Guilherme Boulos, coordenador do MTST detido hoje pela polícia paulista, explica por que o capitalismo contemporâneo não tolera metrópoles sem cercas
Trecho do livro Por que ocupamos? (Autonomia Literária, editora parceira de Outras Palavras no Outros Quinhentos). Foto da Mídia Ninja no despejo de 700 famílias da ocupação Colonial
O
Brasil tem tantas mazelas sociais que às vezes não conseguimos ter
a dimensão da gravidade de cada uma delas. A falta de moradia é um
dos problemas mais sérios. Estamos entre os países com maior
déficit habitacional do mundo, ao lado de Índia e África do Sul.
“Déficit
habitacional” é o nome que se dá para a quantidade de casas que
faltam para atender a todos aqueles que precisam de um teto. Existem
dois modos de definir este déficit: o quantitativo (número de
famílias que não tem casa) e o qualitativo (número de famílias
que moram em situação extremamente inadequada). Estes dois dados,
juntos, formam o panorama do problema habitacional brasileiro.
O
último estudo feito pela Fundação João Pinheiro, publicado em
novembro de 2013, que é utilizado oficialmente pelo governo federal,
mostra que o déficit habitacional quantitativo no Brasil é de
6.940.691 famílias. Isso significa que cerca de 22 milhões de
brasileiros e brasileiras não têm casa. Os sem-teto são, portanto,
mais de 10% da população do país. Como vive toda essa gente?
É
preciso, primeiramente, deixar de lado a visão equivocada de que
sem-teto são somente aqueles que moram na rua, em situação de
extrema miséria e mendicância. Esse grupo é aquele que chegou ao
limite da degradação causada pela falta de moradia, pelo desemprego
e outros males do sistema capitalista. A maioria dos sem-teto, no
entanto, não está em situação de rua e trabalha, ainda que muitas
vezes na informalidade e sem direitos assegurados.
O
mesmo estudo da Fundação João Pinheiro mostra que, destas 22
milhões de pessoas, cerca de 43% vivem em situação de coabitação
familiar, isto é, moram de favor na casa de parentes, onde ocupam
algum pequeno cômodo. Outros 31% gastam dinheiro demais com aluguel,
ou seja, deixam de consumir o básico para sobrevivência pelo peso
que o aluguel representa na renda familiar. Há ainda uma parte que
vive em casas absolutamente precárias e outra, em cortiços. Estas
são as condições de vida em que se encontram os sem-teto no
Brasil.
Como
dissemos, o problema se completa com o chamado déficit habitacional
qualitativo, que se refere à falta de condições básicas para uma
vida digna. Este número é maior que o anterior: são 15.597.624
famílias nesta situação, isto é, cerca de 48 milhões de pessoas.
Que
condições são essas?
Segundo
dados oficiais, o maior destes problemas, que afeta mais de 13
milhões de famílias, é a falta de infraestrutura e serviços
básicos a uma moradia decente: luz elétrica, água encanada, esgoto
e coleta de lixo. Para que se tenha uma ideia da gravidade do
problema, mais da metade (63%) das famílias da região Norte do país
vive na carência permanente de pelo menos um destes serviços
básicos. Mesmo nas partes mais ricas do país, o problema é
alarmante. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro tem mais de
700.000 famílias nesta condição.
Outro
problema grave relacionado à inadequação de moradias é o
adensamento excessivo de pessoas numa única residência. Cerca de
1,6 milhão de casas abrigam mais de três pessoas por cômodo, em
geral cômodos pequenos. E uma de cada quatro dessas casas
superpovoadas encontra-se no estado mais rico do Brasil: São Paulo.
A este problema ainda se soma, no país, mais de 1 milhão de
moradias que simplesmente não têm banheiro.
Quem
são os brasileiros que fazem parte destes números assustadores?
Será
que não há coleta de lixo e água encanada nos condomínios de luxo
da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro? Será que falta banheiro em
alguma mansão do bairro do Morumbi, em São Paulo? É claro que não.
Os
brasileiros que sofrem com o problema de moradia – seja pela falta
ou pela inadequação das casas, seja pela ausência de serviços
básicos – são os trabalhadores mais pobres, em especial aqueles
que vivem nas periferias urbanas. Os dados mostram: 67% das famílias
que não têm casa no Brasil vivem com renda menor que 3 salários
mínimos por mês.
