Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Carlos Fuentes: escrever para ser


Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo. Fuentes acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro no ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade. 

Vejo algumas fotos em preto e branco. E me detenho em uma, feita em algum dia incerto da Barcelona daqueles anos 70, mostrando um Vargas Llosa alto e sorridente, um Carlos Fuentes um tanto formal, e um Gabriel García Márquez cabeludo e com bigodes que parecem desenhados a carvão. Fuentes ainda fumava: na mão esquerda, posta fraternalmente sobre o ombro de García Márquez, aparece o cigarro. Ali estão eles: Vargas Llosa aparece à esquerda, Fuentes está no centro, García Márquez à direita. Exatamente o avesso do que a vida reservaria aos três, ou do que os três fariam de suas vidas.

Na foto, os três são jovens, e parecem confiantes, e ocupam o inverso do espaço que o tempo e a realidade se encarregariam de colocar em seus devidos lugares: quem à direita, ao centro, à esquerda. 

Volta e meia imagino como será ter sido ser jovem, ou melhor, ser um jovem Fuentes, um jovem Mario Vargas, um jovem García Márquez naqueles anos de turbilhão. Uma vez perguntei isso a Fuentes. Estávamos em São Paulo, caminhávamos ao léu com Silvia Lemus, sua mulher, para cima e para baixo por aquelas paralelas da rua Augusta, e ele me contava coisas. Dizia assim: ‘É que a gente era muito jovem, e acreditávamos nas mesmas coisas, e tínhamos uma confiança enorme no futuro’. Insistia: sua amizade com García Márquez, que vinha de 1961, era a qualquer prova. E acabei sendo testemunha disso, dessa verdade. 

E lembro que algum tempo depois, coisa de ano ou ano e meio, ao entrar num restaurante italiano em Buenos Aires, topei com ele e com Silvia. E ele, como sempre de uma elegância sem fim – e, atenção: estou me referindo à elegância como postura diante da vida –, quis continuar uma conversa que eu nem lembrava qual era. 

Era a conversa sobre nossos respectivos anos jovens. Disse ele, lembrando de Vargas Llosa, de García Márquez, de Cortázar: ‘A vida segue, e às vezes, nos separa. Bom mesmo é quando você consegue discordar de tudo e fazer com que nada separe os afetos, a amizade’. Tentou isso a vida inteira. Às vezes – com Cortázar, com García Márquez –, conseguiu. Aliás, sem maiores esforços.

Quando me refiro a ele como um homem elegante, me refiro a um pensamento que conseguia ser ao mesmo tempo ágil e contido, que não se limitava às barreiras que muitas vezes nos impomos a nós mesmos. Acreditava no que acreditava.

Acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro no ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade. E escrevia assim: acreditando. Não há dois livros dele que sejam iguais. Porque, em seu ofício, Carlos Fuentes era como na vida: sempre disposto a recomeçar, a reinventar. Sua obra é desigual, porque ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós em nosso dia-a-dia. 

A única coisa que se manteve sempre em cada palavra, cada frase que desenhou, foi a fé no futuro. Jamais acreditou em limites e fronteiras, quando escrevia. E nem quando vivia.

Qualquer um que tenha a palavra escrita como matéria prima, e a memória como guia dos tempos, saberá descobrir no autor de ‘A região mais transparente’, ou ‘A morte de Artemio Cruz’, ou de ‘Terra Nostra’, de ‘Gringo Viejo’, um eterno contemporâneo, um companheiro de viagem, um parceiro de sonhos e ousadias. E uma testemunha de desesperanças e esperanças, de tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não fomos. 

Fuentes dizia que, mais do que pela obra dos grandes historiadores, dos grandes sociólogos, dos grandes antropólogos – e ele foi amigo de vários dos grandes –, a verdadeira história nossa era escrita por escritores. 

Lembro bem da vez em que ele disse que escrever literatura não era um ato natural: era como dizer que a realidade, não é suficiente. Que precisa de outra realidade, a da imaginação. E que isso era perigoso. Assim viveu, assim escreveu. 

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo. 

Eu perdi um amigo distante. Que teve uma vida coalhada de dramas tenebrosos – a ele e a Silvia foi reservada a pior das dores de um ser humano, a de enterrar seus filhos – e conseguiu continuar caminhando. E sorrindo. 

