Morava em uma pequena cidade do interior paulista. Era o
terceiro filho de um casal de comerciantes. Os seus 10 anos foram comemorados
junto com o nascimento da irmã caçula que, a partir de então, lhe roubou todas
as festas e muito mais. Havia momentos em que pensava como faria para
sufocá-la. Perdia-se em fantasias tenebrosas.
Trocava o travesseiro – viu um filme em que o ladrão matou a dona da
casa com uma almofada – pelo cobertor, depois voltava porque já havia a
experiência bem-sucedida do ladrão e ninguém viu, nem ouviu. No dia em que Betinha completou dois anos, ela estava dormindo depois do almoço. Todos da casa
preparavam, na cozinha, a festa para mais tarde, com os enfeites e a toalha da
mesa cor de rosa. Maurício sentindo muita raiva, decidiu que sua irmã precisava
desaparecer imediatamente. Iria perder a comemoração do seu aniversário, mas já
não tinha mesmo festa. Era tudo para ela, a gracinha da família. Foi até a cozinha verificar se estavam mesmo todos
lá. Conferida a situação, passou pela sala, pegou uma almofada e subiu para o
quarto onde dormia a queridinha da mamãe.
Quando se debruçou no berço, Betinha
acordou, olhou para ele e sorriu, levando as duas mãozinhas no rosto do irmão à
guisa de carinho. Ela puxou o cabelo dele e ria, gargalhava vendo-o todo
despenteado. Ele a pegou no colo, esqueceu de seu propósito – que propósito? -
e começou a rodopiar com ela.
Maurício estava no seu quarto, na pensão onde morava, há
quatro anos. Escolhera o bairro Butantã por estar perto da USP, estuda lá,
terminara o curso de filosofia. Ficou querendo entender o motivo de aquela cena
vir à sua cabeça, após tantos anos. A terapia já dera conta de mostrar que ele
não era um assassino. Até riu lembrando-se da cena que montara no psicodrama e
da farra que Belinha fez quando soube.
Formara-se em dezembro, seu pai foi o único que pôde vir. Os
dois foram juntos para casa e depois de um mês de férias, Maurício voltou para
continuar as aulas que dava num cursinho e começar o mestrado.
Agora, estava preso naquela casa sem poder dar, nem ter
aulas. A quarentena o pegou de calças curtas. Não estava preparado para ficar
no isolamento. A pensão lhe fornecia o café da manhã, mas as outras refeições
ele as fazia na Universidade. A dona da pensão lhe avisou que iria para a casa
da filha e falou que a moça da limpeza ficaria na casa e continuaria a lhe dar
o café, mas somente na primeira semana. Então, ele já não tinha nem mais o
café, mas a cozinha estava à sua disposição. Grande ironia! Não sabia sequer
fritar um ovo.
Nos três primeiros dias, foi até a padaria e comprou pão e
queijo que passaram a ser suas refeições. No quarto dia, seu estômago avisou
que não aceitaria mais os dois ingredientes. Ainda titubeou, pois não sabia
cozinhar, mas resolveu ir ao supermercado para comprar comida congelada. Ao ver
os preços, teve um choque, seu dinheiro não daria para comer durante uma
semana. Pensou em frutas e salada. Novo choque, as frutas competiam com os
congelados. Comprou arroz, feijão, ovos e alguns legumes. Entre triste e
irritado foi para casa.
No caminho, ao passar por uma pracinha, tropeçou, caiu e
suas sacolas com todas as compras se espalharam. Soltou um palavrão e ouviu uma
vozinha gritar: - Ih! Não pode dizer nome feio. – Ainda sentado devido ao
tombo, viu um garoto vindo em sua direção e logo começar a devolver tudo às
sacolas. Quando estava com todas as compras dentro novamente, agradeceu a ajuda
e, só então, olhou direito para o menino e viu que estivera chorando. Estava
com roupas bem usadas, mas limpinhas.
- Que idade você tem?
- Já tenho 12 anos – Maurício repetiu: - 12 anos, a idade da
Betinha, minha irmã caçula. – Pensou que agora sabia porque acordara se
lembrando da maledeta cena.
- Qual o seu nome?
- Marcos.
- O meu é Maurício. Muito prazer, Marcos.
- Muito prazer, Maurício.
- Por que estava chorando?
- Minha mãe foi levada para o hospital. – Maurício ficou
assustado e fez um esforço para se lembrar de onde o menino havia colocado a
mão e também se afastou um pouco, embora estivesse com máscara e luvas.
- Você mora com quem mais? Seu pai?
- Não. Só moro com minha mãe. Vim para a praça porque fiquei
com medo de ficar sozinho. Minha mãe não me deixa sair de casa, nem para ir à
escola. Ela diz que é perigoso pegar uma doença feia, mais feia que o Bozo.
Maurício achou graça e perguntou se ele se referia ao
palhaço e o menino muito sério respondeu:
- Não. O tal que roubou tudo dos
empregados. Mãe disse que ficou sem emprego por causa dele. Não gosta de gente
que nem nós. Também não gosta de mulher, nem de boiola, nem de preto, nem de
índio. Você é boiola?
- Não. - Num impulso, Maurício chamou: - vem comigo. Você
sabe cozinhar?
- Sei fazer arroz.