No
caso dos serviços básicos, a desigualdade é incrível. O Estado
deveria garantir a todos as mesmas condições, independentemente de
onde moram ou quanto ganham. Não é isso que eles dizem? Mas a
realidade é bem diferente… Veja a tabela a baixo.
No
Nordeste, 82% das famílias que ganham menos que dois salários
mínimos sofrem com a carência de serviços, mas, no caso das que
ganham mais que dez salários, o número desce para 2%. Quem acha que
isso só ocorre no Nordeste está enganado: na Região Metropolitana
de São Paulo as coisas não são muito diferentes: 67% das famílias
com menos de dois salários sofrem com essa situação; no caso das
famílias com mais de dez salários, o número é 1,7%.1
Vemos
com isso que o problema da moradia reflete uma desigualdade social
profunda. Quem sofre com o déficit habitacional tem nome e endereço:
são os trabalhadores mais pobres, que moram nas periferias das
cidades. Essa lógica da desigualdade se mostra nua e crua quando
vemos o número de imóveis vazios no país.
Muito
para poucos, pouco para muitos
Ao
contrário do que parece, não faltam casas no Brasil. Há quase
tantas casas quanto famílias para morar nelas. Mas, como vimos,
existem milhões de pessoas sem-teto. Estranho isso, não é?
Vamos
relembrar: são 6.940.691 famílias que não tem casa no país.
Problema muito grave, principalmente quando a mesma pesquisa nos
mostra que existem 6.052.000 imóveis vazios, sendo que 85% deles
teriam condições de ser imediatamente ocupados. Ou seja, há
praticamente tantas casas sem gente do que gente sem casa. Em tese,
precisariam ser construídos poucos imóveis para resolver o problema
habitacional brasileiro.
Apenas
em tese, porque a maior parte dessas casas vazias – sem falar nos
terrenos ociosos, onde não há edificação – está nas mãos de
um pequeno grupo de grandes capitalistas, que ganham muito deixando
as coisas do jeito que estão. No capítulo seguinte, veremos como
eles atuam e a força política que têm.
É
importante lembrar que esses milhões de imóveis vazios não incluem
a chácara ou o apartamento da praia, que algumas famílias de renda
média conseguiram adquirir por meio de seu trabalho. São apenas os
imóveis permanentemente desocupados, em sua grande maioria usados
para especulação imobiliária.
A
contradição é gritante. E, se pensarmos bem, vemos que ela não
ocorre só em relação ao problema da moradia. O Brasil é um dos
maiores produtores de alimento do mundo e, no entanto, milhões
passam fome. Poderíamos pensar muitos outros exemplos de uma lógica
em que o direito dos ricos se impõe sobre o direito dos
trabalhadores. Em nome do direito à propriedade de alguns poucos, se
nega o direito à moradia para milhões.
Moradia:
direito ou mercadoria?
Todo
cidadão tem direito à moradia digna. Pelo menos é o que diz o
artigo 6° da Constituição Federal do Brasil.
Direito
significa algo que deveria ser garantido de maneira igualitária a
todos, sem distinção. A responsabilidade de garantir direitos é do
Estado, que, para isso, cobra impostos e realiza (ou deveria
realizar) investimentos.
Se
a moradia digna fosse tratada de fato como um direito, ela deveria
ser garantida a todos pelo Estado, sem distinção de renda ou
região. Isso significaria garantir moradia “gratuita” – ou
melhor, subsidiada – aos que mais precisam.
Vemos,
porém, que não é bem isso o que ocorre. A falta de moradia e a
precariedade dos serviços básicos afeta apenas os trabalhadores, em
especial os mais pobres. A distinção entre direito para o rico e
direito para o pobre
é evidente.
Entender
a moradia como direito significa pensá-la a partir da necessidade e
do uso. Ao contrário, a lógica capitalista dominante trata a
moradia – e todos os direitos sociais – a partir do valor medido
em dinheiro, o valor de troca. Para o capital, pouco importa se há
gente precisando de moradia: importa se há quem possa pagar por ela
e trazer lucro às construtoras e donos de terra.
Tudo
é transformado em mercadoria, independente das necessidades sociais.
Se não fosse assim, seria inexplicável haver tantas casas vazias ao
lado de tanta gente sem-teto. A moradia, além disso, é uma
“mercadoria” muito cara para a maioria dos trabalhadores
brasileiros. Durante muito tempo, foi quase um item de luxo.