Lembro de Carlos Fuentes como alguém que não se deixou abater. Que não deixou de sorrir e de acreditar.

Certa vez, ele me disse que escrevia para continuar sendo. E, assim, foi.


Fotos: O escritor mexicano Carlos Fuentes, no centro da imagem, junto ao peruano Mario Vargas Llosa e ao colombiano Gabriel García Márzquez (El País) 

Pobreza rural: um fenômeno histórico relacionado à estrutura agrária do país


Por mais que as teses “produtivistas” defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem resolver o problema da pobreza – ,a questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza. O artigo é de Lauro Mattei.

O Brasil apresenta marcas históricas que remontam ao processo colonizador, o qual destinou a esse espaço geográfico, por vários séculos, apenas a função de produção e suprimento de bens primários necessários ao atendimento dos interesses da metrópole lusitana. Tal lógica colonizadora, além de formar e estabelecer uma estrutura econômica voltada ao exterior, deixou marcas sociais que ainda estão presentes nos dias atuais. Dentre essas marcas, destacam-se a pobreza, a concentração de renda e a exclusão social.

Por isso mesmo, a pobreza não é um fenômeno novo, nem no país nem no continente latino-americano. Todavia, ela mostrou ser mais consistente nas últimas décadas do século XX quando crises econômicas afetaram a maioria dos países da região latino-americana. A partir de então, percebe-se que, além das deficiências estruturais do modelo de desenvolvimento econômico regional, os problemas sociais tornaram-se obstáculos reais para conformação de sociedades mais justas e democráticas.

Do ponto de vista econômico, o dinamismo ocorrido no Brasil durante a vigência da industrialização do país (décadas de 1940 a 1970) se esgotou rapidamente, impactando negativamente os agregados macroeconômicos, especialmente o nível de renda per capita, que passou a apresentar uma trajetória de queda, e bem como o próprio mercado de trabalho, cujas taxas de desemprego e de informalidade se expandiram fortemente durante as duas últimas décadas do século XX. Esses fatos, somados ao histórico processo de concentração da renda, agravaram ainda mais as já precárias condições de vida da população em todas as regiões do país.

Do ponto de vista social, nas últimas décadas do século XX ocorreu um forte crescimento dos índices de pobreza e de miséria em todo o país. Aliados à natureza estrutural da exclusão social, têm-se, ainda, os efeitos perversos dos programas de estabilização econômica, os quais agravaram as condições do mercado de trabalho, levando ao aumento das taxas de desemprego, à expansão da informalidade e à redução dos salários básicos, bem como estimularam a continuidade dos deslocamentos populacionais, provocando o inchaço das grandes metrópoles urbanas, que passaram a concentrar a maior parte da população do país. Com isso, a partir da década de 1990, o número absoluto de pobres vivendo nas cidades – e especialmente nas áreas metropolitanas – superou pela primeira vez o número de pessoas pobres que vivem nas áreas rurais.

Mas, em termos relativos, a pobreza rural ainda é extremamente expressiva no país. Os dados da PNAD (IBGE, 2009) revelaram que 8.4 milhões de pessoas que faziam parte da população rural total (30.7 milhões de pessoas) eram classificadas como pobres (renda per capita mensal de até ½ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50); e 8.1 milhões de pessoas eram classificadas como extremamente pobres (renda per capita mensal de até ¼ salário mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75). Isso significa que no ano de 2009 aproximadamente 54% da população rural total era enquadrada como pobre. A distribuição espacial da pobreza rural revela que 53% do total de pessoas classificadas como pobres viviam no Nordeste do país, região que respondia também por 70% do total de pessoas extremamente pobres.

Os determinantes histórico-estruturais de geração da pobreza rural

As concepções mais abrangentes sobre o fenômeno da pobreza sugerem que ele não deve se restringir apenas à privação da renda, mas também à privação de outros bens materiais e de acesso aos serviços sociais essenciais, especialmente nas áreas de saúde, educação, alimentação, nutrição, habitação e saneamento básico. Em função disso, é recomendável que esse fenômeno seja discutido para além das variáveis puramente monetárias, mesmo sabendo-se das dificuldades envolvidas na construção de indicadores não monetários. No Brasil, por não existir este tipo de indicador, vêm sendo estabelecidas linhas de pobreza a partir de um único indicador monetário: a renda per capita familiar mensal. Há, todavia, um conjunto de outros fatores relacionados às privações que também podem explicar as causas estruturais da pobreza, conforme veremos mais adiante.

Por isso, falar da pobreza rural e de sua relação com a questão agrária requer situar o debate numa perspectiva histórica, o que pressupõe entender a conformação histórica e social do país e suas particularidades, especialmente nas áreas rurais. Desta forma, é possível afirmar que a pobreza rural não pode ser concebida como um fenômeno natural, pois se trata de um processo sócio-histórico construído pelo homem. Nesta perspectiva analítica adotada, a pobreza tem seus determinantes centrais de ordem estrutural.

Historicamente, nota-se, desde os primórdios da colonização, a natureza exploratória e predatória dos recursos disponíveis no território. Se no passado colonial o caráter dessa exploração se encontrava assentado na grande propriedade privada da terra e no trabalho escravo, hoje ele permanece amparado na grande propriedade privada das terras e no trabalho livre, que é seu substrato de acumulação e de valorização. Este movimento condicionou e ainda condiciona grande parte da vida material do país. Os traços gerais dessa materialidade econômica se circunscrevem no tempo presente à exploração econômica agrícola em grandes propriedades, na monocultura e nas commodities que dominam o cenário produtivo agroindustrial do país.

Caio Prado Júnior resumiu este processo com a seguinte expressão: “somos hoje o que nós éramos ontem”. Na verdade, aqui ele discutia a formação histórica da economia rural brasileira, a qual se assentou em três pressupostos básicos: monocultura em grandes propriedades; relações de trabalho escravocrata; e produção voltada para o exterior. E é a partir desses três elementos que podemos encontrar grande parte dos determinantes da pobreza rural, inclusive nos dias atuais.

Por exemplo, uma pesquisa realizada pelo IICA no ano de 2011 sobre “a nova cara da pobreza rural” trouxe diversas evidências na direção da abordagem aqui adotada. Assim, estudos da região Centro-Oeste mostraram que naquele local a pobreza não é apenas uma questão de renda, uma vez que ela tem sua maior expressão exatamente nas áreas de pecuária extensiva, que são espaços geográficos dominados pelos latifúndios e onde se observam elevados índices de concentração da terra. Da mesma forma, estudos da região amazônica mostraram que os determinantes da pobreza naquela região dizem respeito à falta de dotação de recursos e às relações de trabalho. No que diz respeito à dotação de recursos, o principal deles é a falta de terra, ao passo que no tocante às relações de trabalho, verificou-se que ainda permanecem formas de trabalho escravo.

Já em algumas partes da região Nordeste observou-se um processo em curso de concentração das terras em três atividades: fruticultura, cana-de-açúcar e soja, todas elas voltadas à exportação. Neste caso, notou-se uma “precarização” da pobreza rural, uma vez que os antigos proprietários autônomos agora estão sendo reduzidos à condição de ex-proprietários e submetidos a relações de trabalho precárias, especialmente em termos da renda recebida. Nestes locais, observou-se que há um processo de modernização em curso. Todavia, o mesmo está sendo comandado cada vez mais por uma minoria de empresas e grandes produtores que possuem capital para dar sustentação a esta lógica produtiva. É exatamente essa modernização que está fortalecendo a raiz “fundante” de todo processo de exclusão social e de geração de pobreza, porque ela não altera as questões histórico-estruturais, como a concentração da terra, as relações seculares de dominação e de expropriação do trabalho pelo capital.

