Hoje foi um dia esquisito
para Dona Pandá. Na realidade, há algum tempo que ela está mais reflexiva. Seu
silêncio parece ameno, quase amoroso, como se tivesse tomando cuidado, seus
passos ficaram silenciosos, sua voz baixa, seu riso escasso, substituído por um
sorriso envergonhado. Às vezes, vai para a mata, acompanhada de perto, mas não
tanto, pelos cachorros que sentem seu momento, não a largam, sem, contudo,
chegar muito perto, repeitando o que não entendem.
Agora quero ir a Paris, mas você chega de cara
amarada – ai, tão você – comigo no cartório, em Ibiraci, para me dar a
emancipação de que precisava para lecionar. Eu quero trabalhar e você finge
estar muito chateado por isso. Contradição esclarecida quando escuto, sem você perceber, sua
conversa com um amigo contando de seu orgulho por “sua menina” querer a independência.
A próxima aparição é à beira da cama de mamãe que está se despedindo , com tanto sofrimento. Sua companheira de vida se foi e eu fui tentar lhe cuidar. Tempo difícil, tristeza invasora.
Esteve mexendo em uns papéis,
lendo, anotando e me chamou para dizer que há algumas cartas que não mandou.
Algumas por terem caducado, assuntos vencidos, emoções superadas, outras por
serem tão desinteressantes que não valem a pena nem guardá-las, nem ainda
oferecê-las à leitura do destinatário. No entanto, duas são testemunhas de amor
e não vão passar. Seus destinatários são
pessoas tão queridas: uma se foi e a outra, felizmente, está em momento diferente
daquele que inspirou a carta – assim Dona Pandá espera -, mas o amor permanece.
I- A Saudade dói e não mata
Hoje é seu aniversário. Hoje seria seu
aniversário, mas você foi embora. Se tinha que ir, foi bem, da melhor forma.
Primeiro se sentou na terra, embaixo da jabuticabeira no quintal da filha
caçula, chupou suas frutas prediletas e discretamente, sem qualquer alarde, se
foi. Falei com você um pouco antes, mas o bom de lembrar é seu último abraço
quando, após 10 dias juntos, nos despedimos para eu voltar à minha morada, na Chácara
Xury, que você me ajudou a formar.
- Para de plantar árvore, você vai ficar sem
Sol. – Ouço seu alerta. E quando de minha próxima visita em sua casa, em Belô, sua fala foi:
-
Fiz umas mudas para você levar para plantar. – Lá vinha eu carregada de mudas de lichia, cabeludinha, jabuticaba e
tantas outras que, agora, moram no meu pomar e me dão seu gosto misturado com a
saudade.
As lembranças me povoam, me arrancam
soluços e risos, sem ordem, misturados. Você chega e a saudade derrama minhas
lágrimas que, em seguida, são acompanhadas de sorrisos vindos dos carinhos,
ternura que chegam trazidos por você.
Não há cronologia. Sou a criança que está em cima de um belo cavalo e
escuto seu grito:
- Não deixa o garrote passar. – Estamos
na fazenda levando o gado de um pasto para outro. Estas imagens são fortes, é
minha infância, a melhor de todas as infâncias: cavalos, leite no curral, carro
de boi ... felicidade, âncora de toda minha vida.
Tento ir atrás dessa época, mas já estou
mulher, perguntando-lhe:
- Vou vender esta chácara (era minha
primeira) e torrar o dinheiro em Paris. O que você acha? – Sua resposta, sua
cara:
- Foi você que trabalhou para comprá-la,
ponha o dinheiro onde achar que vale a pena. –
E lá está você mudando sua fisionomia
com a dor da perda de suas fazendas e a culpa de nos deixar pobres, sem escutar
o que tínhamos a lhe dizer e, que bom, você logo volta à primeira chácara para
me ensinar a fazer um aterro:
- Mexer com terra é sempre complicado.
Pensa que vai um caminhão e acaba precisando de cinco. –
A próxima aparição é à beira da cama de mamãe que está se despedindo , com tanto sofrimento. Sua companheira de vida se foi e eu fui tentar lhe cuidar. Tempo difícil, tristeza invasora.
Lá está de novo seu riso me trazendo
alívio. E a eterna pergunta: - Precisa de dinheiro?
Gostaria de acreditar, como minhas
irmãs, que ainda nos veremos, em outro patamar. Sei que sua presença em minha
vida está em tudo que sou. Gostaria de escrever sobre você, sobre o homem
forte, carismático, líder regional, contraditório, casmurro, doce, amargo,
vaidoso, honesto, íntegro, amoroso e tão MEU PAI.
II- A dor que é sua
Deixei
você com sua dor, mas ela me acompanhou, forte, lancinante me inundou e, na
minha cara, mostrou minha impotência.
Você ficou com sua dor, mascarada em impaciência, beirando a raiva, desejando a
solidão Os incômodos dos galhos secos, malformados.
Alguns
poucos dias separavam você da despedida final do seu companheiro, inesperada
naquele momento. As descobertas e os tormentos das medidas necessárias ao
enceramento de uma vida só maltrataram, não basta a dor da perda. Uma sociedade
organizada, como a nossa, cobra providências imediatas. Documentos que
antecedem documentos. Providências a
priori que só conseguem vir depois. Contradições inexplicáveis, porém
exigentes. E a dor firme, acompanhando, grudada na mão que assina sem vontade, nas pernas que
caminham com passos firmes, balançando a alma, na cabeça que é demandada a
pensar, resolver, tomar decisões. A exaustão abate e vem a vontade de dormir,
não o sono, apenas o querer apagar, se não a situação, o sofrer, então, a si
mesma, numa fuga anestesiante que não vem.
Antes
de pegar o avião, ainda fiquei uma noite
nas Alterosas, mas longe – e tão junto – de você, minha querida. Quando
cheguei de volta ao meu ponto, tive momentos de grande alívio na recepção de
meus bichos, das minhas árvores. Um vaso de belas e coloridas flores me
esperava e, grata, respirei. Na segunda
noite, a dor foi sufocante, assustaram-me sua intensidade e indefinição até
perceber que era a sua dor que eu sentia. A compreensão de sua necessidade de
eu não estar perto me impedia de tentar uma comunicação. Comecei a fazer o que
sempre faço em momentos doídos, procurar a companhia de minhas árvores e com
elas me acalmar para enviar a você o que podia de paz e, sobretudo, todo o meu amor. Saber você forte não
amenizava a dor compartilhada e não dividida. Impotência.
Agora,
você me telefona preocupada com minhas condições materiais! Ah! Minha tão
querida, quanto caminho ainda terá que percorrer para se livrar das burocracias
burras, exigentes e incompetentes e das pessoas, amigas, e eu com elas, que
querem ajudar só fazem trazer, mais uma vez, as lembranças tétricas. Você, na
sua generosidade, vai percorrer todos os caminhos duros e acabará chegando a um
lugar seu. Lá estará você, inteira, íntegra, maior, bela, dona de si e das
flores.
A nostalgia de Dona Pandá me fez chorar...
ResponderExcluirMeu carinho para vc.
ExcluirMian
Que lindas Mian! Como é bom ter alguém que expressa o que a gente também sente. Assim, percebo o quanto estamos juntas. Beijos.
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