MINO CARTA
6
DE MAIO DE 2019 (publicado em Carta Capital)
E também
de altivez e sabedoria: é a entrevista do ex-presidente
A entrevista de Lula à Folha de S.Paulo e ao El País ainda vibra nesta redação e o que nos toca em primeiro lugar é a lição de altivez e desassombro que a marca para sempre. As palavras do ex-presidente sobre as razões que o levam a manter a resistência a partir da prisão curitibana nos comovem e nos empolgam.
Fundamental
na análise deste momento crucial da história nacional o depoimento de Lula,
dado antes do início da entrevista e gravado pelo valente Ricardo Stuckert,
extraordinário e fidelíssimo biógrafo de quem acompanha a largo tempo. A Folha não o publicou, ao contrário do El País, representado por Florestan Fernandes Júnior, e
pelo site online da Forum. Alguns trechos, os mais significativos, estão na
página ao lado.
Lúcida e
implacável a análise da sequência de ações que do impeachment de Dilma Rousseff levam à condenação
sem provas, aos desmandos de Temer e à eleição de Jair Bolsonaro. Fio condutor:
a demência como forma de governo, o entreguismo do súdito e a demolição do
Estado. O entrevistado reconhece a unicidade da conspiração à brasileira, do
fatídico jeitinho de inventar motivos e enganar a plebe rude e ignara. Sublinha
Lula haver países ameaçados, ou a pique, de perder as benesses criadas pela
democracia, enquanto o Brasil nem chegou a conquistá-las. Ao dar passos
essenciais neste sentido, dados pelo governo petista, foram engolidos
pelo golpe e suas consequências.
Se eu estivesse entre os entrevistadores,
teria perguntado a respeito do STF conivente e velhaco
Tenho pelo meu eterno presidente, do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo e Diadema à República, uma amizade irrecorrível vincada pela franqueza
a caracterizar uma relação de autêntica substância. Ele nunca deixou de se
abrir comigo e eu nunca deixei de expor meu pensamento. Lula me cita a
propósito do caso Battisti: é fato que insisti junto ao então presidente, a
lamentar a espantosa ignorância de quantos viam um herói em um mero terrorista,
ex-ladrãozinho do arrabalde romano. Preferiu dar ouvidos a quem nada sabe a
respeito da história recente da Itália. Já a história deste Brasil formalmente
desigual ele a conhece a fundo e desnuda em toda a sua malignidade.
A situação em que precipitamos ele a percebe desde as raízes, aponta
inclusive a diferença abissal a separar os atuais parlamentares que desonram o
País e o Congresso que editou em 1988 a nova Constituição, presidida por
Ulysses Guimarães, notabilíssima personagem merecedora da melhor lembrança. E a
mim vem à memória o dia do começo de janeiro de 1984, quando o doutor e o
governador Montoro me pediram para procurar o jovem líder do PT e reiterar o
convite a participar da manifestação das Diretas Já convocada em São Paulo na
Praça da Sé no aniversário da cidade, a 25 daquele mês. Logo almocei com Lula e
ouvi dele o que esperava: “Estarei lá, obviamente”. Acompanhava-me um amigo
caríssimo, jornalista italiano de passagem por São Paulo, e ele carregou a
certeza de que eu era um potentado da República, a despeito do meu esforço de
demovê-lo desta convicção. Lula foi à manifestação e figurou na linha de frente
do palanque diante de uma plateia de 500 mil pessoas. Ao cabo da memorável
festa cívica, um grupo dirigiu-se à Avenida Paulista e incendiou uma perua da
Globo.
➤ Leia
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em obsessão por desmascarar Moro e Dallagnol
Outro era o Brasil. Compreensível agora o apoio irrestrito que Lula dá
ao PT, a meu ver partido tíbio diante do descalabro terrificante dos dias de
hoje. Mas Lula é um ser de emoções à flor da pele, generoso por natureza, amigo
irredutível dos amigos ‒ e não lhe faltaram os traidores. Por causa desse
aspecto da sua personalidade, se quisermos encantador, e apesar do QI muito
elevado, do senso de humor agudo, da vocação da tirada irônica, às vezes ele
tropeça em enganos diria mesmo ingenuamente. Nem sempre a paz na terra premia
os homens de boa vontade, conforme cantaram os anjos na noite de Nazaré. De
todo modo, por raciocínios distintos, apreciei a sabedoria que o inspirou ao
falar de Guilherme Boulos e Ciro Gomes.
