Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os amores e sua dor


 Deixei você com sua dor, mas ela me acompanhou, forte, lancinante me inundou e, na minha cara,  mostrou minha impotência. Você ficou com sua dor, mascarada em impaciência, beirando a raiva, desejando a solidão Os incômodos dos galhos secos, malformados.

Alguns poucos dias separavam você da grande perda da despedida final, inesperada naquele momento. As descobertas e os tormentos das medidas necessárias ao enceramento de uma vida só maltratam, não basta a dor da perda. Uma sociedade organizada, como a nossa, cobra providências imediatas. Documentos que antecedem documentos. Providências a priori que só conseguem vir depois. Contradições inexplicáveis, porém exigentes. E a dor firme, acompanhando, grudada na  mão que assina sem vontade, nas pernas que caminham com passos firmes, balançando a alma, na cabeça que é demandada a pensar, resolver, tomar decisões. A exaustão abate e vem a vontade de dormir, apenas o querer apagar, se não a situação, o sofrer, então, a si mesma, numa fuga anestesiante de um sono que não vem.

Antes de pegar o avião, ainda fiquei uma noite  nas Alterosas, mas longe – e tão junto – de você, minha querida. Quando cheguei de volta ao meu ponto, tive momentos de grande alívio na recepção de meus bichos, das minhas árvores. Um vaso de belas e coloridas flores me esperava e, grata, respirei.  Na segunda noite, a dor foi sufocante, assustaram-me sua intensidade e indefinição até perceber que era a sua dor que eu sentia. A compreensão de sua necessidade de eu não estar perto me impedia de tentar a desejada comunicação. Comecei a fazer o que sempre faço em momentos doídos, procurar a companhia de minhas árvores e com elas me acalmar para enviar a você o que podia de paz e, sobretudo,  todo o meu amor. Saber você forte não ameniza a dor compartilhada e não dividida. Impotência.

Agora, você me telefona preocupada com minhas condições materiais! Ah! Minha tão querida, quanto caminho ainda terá que percorrer para se livrar dessa tristeza potencializada nas burocracias burras, exigentes e incompetentes e nas pessoas, amigas, e eu com elas, que querem ajudar e só fazem trazer mais uma vez as lembranças tétricas. Você, na sua generosidade, vai percorrer todos os caminhos duros e acabará chegando a um lugar seu. Lá, estará você, inteira, íntegra, maior, bela, dona de si e das flores. 