O
mercado habitacional brasileiro caracterizou-se historicamente por
ser muito elitizado. Voltou-se para atender a chamada classe média e
os ricos das grandes cidades. Esses segmentos sociais sempre
encontraram créditos bancários e empreendimentos mais ou menos
compatíveis com seus bolsos. Aos trabalhadores, restava o eterno
aluguel e, principalmente, os loteamentos e ocupações nas
periferias urbanas.
Esta
mercantilização do direito realiza os lucros de importantes grupos
econômicos. No caso da moradia, se o Estado cumprisse seu dever de
garanti-la a todos, os especuladores de terra e as grandes
construtoras perderiam dinheiro. O mesmo se passa com outros
direitos. Se o Estado garantisse educação pública de qualidade a
todos, as escolas e faculdades privadas deixariam de existir. A mesma
coisa ocorreria aos planos de saúde se o serviço público de saúde
fosse como deveria ser.
Enfim,
transformar o direito em mercadoria prejudica a maioria, mas favorece
a classe mais rica. E o Estado, que deveria garantir os direitos, o
que faz em relação a isso?
BNH:
primeiro programa habitacional do Brasil
Os
programas habitacionais do Estado brasileiro não representaram
jamais um contraponto à lógica de eliminação da moradia como
direito. Ao contrário: aprofundaram o caráter excludente e
mercantil desta lógica.
Na
realidade, o Estado brasileiro desenvolveu apenas dois programas
habitacionais relevantes ao longo de toda sua história: o Banco
Nacional de Habitação (BNH), durante a ditadura militar; e o tão
falado Minha Casa Minha Vida, a partir do governo Lula. Vejamos
brevemente o significado destes programas.
O
BNH pretendia ser, no início, uma forma de dar legitimidade ao
governo dos militares depois do golpe de 1964. A proposta, expressa
inclusive em documentos, seria transformar o trabalhador em
proprietário (de um imóvel) e, assim, ganhar a simpatia dos mais
pobres ao regime repressivo e antipopular dos generais.
Mas
nem isso fez. As iniciativas do BNH voltadas aos mais pobres – seja
no caso dos projetos de desfavelização no Rio de Janeiro ou no caso
das Cohabs – resultaram em fracassos estrondosos.
Isso
ocorreu por conta da lógica bancária e empresarial do BNH. Não
havia praticamente nada de subsídio, isto é, o valor completo do
imóvel tinha que ser pago pelo mutuário do programa. Além disso,
as prestações eram elevadas e seguiam as normas do crédito
bancário privado. O que isso quer dizer?
Quer
dizer que o BNH não fez nada diferente de um banco privado ou de uma
grande empreiteira. Seu objetivo sempre foi o lucro com a produção
e financiamento de moradias. A moradia, tratada pelo próprio Estado
como mercadoria, permaneceu sendo privilégio dos que podiam pagar
alto por ela.
Das
cerca de cinco milhões de casas financiadas pelo BNH, apenas 25%
(uma em cada quatro) foram destinadas a famílias com renda menor que
cinco salários mínimos. E isto correspondeu a somente 12% do total
de recursos aplicados pelo banco. É muito pouco.
Ou
seja, o BNH financiou casas para a classe média e não para os
trabalhadores mais pobres, que, como vimos, representam 90% do
déficit habitacional. Seu maior objetivo sempre foi dar lucro, nunca
garantir o direito à moradia.
Depois
da falência do BNH, em 1986, o país ficou mais de vinte anos sem
ter qualquer política habitacional importante. Até que, no governo
do presidente-operário, veio o Minha Casa Minha Vida, com a promessa
de resolver todos os problemas.
Será?
Vamos ver passo a passo como as coisas aconteceram.
Minha
Casa Minha Vida: quem ganha com isso?
O
programa foi lançado em fevereiro de 2009, alguns meses depois da
explosão da maior crise econômica deste século, em 2008, nos
Estados Unidos. O estouro desta crise teve como pavio exatamente o
mercado imobiliário norte-americano. Foram vendidas muitas casas nos
Estados Unidos a crédito, com valores excessivamente altos, por
conta da especulação imobiliária. Com o valor dos terrenos lá em
cima, muitas empresas e bancos viram aí uma oportunidade de engordar
mais ainda seus lucros: emprestavam dinheiro a quem queria comprar
uma casa, tomando o próprio imóvel como garantia de pagamento. Como
o valor das casas crescia cada vez mais, o negócio era atraente aos
capitalistas.