- É mesmo?! Então vamos logo porque estou morrendo de fome e
você vai me ensinar a fazer arroz.
Foram andando e Marcos quis ajudar a levar
as sacolas, mas Maurício agradeceu. Ele já estava achando que se deixara levar
pela fome e não sabia o que fazer com o menino, cuja mãe podia estar com o
Corona vírus. Na medida em que andava, ia pensando em como sair daquela
situação. Percebeu que não conseguiria retirar o convite e deixar o menino ao
deus dará. Ele próprio estava com muita fome, sabia que Marcos deveria também
estar. Ao chegar na pensão, retirou o sapato e pediu para seu companheiro fazer
o mesmo. Deixou as sacolas na entrada e foram ambos para o banheiro no
apartamento onde Maurício morava. Lá tirou a roupa que separou e fez o garoto
também ficar nu e entrar para debaixo do chuveiro. Pegou uma camiseta sua e deu
para ele se vestir.
Foram para a cozinha. Parece que o menino sabia mesmo fazer
arroz e, como não alcançava o fogão, foi dando a receita e Maurício fazendo.
Enquanto o arroz cozinhava, trocaram ideias de como poderiam comer os ovos.
Chegaram ao consenso de que o mais fácil era cozinhá-los. Maurício colocou a
água no fogo com meia dúzia de ovos. A
fome era grande demais, comeram uma banana cada um e um copo de leite.
Com a fome um pouco aplacada, Maurício foi lavar as roupas
do menino. Contente por saber como fazer já que suas roupas, quando o bolso
está vazio, o que significa a maior parte dos dias, ele lava suas roupas e a
dona da pensão não disponibiliza a máquina.
- Maurício, Maurício – Era um chamado urgente. – O arroz
está queimando!
- Com o fogo desligado, Marcos falou que precisava provar
para ver se devia pôr mais água. Maurício, cuja fome voltara maior ainda, quis
ignorar o aviso, mas a voz da mãe falou mais alto e Marcos: - Mãe fala que
precisa provar. – Deu a colher para o rapaz e insistiu: - prova.
Com um grande suspiro, a prova foi feita e ignorada, porque
o arroz ainda estava meio duro, mas os ovos já estavam no ponto. Resolveram
comer.
Depois que comeram, Maurício lavou os teréns e Marcos falou
que a mãe punha roupa para secar atrás da geladeira. Foi pegar sua roupa no
varal, mas não alcançou e os dois riram da figura do menino com a camiseta que quase
chegava a seus pés. O rapaz ajudou e o menino copiou o que vira a mãe fazer.
Maurício falou que precisava conversar sério com o garoto
que foi logo falando:
- quando minha roupa secar, é pra mim se mandar? – Maurício
ficou penalizado, mas aproveitou os erros para aliviar a tensão: - Olha aqui,
minha professora me ensinou que mim só come capim. – O menino olhou assustado e
perguntou: -sua professora te ensinou o quê?! Maurício riu e falou: - você está
achando que ela me ensinou a comer capim?! - Foi?!
- Não. Você disse pra
mim se mandar. O mim não faz nada quem faz é o eu. Então o certo é dizer
para eu me mandar. – Notando que os olhos do garoto se enchiam de lágrimas,
Maurício continuou: - ah! Não precisa
ficar chateado, eu entendi o que você falou e vamos conversar para nos conhecer
melhor.
Os dois se acomodaram ao redor da mesa da cozinha, que,
agora, era só deles já que não havia mais ninguém na casa. Maurício ficou
emocionado com o que ouviu. Marcos mora com a mãe que vende sacos de aniagem
para uma fabriqueta de ninhos de passarinhos. Ela busca os sacos em lojas de
atacado que recebem os sacos embalando algumas mercadorias e os cortam ao meio
para facilitar a retirada do que está dentro e os descartam. Luzia – é seu nome
– ela os costura e vende bem mais barato do que os sacos inteiros, não usados.
Marcos explicou que a mãe, muitas vezes, fica doente e a bombinha que usa não
adianta, ela vai ficando com falta de ar. Desta vez, Marcos correu e pediu para
a vizinha ir ajudar porque a mãe estava ficando roxa e ele, muito assustado. Outro vizinho que tem um caminhãozinho levou
Luzia.
Maurício, depois de muitas perguntas, acabou sabendo que
alguém que mora perto da Luzia tem um celular. Ligou e quase entra em colapso,
soube que Luzia havia morrido na porta do hospital “Também – disse a dona do
tal celular – não iriam deixar ela entrar. Ainda bem que o filho não apareceu
por aqui, porque um fulano que diz que é tio dele quer levá-lo para pedir
esmola.” Marcos estava no banheiro e
Maurício, em pânico, completamente desarvorado. Pelo que o menino falou, ele e
a mãe eram muito pobres, mas ela o cuidava com muito carinho. Não tinham mais
ninguém. Não conhecia seu pai. A mãe contou que fugiu de casa para se casar e o
pai morreu quando ele tinha só três meses. Não sabe nada dos avós. Nestes
últimos dias, a mãe não deixou ele ir à escola e ela não podia ir buscar os
sacos por que as lojas estravam fechadas, mas ela não deixava ele passar fome.
Quando Marcos voltou, Maurício só sabia de uma coisa, os dois passariam a tal
pandemia juntos.