BARTÔ, O MAGO DA PALAVRA

   
Frei Betto  

     O coração de Bartolomeu Campos de Queirós (1944-2012),  pleno de amor e arte, parou na madrugada de 16 de janeiro. Meu querido amigo  Bartô transvivenciou. Entrou em “encantamento”, diria Guimarães  Rosa.
      Bartô tinha 67 anos e mais de 70 livros  publicados. A ele dediquei meu mais recente romance, Minas do ouro:  “Para Bartolomeu Campos de Queirós nascido, como eu, na mesma terra mineira,  no mesmo ano, no mesmo mês, no mesmo dia, e condenado, como eu, à mesma sina:  escrever.”
      Em 2003, mereci dele a dedicatória do  livro Menino de Belém. Era um mago da palavra. Não fazia poesia, não  escrevia prosa – criava proesia. Sua prosa é arrebatadoramente poética,  como o comprova seu último romance Vermelho amargo, de forte conotação  autobiográfica.
      Sua mãe morreu aos 33 anos, de câncer, quando ele  tinha 6. Lembrava-se que ela sofria dores atrozes, a ponto de o bispo  autorizar que se apressasse a morte dela com uma injeção. Às vezes a dor era  tanta que ela se punha a entoar canto lírico. Bartô, por vezes, ligava para  sua amiga Maria Lúcia Godoy, cantora lírica, para que ela cantasse para ele ao  telefone.
      Equivocam-se os que classificam sua obra  de literatura infantil, embora tenha angariado os mais importantes prêmios  nacionais e internacionais neste gênero. Sua escrita é universal, encanta  crianças e adultos. Como artesão da palavra, trabalhava cuidadosamente cada  vocábulo, cada frase, até extrair toda a polissemia possível, assim como a  abelha suga o néctar de uma flor.
      Bartô morava em Belo Horizonte, no apartamento que  pertenceu à poeta Henriqueta Lisboa – cuja estátua se ergue à porta do prédio,  na Savassi. Gostava da solidão. Precisava dela para escrever. Chegava a pedir  à cozinheira que saísse mais cedo. E só admitia que o silêncio fosse quebrado  pela música, que ele escutava deitado no chão.
      Nos últimos anos, mais lia do que escrevia. E o fazia  com um prazer quase luxurioso. Narrou-me como se deleitava em abrir um novo  livro, reformular suas ideias e conceitos, adquirir novos conhecimentos...
      Tornou-se escritor por acaso. Estudava comunicação e  expressão em Paris, quando lhe pediram enviar um texto a um concurso, que o  premiou. Mas custou a se assumir como autor. Para ele, isso era secundário. A  prioridade era o emprego no MEC, num departamento de investigação de qualidade  de ensino, que o obrigava a viajar Amazônia afora. Seu chefe, Abgar Renault,  lhe dava toda liberdade.
     Nos últimos anos, pouco saía de casa. Desde que se viu  obrigado a fazer hemodiálise três vezes por semana, caminhava a passos miúdos,  os ombros curvados e, no rosto, a perplexidade diante dos mistérios da vida. A  fala era contida, proverbial, mesmo quando fazia palestras. Seus silêncios  ecoavam.
     Fazia questão de não abandonar o cigarro  e tomar um chope antes de submeter-se à hemodiálise. Dizia que, assim, o  tratamento seria compensado...
      Seu ponto de encontro era a Livraria Quixote, na rua  Fernandes Tourinho, onde há um espaço em homenagem a ele. Ali revia amigos,  lançava livros, tomava café da manhã. Foi ali que nos vimos pela última vez,  na véspera do Ano-Novo, quando me deu de presente o romance epistolar A  sociedade literária e a torta de casca de batata, de Ann Shaffer e Annie  Barrows.
      Há três anos ele me propusera um projeto  literário a quatro mãos: uma troca de correspondência sobre literatura,  conjuntura política, vivências. Nunca o efetivamos. Em nosso encontro de fim  de ano respondeu-me quando indaguei o que andava escrevendo: “Cartas para mim  mesmo.”
      Bartô contava que, quando criança, ficava  intrigado com o mistério de como pouco mais de vinte letras podem registrar na  escrita tudo que a cabeça pensa... Orgulhoso, disse que aprendera a escrever  com o avô, marceneiro, que morava em Pitangui (MG). Tirara a sorte grande na  loteria e, assim, trocou a madeira pela literatura. Ao se sentir inspirado,  tomava em mãos o lápis próprio para marcar medidas na madeira e redigia suas  histórias nas paredes da casa. Quando o avô morreu, tiraram da parede da sala  o relógio em forma de oito. Era o único espaço vazio de  textos...
      Bartô era um artista profundamente  espiritualizado. Desde que morou em Paris tornou-se devoto de São Charbel  (1828-1898), libanês, canonizado em 1997. Disse que o escolhera porque é um  santo de poucos devotos e, portanto, mais disponível para atender às suas  preces...  E mostrou-me a estampa do monge de longas barbas  brancas.
     Meu único consolo é a certeza de que  Bartolomeu Campos de Queirós vive, agora, imortalizado em suas obras  literárias. Reproduzo aqui o que escrevi a ele, em maio de 1998, após ler  Escritura: “Sua escrita é canto, luz, vereda e afago. Cada frase  lindamente esculpida! Proíba-se de tudo o mais para só escrever, porque é a  sua única e irrecorrível sentença de vida.”
 Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear  estrelas” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.


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