Ilda e Ramon - Sussurros de Liberdade

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domingo, 9 de outubro de 2011

Infraero: a privatização continua em marcha!


Paulo Kliass

O “lobby” para transferir as atividades aeroportuárias ao setor
privado é antigo. Para tanto, contam com a irresponsável política de
redução dos investimentos da Infraero provocada pelos cortes
orçamentários há décadas. Eis que se apresenta a grande oportunidade
que não poderia ser perdida! A Copa do Mundo de 2014.
Paulo Kliass
As surpresas desconfortáveis que a História nos apresenta, depois da
chegada de governos supostamente mais à esquerda ao poder, são bem
antigas. Dentre os muitos casos conhecidos, há dois que podemos
considerar como paradigmáticos e que passaram a ser referência para
esse tipo de dificuldade política, derivada de um abandono dos
programas para os quais os governos haviam sido eleitos. Refiro-me às
vitórias encabeçadas pelos socialistas na França com François
Mitterrand e na Espanha com Felipe Gonzalez, lá no longínquo início da
década de 80 do século e do milênio passados.
As vitórias eleitorais de Margaret Thatcher na Inglaterra e Reagan nos
Estados Unidos, ocorridas pouco tempo antes, haviam aberto a
possibilidade de se implementar, como política de governo desses
países, as idéias ultra-liberais em termos de política econômica.
Forjou-se o que passou a ser conhecido como Consenso de Washington –
na verdade, um programa coordenado daquilo que hoje convencionou-se
chamar de neoliberalismo.
Um dos elementos mais simbólicos dessa tentativa de se fazer “tábula
rasa” da experiência do “Estado do Bem Estar Social” e dos tímidos
ensaios de políticas keynesianas foi o tratamento conferido à presença
do Estado na economia – seja pela via direta de empresas públicas,
seja pela via dos mecanismos de regulamentação e intervenção indireta.
Recuperar a ortodoxia “autenticamente liberal” significava, portanto,
desconstruir em termos políticos e ideológicos todo e qualquer
resquício dessa opção maculadora dos princípios do “laissez faire,
laissez passer”. De acordo com essa visão radical do liberalismo, o
Estado encarnava todos os males de que as sociedades padeciam. Era
preciso acabar com toda essa estrutura e todo esse instrumental que
foram sendo desenhados e construídos a partir da Grande Depressão de
29 e, principalmente, depois do final da Segunda Guerra Mundial.
A opção de política pública que melhor expressava essa reviravolta
liberalizante consistia na venda das empresas públicas ou na concessão
de tais alternativas de empreendimento ao setor privado. Em uma única
palavra: a privatização. O recurso a esse ou aquele argumento variava
de acordo com o contexto do país ou com a conjuntura vivida.
Ineficiência da ação pública face à suposta competência do setor
privado. Necessidade de reduzir as dívidas públicas, o que serias
viabilizado pelos montantes obtidos com as vendas do patrimônio
estatal. Necessidade de conferir a tais setores da economia a vigência
plena das regras da “liberdade de mercado”. Opção por implementar
políticas públicas que satisfizessem aos interesses de importantes
grupos do capital privado. Enfim, o que importava era assegurar a
transferência ao capital privado a propriedade ou a gestão de setores
ou empresas que antes eram de natureza pública.
Corta! Pano rápido! Pulemos a longa seqüência das cenas relativas aos
processos de privatização na grande maioria dos países do Terceiro
Mundo ao longo dos anos 80 e 90, as chamadas décadas perdidas.
Saltemos os capítulos a respeito da implementação de política
econômica liberal e ortodoxa durante boa parte dos mandatos de Lula.
Registremos a crise do capital financeiro internacional a partir de
2008 e o questionamento dos fundamentos ideológicos da devastação
neoliberal, opção até então colocada em marcha pelos quatro cantos do
planeta. Evitemos comentar a implementação das medidas ortodoxas,
inclusive de privatização de empresas públicas, pelo governo
socialista de Papandreou na Grécia de hoje. E chegamos, enfim, à posse
de Dilma em janeiro passado.
Havia uma grande expectativa criada logo nos primeiros meses de seu
governo, quando a Presidenta passou a dar sinais de que faria uma
opção de política econômica menos comprometida com os rigores da
