõe critérios específicos de semelhancas e diferenças).
“Sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e
conjectural”, afirma Borges.
Pode-se dizer então que o real não existe sem as ficções que o
engendram. É preciso que acreditemos em determinadas ficções para que a
realidade seja vivida, mas também transformada, quando passamos de uma ficção a
outra.
Estranho pensar que por ordem alfabética, somente por ela, podemos
juntar no sistema escolar aleatoriamente as pessoas: Ana e Ana Carolina, se não
possuem nada em comum, se veem na escola ligadas pelo alfabeto. Também no
dicionário as palavras se misturam ao bel-prazer da tirania das letras: lá asno
e astro estão mais próximos do que nunca serão no mundo real. Embora isso nos
faça rir, há também as consequências perturbadoramente trágicas, “como na
escolha dos judeus que seguiriam do gueto para o campo de extermínio. Uma
escolha que, certas vezes, seguiu precisamente a ordem alfabética. Se o nome
começava por F e a chamada ia já no G, o homem com o nome começado por F estava
salvo – pelo menos temporariamente” (p. 157).
–
*Trecho extraído da entrevista de Gonçalo Tavares disponível em: http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2014/02/09/goncalo-m-tavares-o-meu-trabalho-e-iluminar-palavras/
*Trecho extraído da entrevista de Gonçalo Tavares disponível em: http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2014/02/09/goncalo-m-tavares-o-meu-trabalho-e-iluminar-palavras/
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Trecho extraído do prefácio de As
palavras e as coisas, de Michel Foucault. Editora Martins Fontes, São
Paulo, 2007.
Bruno Lorenzatto: Licenciado
em história e mestre em filosofia pela PUC-Ri