Vimos anteriormente que a grande maioria das famílias residentes em áreas rurais e classificadas como extremamente pobres no Brasil se concentra na região Nordeste, com destaque para a parte do Semiárido. Nestes locais, destacam-se três fatores como determinantes da pobreza: a privação do acesso à água; a privação do acesso à terra; e a ocorrência sistemática das secas, fenômeno que acaba impondo diversas outras restrições, especialmente em termos de acesso a trabalho. Decorrem daí distintos movimentos migratórios temporários para outras regiões do país, especialmente para a colheita da cana e do café no Centro-Sul. Este processo submete uma parcela expressiva dessa população a condições de trabalho degradantes. Mesmo que temporariamente esses migrantes consigam participar do mercado de trabalho, as relações de trabalho e os rendimentos obtidos são extremamente precários, conforme está amplamente documentado pela literatura especializada. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, basta citar que até recentemente uma das principais reivindicações das organizações sindicais rurais era a assinatura da carteira de trabalho, o que garantiria a esses trabalhadores o acesso a alguns benefícios sociais.

Em outro extremo do país, na região Sul, o fenômeno da pobreza rural tem maior expressão também nas microrregiões onde predominam os latifúndios, destacando-se os campos de Guarapuava (PR), as regiões das Missões e da Campanha (RS) e o Planalto Serrano, em Santa Catarina. Em todos esses locais, verifica-se um fenômeno correlacionado: as microrregiões com maior concentração de terras são exatamente aquelas que apresentam os maiores índices de pobreza rural.

Todos esses exemplos são fortes indicativos de que não podemos continuar tratando o problema da pobreza rural como um mero indicador monetário, abstraído a partir da renda per capita familiar. Aqui claramente a pobreza assume a característica de um processo histórico-estrutural marcado pelas contradições sociais ainda presentes na sociedade rural brasileira, ao mesmo tempo que se revela como um fenômeno multidimensional, que poderá ser mais bem compreendido quando se utiliza a abordagem das privações.

Além disso, no caso brasileiro, a pobreza rural também está fortemente associada ao rápido processo de industrialização e de urbanização do país ocorrido a partir da segunda metade do século XX, o qual revelou uma grande contradição: por um lado, verifica-se que ocorreu uma forte expansão da produção física de mercadorias em todas as atividades econômicas, mas, por outro, foram estabelecidos mecanismos que restringiram o acesso a esse conjunto de bens produzidos, o que proporcionou um alto grau de exclusão social, cujo resultado mais visível é a existência até os dias de hoje de elevados índices de pobreza.

De uma maneira geral, pode-se dizer que esse modelo de desenvolvimento institucionalizou a pobreza rural pelos seguintes mecanismos: através da concentração fundiária, que expropriou parte dos camponeses das áreas rurais; através do uso intensivo de tecnologias modernas, que desempregou muita gente; através das relações precárias de trabalho, que degradaram e ainda degradam a vida dos trabalhadores rurais; e através do incentivo à urbanização acelerada, que esvaziou parte do espaço rural do país.

É exatamente nesta direção que a questão agrária deve retornar para o centro da agenda de discussões das políticas públicas de erradicação da pobreza rural. Por mais que as teses “produtivistas” defendam que o país já resolveu o problema da produção agropecuária sem precisar fazer qualquer reforma em sua estrutura agrária – porém sem resolver o problema da pobreza – trata-se de afirmar, à luz dos conhecimentos da história, da economia política e da sociologia política, que a questão agrária brasileira não pode ser relegada a um segundo plano quando se definem e implementam políticas públicas com o objetivo de erradicar a pobreza, seja ela extrema ou qualquer outra expressão que se queira utilizar.

Como a propriedade da terra é um ativo de alto valor econômico que se valoriza constantemente, entendemos que a busca de soluções para a questão da pobreza rural brasileira não pode ser dissociada dos marcos da estrutura agrária secular, que é um dos elementos determinantes da própria pobreza a ser erradicada. Do contrário, teríamos de aceitar as teses conservadoras que estão ganhando espaço nos últimos anos, as quais afirmam que essa massa da população excluída – e que no âmbito governamental está sendo denominada de “pobreza extrema” – não deveria ser contemplada pelas distintas políticas para o meio rural do país devido ao baixo resultado produtivo apresentado. Segundo os defensores dessas ideias, para estes segmentos sociais deveriam ser destinadas apenas políticas de transferência de renda.

Diante desse contexto, resta-nos questionar: é realmente esta solução que o projeto democrático de desenvolvimento nacional deveria oferecer para mais da metade da população rural?

(*) Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Economia e de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC, e Pesquisador do OPPA-CPDA-UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br
Fonte: Carta Maior