ortodoxia vigente até então. Mas foi necessário que eclodisse o
aprofundamento da crise financeira no espaço europeu para que o COPOM,
finalmente, decidisse pela redução de tímidos 0,5% na Taxa SELIC,
depois de uma seqüência de altas em 5 reuniões consecutivas desde o
início do novo governo. Aguarda-se com ansiedade a confirmação da
tendência de redução substantiva da taxa na próxima reunião, a
realizar-se em 18 e 19 de outubro.
Mas todo mundo sabe que nem só de política monetária (taxa de juros)
vive a política econômica. E um de seus aspectos relevantes refere-se
às opções que o governante realiza para a consecução dos preceitos
constitucionais, para fazer valer os direitos dos cidadãos e para
alcançar as metas de melhoria da qualidade de vida.
Chama a atenção a persistência em se manter no bojo da agenda
governamental projetos de privatização de atividades cuja natureza é,
inquestionavelmente, pública. Já não se trata mais da venda explícita
das grandes estatais, como ocorreu nas décadas de 80 e 90, quando
empresas estratégicas e com elevado potencial foram transferidas ao
setor privado a preços irrisórios. Não, agora o jogo é mais sutil.
Dada a impossibilidade política de criar condições para privatizar
conglomerados como Petrobrás ou Banco do Brasil, o setor privado
orienta a sua ação com o intuito de convencer os governantes a
respeito de uma agenda de privatização que promova menos estardalhaço.
Como se estivessem em um compasso de espera, em uma postura defensiva,
esperando passar essa fase de crítica generalizada aos preceitos do
neoliberalismo.
Há três exemplos dessa nova manifestação do processo privatizante que
merecem nossa atenção. Isso porque operam em setores que têm grande
importância estratégica para o País e que apresentam potencial de
rentabilidade também significativo. Refiro-me aos seguintes sistemas;
i) os aeroportos; ii) as rodovias federais ; e iii) o fornecimento de
acesso à rede de internet. Todos eles apresentam em comum o fato de
serem serviços públicos, cuja responsabilidade de assegurar o
fornecimento à população cabe, em última instância, ao Estado
brasileiro. Infelizmente, por problemas de espaço, vou tratar aqui
apenas do primeiro deles.
O “lobby” para transferir as atividades aeroportuárias ao setor
privado é antigo. Para tanto, contam com a irresponsável política de
redução dos investimentos da Infraero provocada pelos cortes
orçamentários há décadas. Assim, a cada ano, nos períodos de maior
afluência aos aeroportos, a grande imprensa já tem pautado o destaque
de cobertura, na expectativa do novo “apagão aéreo” e na incansável
tentativa de responsabilizar a natureza pública da gestão como a única
responsável dos inúmeros problemas (e eles são reais! - é necessário
reconhecer) enfrentados nos aeroportos. Há vários anos que se observa
o movimento de “vai e vem”, oscilando entre ceder a operação dos
aeroportos ao setor privado ou mantê-la na órbita do governo federal.
Mas eis que se apresenta a grande oportunidade que não poderia ser
perdida! A Copa do Mundo de 2014. Esse é o grande momento para
pressionar o governo e conseguir a liberação tão desejada. E o
argumento que mais pesa é o de que não podemos correr o risco de
“passar vergonha” durante o mês em que as principais seleções de
futebol do planeta aqui se apresentarão. E vêm à tona, mais uma vez,
os antigos projetos que já estavam em discussão interna nos gabinetes.
O governo decidiu por ceder ao setor privado a operação dos aeroportos
de Brasília (DF), Guarulhos (SP) e Viracopos (SP). Além disso,
estariam em fase avançada estudos para realizar o mesmo, um pouco mais
à frente, com os aeroportos de Galeão (RJ) e Confins (MG). [1]
O modelo adotado foi a constituição de uma empresa responsável pelas
atividades, no formato que se convencionou classificar como Sociedade
de Propósito Específico (SPE). A composição da empresa que ganhar a
licitação permitirá que o capital privado fique com 51% da propriedade
e os 49% restantes poderão ficar com a própria Infraero. Nada é
mencionado a respeito da origem dos vultosos recursos necessários para
as obras de infra-estrutura e equipamentos. Provavelmente, virão de
fonte pública – por exemplo, o BNDES – com linhas de crédito a juros
altamente subsidiados. No que se refere às taxas a serem cobradas
