Dona Pandá foi visitar a amiga
Bastiana que está fazendo as malas para uma grave mudança. Esteve por lá
algumas horas e voltou silenciosa, não quis comer, nem andar com os cachorros.
Tomou uma chuveirada e se retirou para seu quarto. Passou uma semana com meias
palavras. Parecia estar fechada. Seu rosto ficou marcado por rugas novas,
vincando sua expressão numa carranca feia, pura expressão de um sofrimento de
alma. Agora, disse precisar escrever. Como é seu hábito, contou-me o quê e como
quer escrever. Ela praticamente dita, mas sua paciência pequenininha a leva
logo embora, dizendo:
- você sabe o que é para escrever,
depois eu olho. –
Lá vamos nós nesta tentativa difícil. Não tenho
certeza de que conseguirei dar o tom certo. Embora eu tenha sentido a tristeza
imensa de Dona Pandá por sua amiga, há também uma revolta, uma raiva, uma
impotência diante do inexorável. Pareceu-me que a Bastiana está com um
sentimento diferente. Nela a tristeza tomou conta, não dando lugar a outros
sentimentos. O receio de Dona Pandá é que possa haver sequelas, como descrença
e perda da vontade de vida.
Bastiana acaba de fazer 70 anos. Sua preocupação
com a saúde praticamente se resume ao esqueleto, é portadora de osteoporose.
Tem uma vitalidade ignorante de preguiça. Costuma dizer que só se lembra das sete décadas vividas quando olha no espelho e, quase sempre, se assusta. Desde os 17 anos é responsável por
sua vida física, financeira, emocional e mental. Liberdade e privacidade são
dois valores relevantes e defendidos com muito zelo. Reconhece que seus três
casamentos tiveram os laços desatados, sobretudo por ela, dando poucos créditos
aos respectivos companheiros nas separações. Mora numa chácara que comprou há
17 anos. Transformou um terreno inóspito no lugar do seu retiro, onde convive
com o que plantou em toda sua vida. Continua plantando, mas acha que seu tempo
agora é mais de colheita. Cuida de seus cachorros, de plantas e escreve. As
duas atividades – o cuidar e o criar – são colheitas do terreno preparado
nesses anos por suas opções. Gosta e cultiva a solidão. No entanto, Bastiana me
corrigiria, dizendo que gosta de estar só, mas não é solitária e quando sente
vontade de papear com determinado amigo, rapidinho corre atrás do objeto de sua
saudade. Cultiva algumas amizades antigas, preciosas. Poucos vêm visitá-la.
Todos estão bem presentes, com intensa troca de mensagens e telefonemas. Há também,
quando a estrada está intransitável para os carros urbanos dos amigos, alguns
almoços no meio do caminho.
Dona Pandá é uma dessas amizades de muitos anos.
Gosta de dizer que já comeu, pelo menos, dois sacos de sal junto com a amiga.
Bastiana pediu demissão de seu último emprego e veio morar na chácara, convencendo
Dona Pandá a fazer o mesmo. Tornaram-se vizinhas e parceiras em algumas atividades.
Bastiana é escritora e ajuda a amiga em suas incursões literárias. O caminho
inverso é feito mais na área da terra. Dona Pandá gosta de descobrir novos
tratamentos para as plantas. Gosta mais ainda de repassar suas descobertas e a
amiga-vizinha é sua principal receptora.
As duas amigas têm muitas afinidades, além de uma
história de vida semelhante. Acham que Bastiana possui um diferencial privilegiado.
Tem uma família muito especial. Suas irmãs, que moram nas terras do Serrado Goiano, são pessoas de qualidades excepcionais, unidas, solidárias,
generosas. Além de ter o filho e a nora
que pediu ao Universo. Dona Pandá confessa despudoradamente que, neste
aspecto, inveja a amiga. Ambas são
mulheres que batalharam muito pela liberdade. A vida que têm, hoje, é fruto
dessas batalhas. Planejaram suas vidas
para desfrutarem uma velhice tranquila no meio do mato, o lugar de origem. Ao
se mudarem para suas chácaras, trabalharam duro para conseguir a emoção do cheguei ao meu lugar. Esta é a expressão
que usam ao falar de suas moradas.
Dona Pandá encontrou sua amiga bem esquisita.
Bastiana não estava de mau humor, mas tinha dificuldade de falar. Abria a boca e
gaguejava. Começava a falar emboladamente, como se quisesse e, ao mesmo tempo,
não contar algo grave. Ao final, como era de se esperar, tratava-se do seu amigo predileto, um jovem senhor. Ele e sua linda mulher chegaram para o almoço semanal. O rapaz começou, então, a se mostrar
preocupado com a segurança da setentona. Disse que iria colar alguns pedaços de
lixa na calçada ao redor da casa para evitar escorregões. Como ele é muito
criativo, sobretudo quando se trata de desenhos e música, já estava bolando
recortes que deixariam as calçadas bem bonitas. Depois outras preocupações foram
explicitadas: as varandas precisavam ser reformadas, a escada demandava uma
grade. Bastiana estava achando até
engraçado tantos cuidados logo após seus 70. Estranhando o fato de não ser consultada, pensou, em determinado
momento, como seria se resolvesse dar uma faxina na casa do amigo.
O final do dia foi a frase que expressou a
preocupação máxima do rapaz com a segurança da anfitriã. Ela deveria se mudar para junto
das irmãs, retornar a Goiás. Bastiana não falou com tranquilidade de sua emoção. Lembrou-se do pai que se sentia extremamente culpado
por ter, seguindo o conselho médico, tirado o avô da fazenda onde ele sempre morou. O
avô viveu (?) até os 90 anos na cidade. Não teve o enfarto vaticinado caso
continuasse a trabalhar na fazenda, mas perdeu a memória, a alegria. Passou
anos sentado, alheio à vida preservada.
Bastiana ficou espantada por não ser compreendida
em suas convicções, em sua maneira de viver e de valorar a vida. O
sentimento maior é a tristeza e junto foi apresentada à solidão.
Dona Pandá se revoltou, sentiu muita raiva do
inexorável. De um lado, a velhice com suas exigências, sua desarmonia entre o
físico e o emocional-intelectual e do outro, a juventude desmemoriada e presunçosa. Bastaria a
lembrança honesta de uma época quando os cuidados com a fragilidade da idade eram
dados com a observância da primazia emocional.
Já é desgastante o enfrentar dos mais variados
procedimentos da sociedade. Alguns, embora reconhecidamente necessários, não
conseguem deixar de humilhar pela distinção negativa. Na fila do banco, os
olhares e resmungos impacientes; na carteira de motorista, o aviso pleonástico
de que se trata de maior de 65 e, em tantos outros lugares, onde a idade é vista
com irritação e, muitas vezes, intolerância e preconceito. Os velhos, como
todas as pessoas, não são todos iguais, sentem e têm necessidades diferentes, mas o espaço conquistado talvez seja uma constante para todos.
Neste instante, chegam atrás de mim, para ler o texto, Dona Pandá e a amiga. Bastiana sorri e, procurando minimizar o
acontecido, explica que, curada a ressaca, está mesmo fazendo as malas. A
acolhida das irmãs, quando lhes foi contada a possibilidade de sua ida para o Serrado Goiano, foi tão gostosa, quanto estimulante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário