Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Seu sobrenome é liberdade e está isenta da quarentena




Dona Pandá está morando em uma pequena chácara. Sua casa fica atrás da casa da proprietária, sua irmã Marcolina. Ambas, pela idade, fazem parte de um grupo de risco frente à pandemia. Estamos falando de duas velhinhas? Bem, vejamos o que vocês acham
.
Há muitos passarinhos na chácara, pois o pomar os chama com as bananas, as jabuticabas, as seriguelas, as romãs, as mangas e muitas outras. Há ainda casinhas espalhadas em vários cantos, abastecidas, diariamente com alpiste e quirera, pelas duas habitantes humanas. Nas castanheiras, a disputa é entre os macaquinhos e os esquilos. Enquanto eles brincam e brigam nos galhos lá em cima, cá embaixo, Lau e Bela latem e querem subir nas árvores para pegar os ladrões. A algazarra atinge uma escala de decibel incômoda para os moradores das chácaras vizinhas.

Marcolina, paisagista que é, oferece suas centenas de flores aos beija-flores que não se fazem de rogados e passeiam pra lá e pra cá em bailados encantadores. São flores em vasos, em pequenos e grandes arbustos e, ainda, em grandes árvores, como os flamboaiãs.

Devido ao confinamento obrigatório, a mana caçula – Bernardina - veio ficar na chácara. Como é médica aposentada, mantém um rigoroso controle sanitário. As atividades das chacareiras se fazem sentir o dia todo fora da casa e, ainda, têm tempo para as gostosuras do fogão mineiro. A rotina inclui o cuidado com as plantas - abarcando aí jardim, pomar e horta -, com o minhocário e com as cadelinhas. No cuidado com as plantas estão também seu preparo para a secagem e as tinturas. Com a atual situação da pandemia, a preferência tem sido plantas que fortalecem o sistema imunológico, como pariri, moringa, inhame, batata doce roxa, abacaxi, limão, cúrcuma e alho que se transformam em comidas levadas à mesa em preparos bem criativos. Os chás também se fazem presentes, apesar dos protestos de Marcolina que prefere o café.

Pela manhã, Bernardina faz sua caminhada. Marcolina, de vez em quando, acompanha e Dona Pandá dá conta de sua ginástica.

À noite, depois que a lida se encerra, as opções caem em um bom filme ou cada uma se isola no silêncio de suas leituras. Às vezes, Bernadina faz, pelo Skype, alguns atendimentos, Dona Pandá escreve um pouco e Marcolina vê notícias na TV.  Bernardina introduziu, há poucos dias, o chá das cinco, com os amigos. Ligam o Skype – convidam os amigos pelo WhatsApp com antecedência – sentam no sofá em frente ao notebook –, tomam o chá e papeiam. Normalmente, o assunto acaba caindo nas plantas. Quando do outro lado da tela, alguém reclama do confinamento, Bernardina entra firme na defesa do fique em casa e Dona Pandá, na crítica à irresponsabilidade do atual governo frente ao Coronavírus. É bastante difícil para ela ficar calada diante das atitudes absurdas do presidente, seus ministros e filhos, não só no que se refere à pandemia, mas também quanto aos direitos e conquistas dos trabalhadores, à política externa e ao despreparo de todo o governo. Ela não se conforma com tanta ignorância.

Dona Pandá tinha o hábito de colocar, na varanda do seu quarto, ração para gatos. Eles se alimentavam e iam embora. Eram ariscos, às vezes, ficavam quietos olhando para ela, escutavam o que dizia e logo fugiam.

Numa noite, Dona Pandá foi acordada com miados cada vez mais fortes e insistentes. Ela se levantou e, percebendo que o barulho vinha do lado da varanda, abriu a porta, acendeu a luz e viu o gato preto que olhava para ela e depois para um volume que estava no chão. Era um filhotinho todo machucado. O gato preto era fêmea e suas tetas apareciam cheias.  Pegou o filhote na boca e levantou a cabeça. Seu gesto era claro. Queria entregar o gatinho para Dona Pandá. Seus olhos súplices transmitiam o pedido de socorro de uma forma inequívoca e veemente. Dona Pandá, comovida, pegou o filhote, entrou na casa à procura de um pano para enrolar o bichinho que tremia, tremia. A mãe – só podia ser a mãe – foi atrás, acompanhava muito atenta e em silêncio Dona Pandá. Esta limpou as feridas com soro fisiológico, percebendo que o animal era quase recém-nascido, mas os ferimentos não tão graves quanto pensava. Colocou pomada de calêndula e o enrolou num cobertor dobrado. Sentou-se com ele no colo. A gata - que passou a ser chamada de Maria – pulou para cima do sofá e começou a lamber aquela cabecinha e, depois de algum tempo, lambeu a mão de sua protetora, olhando para ela. Dona Pandá, muito devagar levou a mão e fez um carinho, chamando-a pelo nome que acabara de lhe dar. 
A gata deitou-se e a mulher depositou o gatinho ao lado da mãe, enquanto providenciava uma cama num canto. Colocou uma almofada grande, antiga cama de um dos cachorros que já se fora, cobriu-a com cobertor, pegou o gatinho e o colocou lá. Ele ainda tremia, mas bem pouquinho. Maria foi depressa deitar-se ao lado, parecia querer lhe dar o peito para alimentá-lo. Não conseguiu e ficou quieta, encostada no embrulho que era seu filhote. Depois de algum tempo, o pequeno estava imóvel, assustando Dona Pandá que chegou a pensar que ele tivesse morrido. Com todo cuidado, verificou que ele respirava e sua quietude era porque havia deixado de tremer e dormia. A gata também se acalmou e a mulher voltou para cama.

Na manhã seguinte, Dona Pandá acordou com o chamado de Maria que, quando viu a porta aberta, saiu correndo e foi até onde havia terra para fazer suas necessidades. Na volta, comeu, bebeu muita água e foi para perto do filhote, chegando muito perto para amamentá-lo. Ele parecia não querer outra coisa a não ser dormir, mas a mãe, com as patas mexeu com ele até que a fome deve ter aparecido e conseguiu mamar. 

Dona Pandá ligou para o veterinário que cuidava de Lau e Bela, mas foi informada por uma gravação que a clínica, por motivo de segurança devido à pandemia, estava fechada, com a ressalva de que, em caso de emergência, poderia dispor do atendimento ambulatorial e fornecia um telefone. Dona Pandá foi novamente verificar como estava o filhote, achando-o quietinho, parecia dormir novamente, sem tremedeira. Já tranquila, foi contar para as manas que vieram ver os visitantes felinos. Quando Bernardina chegou perto, Maria não gostou, arreganhou os dentes, rosnou, deixando claro que no seu filhote ninguém pegava. Elas saíram e Maria se acalmou, mas parecia ainda desconfiada.

Dona Pandá ligou para sua amiga Cláudia, que é a melhor veterinária do Planeta – nem pensem em discordar – e pediu orientação. Cláudia ensinou o passo a passo dos cuidados necessários com o filhote e com a mãe. Maria pariu sem assistência e deveria receber uma alimentação reforçada. Com a restrição imposta pelo Coronavírus, lá se foi Dona Pandá para a cozinha preparar o reforço para a nova mamãe.

Após uma semana, o Bilu – foi Marcolina quem deu o nome – andava ainda cambaleante, mas já curioso. Mais um mês e os dois passaram da condição de visitantes à de moradores.   Como liberdade é o sobrenome de todos os gatos, foi aberto um buraco na parede da casa para que Maria e Bilu saiam e entrem quando quiserem, sem restrição de quarentena, mas tendo de passar por um pano encharcado de solução desinfetante.