O
problema é que muitos destes compradores, em geral trabalhadores
norte-americanos, não tinham como pagar as prestações. Por isso,
algumas empresas e bancos – que já tinham ganhado muitos milhões
de dólares – decretaram falência. As casas deixaram de ter
compradores. Muitas famílias foram despejadas, já que a casa era a
garantia do empréstimo. E a crise se alastrou.
É
claro que o buraco desta crise é muito mais embaixo. Se formos mais
a fundo, veremos que ela está longe de ter acabado. Ainda ouviremos
falar muito de crise nos próximos anos. Mas o que nos interessa aqui
é que, depois de 2008, os investimentos na construção civil caíram
brutalmente no mundo todo. Os bancos deixaram de oferecer crédito e,
sem crédito, nem as empresas capitalistas produzem, nem os
trabalhadores compram.
O
que isso tem a ver com o Minha Casa Minha Vida? Ora, por estas
razões, 2009 caminhava para ser um ano com poucos lucros –
provavelmente com prejuízos e até falências – para grandes
empreiteiras do Brasil. E neste ponto chegamos ao grande fator que
motivou a proposta do Minha Casa Minha Vida pelo
governo federal.
O
programa foi desenvolvido com o objetivo central de salvar o capital
imobiliário, injetando, em sua primeira fase, R$ 34 bilhões em
recursos públicos na iniciativa privada. Neste ponto deu certo: as
empresas do ramo puxaram a alta da Bolsa de Valores de São Paulo em
2009 e atraíram interesses no mundo todo. Hoje, 75% das ações das
maiores construtoras do país estão nas mãos de investidores
estrangeiros.
Assim,
as empreiteiras receberam o presente de R$ 34 bilhões para aliviar
sua crise. O sistema é simples: o governo dá o dinheiro, a
empreiteira constrói e o governo apresenta os compradores. Ou seja,
não há nenhum risco para o capitalista nem necessidade de gastos
com a venda – corretores, propaganda etc. E tudo com dinheiro
público.
Mas
alguns companheiros poderiam questionar: M esmo
que favoreça as empreiteiras, está construindo moradia para quem
precisa e resolvendo o déficit habitacional, não é? Isso foi o que
afirmou o então presidente Lula, ao falar que o Minha Casa Minha
Vida representava
uma “reconciliação entre o capital e o trabalho” – ou seja,
atenderia aos interesses de todos, sem conflitos.
O
problema é que, como dizia o jornalista Joelmir Beting, na prática
a teoria é outra. Na verdade, ao definir como meta central atender
os interesses do capital, o programa manteve a mesma lógica que
vimos no caso do BNH. Cerca 75% dos recursos e 60% das habitações
do programa foram destinados a famílias com renda maior do que três
salários mínimos, exatamente porque – em se tratando de imóveis
mais caros – as empreiteiras ganham mais.
Apenas
40% das moradias da primeira fase do programa são para famílias com
renda menor do que três salários mínimos, o que representa menos
de 10% do déficit habitacional nesta faixa de renda. É um filão
que interessa menos às construtoras.
Além
disso, ao deixar nas mãos das empresas todo o processo de projeto e
construção, surgiram as piores aberrações. Os conjuntos
habitacionais são construídos em regiões muito periféricas, com
pouca infraestrutura, já que os terrenos aí custam menos para as
empreiteiras. A qualidade e tamanho das moradias são também os
piores possíveis. Para as famílias com menos de três salários, o
parâmetro do tamanho das casas é de 39 metros quadrados. São as
conhecidas “caixas de fósforo” populares.
Por
outro lado, é fato que o programa representou um avanço importante
em relação à quantidade de subsídio para a aquisição da casa,
especialmente para famílias com menos de três salários: um volume
de subsídios expressivo e inédito. Mas isso, como vimos, se combina
com localização ruim, qualidade precária e quantidade muito
insuficiente de moradias para os mais pobres.
O
ex-presidente Lula não conseguiu conciliar o capital com o trabalho.
Assim como nem o mais hábil desenhista pode fazer um círculo
quadrado. Mas conseguiu outra conciliação, a que realmente
pretendia com o programa: conciliou a garantia de impressionantes
doações de campanha das empreiteiras para sua sucessora nas
eleições de 2010, com milhões de votos de trabalhadores, que
acreditaram na propaganda de que seria sua vez de morar dignamente.
–
Os
dados deste parágrafo referem-se ao estudo realizado pela Fundação
João Pinheiro em 2009, já que o estudo de 2010 não incluiu a
tabela de inadequação de moradia por faixa de renda.
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