Comovem as razões que o levaram a resistir
a partir da prisão
Se eu
estivesse entre os entrevistadores, não teria hesitado em fazer perguntas a
respeito de uma alta corte naturalmente incumbida de velar pelo cumprimento da
Constituição. Como sabemos, deu-se o exato contrário. O Supremo poderia ter
agido desde 2014 para impedir a criminosa atuação da Lava Jato ao longo de um
processo que transforma o juiz imparcial em inquisidor disposto a condenar sem
provas ao sabor das fantasias dos pregadores de uma cruzada. E ignorou os
poderes que lhe permitiam intervir no processo de impeachment de Dilma Rousseff para coibir mais um
desacato à Lei Maior e a clamorosa injustiça cometida contra Lula. Um Supremo
conivente e velhaco aderiu, tal o verbo correto, ao golpe de forma decisiva em
todas as suas passagens. E ainda ter perguntado como enxerga agora os Toffolis
e Fachins da vida, as Rosa Webers e Cármen Lúcias, e outros que o quiseram onde
hoje se encontra.
De minha
parte, recordo que no dia 15 de abril de 2015, Dilma, no início do segundo
mandato, de Joaquim Levy a tiracolo, almocei com Lula em minha casa, com a
companhia do professor Belluzzo e de minha filha Manuela. Lá pelas tantas, ao
enfrentar um ossobuco com raspa de limão sobre o tutano, sustentei a
necessidade imperiosa de uma pronta reação. O plano do golpe já estava em
andamento desde a eleição e o impeachment da
presidenta e a condenação sem provas pelo inquisidor curitibano já figuravam
no script. Não se tratava de profecias, mas de
constatações. Sugeri: aluga um ônibus e organiza uma caravana, começa por sua
terra, Garanhuns, atravessa o Nordeste, vai ao Norte, desce para Salvador,
depois Belo Horizonte, enche as praças, abre os olhos do povo, faz um barulho
do capeta. Como sempre, disse o que penso. A caravana saiu quando era tarde,
Lula já condenado. Ninguém me tira da cabeça que, se ele aceitasse minha
sugestão, não haveria golpe e tudo o mais.
O prólogo
Confira trechos do documento lido antes da entrevista:
▪ Aquele golpe começou a ser preparado em 2013 quando a Rede Globo de
Televisão usou sua concessão pública para convocar manifestações de rua contra
o Governo e até contra o sistema democrático. Tudo valia para tirar o PT do
Governo, inclusive a mentira e a manipulação pela mídia.
▪ O novo Brasil que estávamos criando junto com o povo e as forças
produtivas nacionais foi retratado pela Rede Globo e seus seguidores na
imprensa como um país sem rumo e corroído pela corrupção.
▪ Nem em 1954 com Getúlio nem em 1964 contra Jango se viu tanta
demonização contra um partido, um governo ou um presidente. Centenas de horas
do Jornal Nacional e milhares de manchetes de revistas contra nós. Nenhuma
chance de defender nossas opiniões. Mesmo assim, em 2014, derrotamos os
poderosos nas urnas pela quarta vez consecutiva. Para quem não conhece o
Brasil, nossas elites dizimaram milhões de indígenas desde 1500, destruíram
florestas, enriqueceram por 300 anos a custas de escravos tratados como se
fossem bestas. Colonos e operários tratados como servos. Divergentes como
subversivos, mulheres como objetos. Diferentes, como párias. Negaram terra,
dignidade, educação, saúde e cidadania ao nosso povo.
▪ Criamos o PT em 1980 para defender as liberdades democráticas,
os direitos do povo e dos trabalhadores. O acúmulo das lutas do PT e da
esquerda brasileira, do sindicalismo dos movimentos sociais e populares nos
levou a consolidar um pacto democrático na constituinte de 1988. Esse pacto foi
rompido pelo golpe do impeachment em 2016 e por seu desdobramento que foi a
minha condenação sem culpa, e minha prisão em tempo recorde para que eu não
disputasse as eleições.
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