pelos serviços oferecidos tampouco se fala, apesar delas serem uma das
principais fontes de receita da atividade. Cabe lembrar aqui a
elevação expressiva das tarifas cobradas pelas empresas de energia
elétrica e telefonia, fenômeno que ocorreu logo após a privatização da
época de Fernando Henrique Cardoso.
Gestão aeroportuária é atribuição altamente estratégica e com um
conteúdo de segurança nacional que não deve ser negligenciado. Ao
invés de optar pelo caminho da melhoria do padrão gerencial existente
(o que é uma necessidade urgente!), o governo rendeu-se mais uma vez
ao discurso viesado de que a gestão privada é sempre mais eficiente do
que a gestão pública. E ainda abre o perigoso precedente, tal como
consta no edital, de permitir a participação de empresas estrangeiras
na gestão aeroportuária. Uma loucura! Outro detalhe interessante é que
as experiências privatizantes vão começar justamente pelos aeroportos
de maior potencial de rentabilidade e lucratividade. Com certeza, não
se trata de mera coincidência. São aqueles que apresentam a maior
movimentação de passageiros e aeronaves, todos localizados na região
de maior desenvolvimento econômico e na capital do País. Parece
repetir-se a conhecida estória de ceder ao capital privado o filé
mignon, enquanto o setor público fica com a carne de pescoço. Ou seja,
permanece encarregado pela operação dos aeroportos de menor movimento
de aeronaves/passageiros e menor capacidade de arrecadação.
Os números relativos aos 3 aeroportos a serem privatizados refletem
bem a realidade do que vai ser subtraído do setor público. Eles são
responsáveis por 30% do total dos passageiros, 57% do total das cargas
e 19% das aeronaves em todo o País. Com isso, fica evidente que a
Infraero vai perder as fatias mais importantes de sua fonte de
receitas, pois os demais 63 aeroportos apresentam baixo faturamento,
que tem como principal fonte as taxas aeroportuárias. Se a
administração aeroportuária é um setor assim tão interessante e as
empresas têm mesmo essa preocupação com sua função social, por que não
constam do pacote aeroportos como os de Altamira (PA), Tefé (AM) ou
Cruzeiro do Sul (AC) ? Afinal, trata-se de cidades importantes, em
região de grande dificuldade de acesso e transporte, onde a aviação
cumpre papel fundamental.
O governo ensaia fugir da polêmica, argumentando que não se trata de
“privatização” e sim de “concessão”. Ora, a concessão é uma das
inúmeras formas de privatização! Não se está vendendo o patrimônio do
aeroporto, mas cedendo por prazos que - imagina-se - serão bastante
generosos para os que pretendam administrá-los. É mais uma tentativa
da tal parceria-público-privada (PPP), onde o Estado entra com todos
os custos e riscos, cabendo ao capital privado usufruir das benesses
da lucratividade obtida com a prestação de um serviço público.
Outro argumento sempre apresentado é a falta de recursos públicos para
fazer as obras de modernização e os investimentos tão necessários nos
aeroportos. Ora, mas onde o grupo privado que vier a vencer a
licitação vai buscar empréstimos para essa tarefa? Com toda a certeza,
junto ao BNDES, ou seja, fundos públicos a juros subsidiados, com a
conta sendo paga pelo conjunto da sociedade. Nesse caso, se o dinheiro
está mesmo disponível, a própria Infraero poderia ser a beneficiária
desse crédito em condições privilegiadas.
O edital está em regime de audiência pública até o final do mês de
outubro [2]. Assim, em princípio, existe o espaço para crítica e
aperfeiçoamento do modelo. É necessário ampliar o debate e informar a
população a respeito. Aos partidos políticos, às entidades da
sociedade civil, ao movimento sindical e demais organizações que não
concordam com tal proposta, cabe a manifestação e apresentação de
alternativas.
NOTAS
(1) Pouca gente ficou sabendo, mas o primeiro aeroporto da Infraero já
foi privatizado em agosto recente, o de São Gonçalo do Amarante (RN),
a 40 km de Natal. Trata-se da menor distância em direção ao continente
europeu.
(2) Ver: http://www2.anac.gov.br/transparencia/audienciasPublicasEmAndamento.asp


Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.

Nossa fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5239

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